8 de agosto de 2010

A cidade desfigurada

Por Clênio Sierra de Alcântara

Foto: Ernani Neves


Na contramão do que há décadas vêm propondo várias capitais europeias, as grandes cidades brasileiras, em geral, e o Recife, em particular, continuam incentivando a circulação maciça de veículos automotivos em suas áreas centrais, ou seja, em seus pontos mais críticos. Será que é esse tipo de planejamento e controle de tráfego o mais adequado para o Recife? É justo que a cidade venha sendo contantemente desfigurada para atender ao que se denominou - como justificativa - de "constante demanda por vias desafogadas"? E, se é assim, aonde se vai parar com as soluções paliativas, se a cada mês entram em circulação milhares de outros veículos; e não se promove a melhoria efetiva do transporte público?

Na Europa a questão do trânsito está na ordem do dia porque é sabido o quanto é daninho para a dinâmica das cidades um tráfego que não flui, um fluxo a todo instante travado. Em Londres passou-se a cobrar um pedágio dos motoristas, em 2003, para a circulação das 07:00h às 18:00h, numa área de 22 km² em torno do centro da cidade. Em um ano, os congestionamentos foram reduzidos em 30%. Em Estocolmo o pedágio foi implantado em 2007. Já a Holanda resolveu agir de modo ainda mais severo depois de ter feito outras tentativas de melhorar o fluxo de veículos, como criar pistas exclusivas para carros com mais de três ocupantes e incentivar o uso de transportes públicos - agora, determinou-se que, a partir de 2012, será cobrada uma taxa por quilômetro rodado de todos os carros que circulam no país.

E no Recife o que tem sido feito? O urbanismo com u minúsculo vigente na capital pernambucana vem há anos recorrendo a paliativos, a soluções imediatistas que, além de serem verdadeiros mutiladores do corpo urbano, são grandes incentivadores para o aumento de circulação da frota em suas áreas centrais. Congestionou aqui? Construa-se uma paralela com a grande artéria. O tráfego está lento ali? Alargue-se a avenida recuando os imóveis existentes, como se fez na Av. Norte. O trânsito não anda acolá? Escave-se um túnel, ora.

E, como se não bastasse a vigência desse urbanismo mesquinho que se ocupa apenas do presente da cidade, ao contrário do outro, com u maiúsculo, que poderia observá-la com vistas para o futuro, a iniciativa privada - não seria consequência da prática dos urbanistas da Prefeitura? - tem também mutilado os bairros centrais do Recife para construir edifícios-garagem, como o que está sendo erguido na esquina AV. Conde da Boa Vista/Rua Gervársio Pires - ampliação do Shopping Boa Vista -, ou simplesmente, pondo abaixo imóveis antigos a fim de disponibilizar o terreno para estacionamento, como foi feito na Rua da Soledade.

É deveras lamentável tudo isso. E ainda mais quando se sabe que, à custa de beneficiar aqueles que guiam seus carros como se estivessem em tronos ambulantes e que se acham com direito de ocupar todos os espaços possíveis, a política que vigora desavergonhadamente penaliza o pedestre, o flâneur. É absurda no Recife a falta de fiscalização quanto à ocupação dos espaços destinados aos caminhantes. Bares ocupam calçadas obrigando-nos a disputar a pista com os carros. Fiteiros fazem o mesmo - o que é aquilo na Rua do Hospício, próximo ao Hospital Geral do Exército? E ainda tem o agravante de as calçadas estarem, em muitas ruas, bastante esburacadas. O Recife está dia a dia sendo degradado e o que tem importado à prefeitura é que o trânsito flua - sem retenções.

Aqueles que creem ser a cidade ordenada e planejada um não-lugar, uma utopia, desprezam veementemente o papel dos verdadeiros urbanistas. E é infelizmente isso o que está ocorrendo no Recife.

Nos anos 20 do século passado o poeta-engenheiro Joaquim Cardozo lamentou profundamente, em versos de crueza incomum, que o Recife estivesse sendo morto a cada dia pela abertura de grandes avenidas que então se processava. Passados quase cem anos o lamento de Cardozo ainda ecoa pelas ruas, becos, praças e pontes dessa cidade conquistada às águas, porque é o tráfego de veículos, com todas as implicações que ele acarreta, que continua matando o Recife.

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