6 de dezembro de 2010

Fahrenheit 89

Por Clênio Sierra de Alcântara


 Foto: Ernani Neves     Edson Nery da Fonseca em restaurante na cidade de Olinda


Quando, neste dia 06 de dezembro, os ponteiros dos relógios se alinharem, indicando que são 10:40h, marcarão o instante exato em que veio ao mundo, em pleno coração do Recife, o menino que se tornaria o gigante Edson Nery da Fonseca - o João Altão, como o alcunhou uma sua admiradora.

Se a alguém causa espanto deparar-se com figura tão corpulenta, de tez muito clara e olhos de um azul que se assemelha ao firmamento, muito maior espanto sente aquele que tem o privilégio de sentar ao seu lado e ouvi-lo narrar fatos de sua movimentada vida. Vida essa entremeada por grandes paixões por pessoas, coisas e animais, como no título de um livro do seu muito estimado e louvado amigo Gilberto Freye, que ele organizou e prefaciou. A amizade, aliás, como ele próprio deixou bem evidente em livros como Vão-se os dias e eu fico e Estão todos dormindo – principalmente neste – sempre foi a matéria de salvação de sua longa existência, que teve início naquela manhã de 1921, num logradouro chamado Rua do Progresso. Vida essa vivida o mais totalmente que se pôde, conforme a prescrição alentadora de um outro Gilberto, o Amado, num círculo de amigos que incluía, entre outros, José Lins do Rego, Francisco de Assis Barbosa, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins e Odilon Ribeiro Coutinho.

Quando me encontrei pessoalmente com ele – intelectualmente eu o conhecia desde há muito – vi que compartilhávamos diversos gostos em comum: livros, gatos, poesia e alguma coisa da solidão. Mas o que mais me surpreendeu no encontro foi o acontecimento de, ao começar a ouvir as narrativas dessa pessoa de memória fabulosa – que memória! – eu me ver como que diante de uma daquelas almas que vagam no apocalíptico, terrivelmente apocalíptico filme Fahrenheit 451, do François Truffaut. Edson Nery da Fonseca, com sua memória prodigiosa, me fez recordar daquelas pessoas-livros da película – ou seriam livros-pessoas? – porque ele guarda em si um universo de referências literárias. E eu me perguntei: qual livro ele seria? Seria Casa-grande e senzala? Mensagem? A cinza das horas? Ritmo dissoluto? Não, ele não seria apenas um desses, porque ele encerra uma rica biblioteca na cabeça – ele seria um volume de obras completas.


          

Do alto dos seus oitenta e nove anos Edson Nery da Fonseca, Professor Emérito da Universidade de Brasília, é um intelectual que se mantém muito ativo – superativo fica melhor dito. Está sempre disposto a dar um depoimento, a conceder uma entrevista, a bem receber seus amigos e deliciá-los declamando, cerimonioso – afinal, as divindades da literatura são merecedoras dessa liturgia, dessa reverência –, poemas inteiros dos poetas por ele mui amados: Manuel Bandeira e Fernando Pessoa. Continua a comprar briga com aqueles que classifica como “escritores medíocres” e/ou “subliteratos”, porque abomina as “vaidades intelectuais” dos intelectualmente pretensiosos e dos falsos bibliotecários. E ama a vida; mas não é dos que, para soarem como politicamente corretos, louvam a velhice, porque ele detesta as limitações físicas que ela lhe impôs.

Hoje os sinos todos das igrejas de Olinda - seu lugar de morada – repicarão para esse oblato fescenino. Queria neste dia ouvi-lo declamar este excerto do poema Plenitude, do livro A cinza das horas, do Manuel Bandeira: “Tenho êxtases de santo... Ânsias para a virtude.../ Canta em minh’alma absorta um mundo de harmonias./ Vêm-me audácias de herói... Sonho o que jamais pude/ - Belo como Davi, forte como Golias...”.

É certo que os mais fortes passam dos 80. Edson Nery da Fonseca viveu 32.485 dias e mais alguns. Isso era para ser um prefácio. E eu não poderia me despedir daqui sem dizer assim: “Hoje eu quero a rosa mais linda que houver...”.


( Artigo publicado também in: O Monitor [Garanhuns], 15 de dezembro de 2010, Opinião, p. 02).

Um comentário:

  1. Belo texto sobre nosso amigo em comum: edson Nery da Fonseca.Parabéns. Anco Márcio

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