28 de dezembro de 2011

Feiras livres (1)

Por Clênio Sierra de Alcântara


Fotos: do autor 


Centro (Abreu e Lima - PE). Quando o meu colaborador Ernani Neves me propôs que iniciássemos uma série de textos e imagens enfocando feira livres, eu disse assim de mim para mim: "Bom, o artigo inaugural terá de registrar a principal feira livre de minha cidade natal, porque ela foi e continua sendo minha referência maior; foi ela que preencheu minha infância e adolescência com uma profusão de cheiros,cores e sabores".









Semanas atrás - precisamente no dia 17 de setembro -, aproveitei uma visita que fiz à minha avó adorada, Maria da Conceição, para ir percorrer o imenso pátio da feira livre de Abreu e Lima - bem como as ruas que o prolongam -, empunhando uma câmera fotográfica.

Muito embora continue sendo uma das maiores feiras livres da Região Metropolitana do Recife, a feira, localizada na área central de Abreu e Lima, não apresenta mais a configuração que tinha no tempo de minha meninice; o desenho de sua ocupação atual eu comecei a testemunhar já no meu tempo de adolescente. Uma das maiores modificações que ocorreram diz respeito à própria disposição dos bancos dos feirantes. Outrora, ao término do dia - e cabe aqui dizer que durante muitos anos a feira ocorria aos domingos; depois, ainda nos anos 80, ela passou a acontecer aos sábados -, os bancos todos eram retirados do pátio; e eram arrumados uns sobre os outros nas proximidades dos banheiros públicos e nas ruas do peixe e da galinha. Hoje, a maioria deles permanece ali durante toda a semana. E estão dispostos de modo bem diferente de quando eu comecei a frequentar essa feira: os bancos de venda de carnes, por exemplo, eram mais numerosos do que se verifica atualmente; e eles ocupavam o espaço que agora é tomado principalmente por vendedores de roupas.








As ruas que eram prolongamentos da feira eram chamadas pelos nomes das mercadorias nela predominantes. Assim existiam - e ainda duas delas existem - a "Rua da Batata", a "Rua do Peixe" e a "Rua da Galinha". Percorri também essas artérias buscando nelas permanências de tempos idos. A "Rua da Batata" cresceu a olhos vistos; e está bem diversificada. A "Rua do Peixe" perdeu muito da configuração que possuía; a quantidade de vendedores de peixes e crustáceos diminuiu bastante; e a Edilidade não coibiu a ocupação desse logradouro por barracas horrendas nas quais são comercializados objetos de segunda mão. Já a "Rua da Galinha" não existe mais como tal; muitos anos atrás ali podiam ser encontradas galinhas de granja e as chamadas galinhas de capoeira, que são também conhecidas como galinha caipira; elas eram vendidas vivas, em meio a patos, gansos e perus; e o declínio desse comércio se deu, creio eu, porque a disseminação da venda de aves abatidas tornou-se um ganho de tempo para os consumidores.

É digno de nota o fato de que a configuração atual da feira livre não dispõe mais de grandes espaços nos quais vendedores das mais variadas mercadorias possam expor seus produtos arrumados diretamente no chão, o que, para mim, constitui um dos traços mais primitivos e, por assim dizer, característicos desse tipo de comércio. Durante anos - e algumas poucas vezes eu o auxiliei na empreitada - meu avô Severino Amaro, o Biu Belo, comercializou laranjas ali, que eram dispostas sobre lonas enormes. E havia um vendedor de jarros, mealheiros, fogareiros, cumbucas, jarras e quartinhas feitos de cerâmica, que arrumava harmoniosamente esses objetos no pátio, e que era uma das coisas mais bonitas de se ver. Outro que ocupava um pedaço de chão era um bem falante vendedor de garrafadas que, como chamariz para o seu produto, levava cobras enormes dentro de malas.








Houve um tempo, imaginem, em que eu passei a repudiar a minha cidade natal; não por vergonha dessa origem, mas porque, atravessando uma série de infortúnios e sem ter condições de compreendê-los naquele momento, eu os associava à cidade, que acabei abandonando, indo morar na Ilha de Itamaracá. Mas, como bem sabe todo aquele que tem na escrita uma de suas ocupações, está na infância a matéria bruta à qual muitas vezes se recorre quando se procura verbalizar o mundo que cada um traz em si. Não importa aonde formos. Não importa o que viermos a ser. A terra da infância nos acompanha como se fosse parte constituinte de nossos pés.



