10 de agosto de 2010

A hora e a vez de Abelardo da Hora

Por Clênio Sierra de Alcântara


"São habitantes anônimos
dessa cidade alagada,
de limo e pedra formada
sob marés,
submersa"

Meninos do Recife. Abelardo da Hora, 1962


Fotos: Ernani Neves





Depois de ter percorrido várias cidades aportou no Espaço Cultural Cabo Branco - mais um projeto magnífico saído das pranchetas do Oscar Niemeyer -, na Ponta do Seixas, em João Pessoa, a muito reveladora - e eu digo reveladora no sentido de que ela cobre praticamente todas as fases da produção desse artista, cuja carreira se confunde com a própria efervescência artística que tomou o Recife desde pelo menos a década de 50 do último século - exposição "Amor e Solidariedade - 60 anos de Arte", do grandioso artista Abelardo da Hora.
 




Estive lá em meados de julho, a fim de prestigiar o evento que, para mim, significou não somente uma imersão em seu universo, já de mim bastante familiar - foi ao Abelardo que dediquei um texto escrito em 2004, sobre o Josué de Castro, que foi premiado em Brasília naquele ano -, bem como um regozijo por ver tantas pessoas circulando por entre as mais de cem obras ali expostas; e não apenas circulando, mas também interagindo com algumas delas.
 




Dono de um traço vigoroso no desenho, como atesta sua série Meninos do Recife - série essa que o saudoso cronista Ronildo Maia Leite disse ter "valor documental de um instante urbano do Recife" -; e de linhas esculturais que vão desde uma sinuosidde bastante elegante e sensível - as mulheres voluptuosas que ele esculpe parece que estão a nos pedir afagos - a um corte que me lembra muito a crueza das lascas brutas de uma pedreira - creio que o que me evoca isso é o caráter deveras pungente de suas representações de retirantes e crianças esfomeados -, Abelardo da Hora é uma daquelas personagens da História da Arte que vivenciaram intensamente suas inquietações artísticas sem se manterem alheias às perturbações sociais de seu tempo.
 



Quem se dispuser a percorrer as páginas vibrantes do livro Ensaio com Abelardo da Hora, do Weydson Barros Leal, lançado em 2005, tomará conhecimento em detalhes, dentre outras coisas, que ele estava na Praça da Independência - a popular Pracinha do Diário - naquele fatídico 3 de março de 1945, quando, em meio a um protesto contra a ditadura de Getúlio Vargas, tombaram o estudante Demócrito de Souza Filho e o operário Manuel Elias dos Santos; que ele esteve na linha de frente, junto com Paulo Freire, do grupo que criou, durante a administração municipal do Recife de Miguel Arraes, o Movimento de Cultura Popular, que completa 50 anos neste 2010; que ele, militante fervoroso que era do Partido Comunista Brasileiro, abandonou a militância, desiludido, em plena vigência da Ditadura Militar; e que é de sua autoria o projeto de lei que instituiu na capital pernambucana a obrigatoriedade de se incluir obras de arte em construções particulares com mais de mil metros quadrados de área construída - no caso de edifícios públicos, a inclusão da obra era obrigatória, não importando a área.
 
Aos 86 anos esse pernambucano de São Lourenço da Mata mantém-se na lida diária com sua arte exibindo o entusiasmo de um quase principiante - e quem me diz isso é um seu genro, que é também meu amigo, esse apaixonado pelas salas de aula, que é o prof. Antônio Alves -, porque elevou o seu fazer artístico a uma profissão de fé.
 







Nos últimos anos Abelardo da Hora também tem se empenhado em ver de pé o Instituto que leva o seu nome; um edifício a ser erguido num terreno adquirido com recursos próprios, situado na Rua Bernardo Guimarães, no bairro da Boa Vista, no Recife. De acordo com o projeto elaborado pelo escritório Lira Arquitetos Associados, de Carlos Augusto Lira, o Instituto Abelardo da Hora contará com pavimento térreo e dois pavimentos elevados, estacionamento, guarita, recepção, portaria, hall de exposição, salas de aula e outros equipamentos. Muito mais do que um espaço-museu que abrigará um acervo permanente desse artista e abrirá suas portas para exposições alheias, o Instituto será - tudo leva a crer - um lugar de educação para a vida por meio dos ensinamentos da arte.
Em vista de tudo isso, seria maravilhoso - para não dizer que seria um grande reconhecimento à obra e à trajetória desse artista - se  Abelardo visse ainda em vida esse seu sonho realizado. Passo agora a palavra aos mecenas deste país.
 


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