Seu Déda, que comercializa carne de porco há mais de trinta anos na feira








Outra vivência que me liga intrinsecamente a essa feira abreulimense é o fato de ter sido nela que eu desempenhei a minha primeira função trabalhista. Quando eu tinha dezesseis anos, José Pedro, o Seu Déda, que foi o segundo marido de minha avó, me pôs como ajudante num de seus dois bancos de venda de carne de porco - eu ficava no banco no qual eram comercializadas as vísceras e partes como orelhas, pés e toucinho; enquanto que ele cortava as carnes propriamente ditas. Eu saía de casa às 04:00 h, na maior escuridão. Por volta das 06:30 h eu ia fazer o desjejum na casa de vovó. Voltava à feira. E ia almoçar ao meio-dia. E, de volta à feira, dela eu só saía de vez à tardinha, quando, então, retornava à casa de vovó carregando num carro de mão parte dos utensílios que usávamos no trabalho. Seu Déda ficou anos afastado desse comércio. De modo que foi com certo regozijo que eu fiquei sabendo, através de vovó, que desde há muito dele está separada, que ele retomara essa atividade. E, assim, não perdi a oportunidade de fazer um registro fotográfico dele quando percorri aquele pátio imenso.


  


Não me recordo se no tempo de eu menino já existia a chamada "feira do troca-troca" - talvez existisse, sim, porque, até onde eu sei, esse tipo de feira é muito popular em toda a Região Nordeste -, uma feira na qual são comercializados coisas as mais diversas - geralmentes usadas, de segunda mão -: tubos e conexões, sapatos, peças de bicicletas, roupas, discos de vinil, aparelhos de som, ferramentas, cd's e dvd's, telefones celulares... Durante a adolescência eu ia quase todos os sábados a essa feira em companhia do Humberto, um irmão postiço do meu irmão. Eu era fascinado por aquela feira. E muito mais pelo espanto de ver que tantas pessoas para ali afluíam em busca daquelas quinquilharias, do que pelas quinquilharias em si. E foi com a mesma disposição daqueles dias, que eu a atravessei naquele sábado setembrino.







Eu gosto demais de percorrer feiras livres. Gosto de sentir o cheiro de tempero sendo moído na hora; e do da tapioca e do beiju assando na chapa quente. Gosto da desordem - aliás, essa é a única desordem por mim aceita - que se vê nelas. Gosto de ver a miscelânea de tudo que é comercializado nelas.









Tenho lembranças maravilhosas da grande feira livre de Abreu e Lima. Dos bancos que vendiam apenas bolos, dos mais variados tipos, aos quais eu ia, guloso, querendo provar de todos eles. Dos churros bem corados que eu gostava de comer estando eles ainda quentinhos. E os pastéis, então? Eram pastéis grandões que tinham um tantinho de nada de recheio e que, mesmo assim, eu os achava saborosíssimos.






Foi com um quê de nostalgia que eu percorri a principal feira livre de Abreu e Lima, um território que me proporcionou algumas das melhores lembranças de minha vida.

4 comentários:

  1. Que pena que na data seguinte a esse post seu a feira foi retirada desse local. Pois assim como você tenho várias lembranças dai.Sou Paulista e atualmente moro em Taubaté-SP, mas meus pais e irmão atualmente estão morando em Abreu e Lima e tem um comércio no beco que da acesso a feira no pátio,uma casa de ração e produtos veterinários sempre que saia de férias quando criança meu pai que na época morava em SP, nos levava para passar ai na cidade, e íamos muito a feira. e agora que ele tem comércio ai continuo a passar minhas férias na cidade. Eles estão tristes por terem mudado de local, apesar do novo local ter infra estrutura.A grande maioria dos feirantes segundo eles foram obrigados a mudarem, pois não queriam sair dai. A feira em volta do mercado municipal, já fazia parte da história de cada um.
    simone lino

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  2. Tenho muitas saudades de Abreu e Lima mas em especial tinha um carinho muito grande pela feira.

    Sou de São Paulo. Aqui as feiras livres são bem diferentes... comerciais como em toda cidade, claro, mas bem menos humanizadas como a feira de Abreu e Lima onde se era possível estabelecer verdadeiras relações de consumo... os vendedores e vendedoras nos conheciam, sabiam nossas preferências... chegavam até mesmo a reservar nossas mercadorias à nossa espera semanal... E a água de côco? Os bolos? O caldo de cana? A simpatia das vendedoras de roupas e calçados? As frutas e verduras trazidas do Ceasa fresquinhas com sabor de Pernambuco... o clima sempre foi para mim encantador... tanto que cativou de vez este paulista que vos escreve... Anexo estava o mercado municipal com seu ar de mistério histórico e mercadorias de qualidade... Eu estudei na Escola General Abreu e Lima que ficava praticamente em frente e sempre comprava ou fazia minhas merendas na feira... bons tempos... saudosos... Mas é preciso evoluir! Fico feliz que o antigo projeto tenha finalmente saído do papel.

    Desejo que esta nova etapa crie também boas histórias, lembranças e acima de tudo movimente a economia desta cidade que tanto amo mesmo estando longe.

    Edilson Macedo - São Paulo - SP

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  3. A Feira Livre é o tipo de comércio mais antigo do mundo. Desde os tempos do escambo

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  4. A Feira Livre é o tipo de comércio mais antigo do mundo. Desde os tempos do escambo

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