8 de dezembro de 2011

Luís Jardim: 110 anos do nascimento de um exímio artesão da imagem e da palavra


Por Clênio Sierra de Alcântara



            Nascido em 8 de dezembro de 1901 – dia de Nossa Senhora da Conceição, como ele costumava lembrar -, na cidade de Garanhuns, Luís Inácio de Miranda Jardim foi um menino traquinas que gostava de conversar com árvores – “No meu quintal eu tinha amigos confidentes, certos, com quem falava em voz alta e por eles eu mesmo respondia. Eram os dois jambeiros [...] Mais adiante estava o meu maior amigo: o grande Cajueiro” – e de passar dias sem fim na fazendinha Mulungu, propriedade de seu pai, caçando passarinhos: “A fazendinha Mulungu era o meu paraíso sem limites. E lá as atrações eram tantas, tão diversas das poucas da cidade, que eu já sentia por antecipação o desprazer da volta”. Um menino levado que sofria muito por causa das dores e do abatimento provocado pelo reumatismo. Ele tinha duas irmãs: Maria das Dores (Dadô) e Maria do Carmo (Carminha). O pai chamava-se Manuel Antônio de Azevedo Jardim; e a mãe, Angélica Aurora de Miranda Jardim, que ele preferia tratar por Dona Senhora. E ele ainda morria de amores por aquela que dizia ele ser a sua segunda mãe: “Nanã, a boníssima Nanã, minha mãe preta que me queria o maior bem do mundo”. Luís, o Lula, tinha um casal de cachorros batizado de Nero e Japonesa; e um cavalo adorado chamado Duvidoso: “O cavalo morava no meu íntimo. Era gordo, bonito, fogoso e era árdego”. Lula viu o cometa Halley cortar o céu de Garanhuns naquele maio de 1910. Foi um acontecimento e tanto: “Viu-se primeiro, no horizonte, o reflexo de luz clara do extraordinário cometa. Veio subindo lentamente. Na proporção que subia, mais aumentava o claro reflexo circular”. Maio, junho. As festas juninas despertavam no menino reumático uma alegria desmedida: “O deslumbramento não se apaga jamais nas impressões de criança, que perduram em saudade. Eu vibrava antes mesmo dos dias de festas juninas, e depois, comentando-as e revivendo-as no íntimo”. Desde cedo Luís Jardim começou a perceber que seu olfato era bastante apurado; e isso fazia com que ele evitasse até o contato com algumas pessoas: “Eu não me dava com certos cheiros. Antipatizava sem conciliação com fosse o que fosse que os causasse: gente, bicho, mato ou coisas”. Também foi em sua tenra idade que ele começou a cultivar uma habilidade que o tornaria muito famoso, que era desenhar, e que ele classificava como “a minha ocupação predileta”.
 
            Tudo isso e muito mais ele conta com muita vivacidade e intenso colorido num dos livros de memórias mais vibrantes que eu até hoje li, que é o seu O meu pequeno mundo: algumas lembranças de mim mesmo (Rio de Janeiro: José Olympio, 1976). O desfecho dessas memórias foi, para mim, algo perturbador, para dizer o mínimo. É que na sua última página Luís Jardim faz um desabafo eivado – como é que eu posso dizer – de uma dor que parece pulsar nas entrelinhas. Ali ele escreveu: “À meia-noite do dia 14 de janeiro de 1917 (era domingo), aquele menino finou, com a idade de quinze anos, um mês e seis dias. A partir do dia seguinte ao daquela data, outro, um tanto postiço, contrafeito, o substituiu. Deste eu não sei, não quero, não posso contar a história, nem mesmo lembranças esparsas. Acabaram-se. Houve dois fins”. Para o leitor que não atentou para a razão desse silêncio-protesto eis aqui o esclarecimento: no dia 14 de janeiro de 1917, Francisco Sales Vila Nova e Melo, motivado por questões pessoais e disputas políticas, assassinou, defronte ao Café Chile, no Recife, o Cel. Júlio Brasileiro, então manda-chuva na disputa pela Prefeitura de Garanhuns, eleito prefeito no ano anterior. Tal crime desencadeou uma tragédia sem-par na história desta cidade do interior pernambucano. Sob o pretexto de que estariam protegidos pelas forças legais, elementos que militavam contra o Cel. Júlio Brasileiro foram convencidos a se refugiar na cadeia pública. O plano de vingança da família Brasileiro foi tecido com requintes de crueldade. Centenas de cangaceiros chegaram à cidade. E na tarde do dia 15 de janeiro o recinto policial foi invadido; e todos os que ali estavam recolhidos foram covardemente abatidos; e entre eles estava Manuel Antônio de Azevedo Jardim, pai de Lula: “A hecatombe de Garanhuns teve características singulares: em menos de vinte e quatro horas foram eliminados os chefes das duas facções oposicionistas; os julistas se vingaram daqueles a quem atribuíam a autoria intelectual do assassinato de Júlio Brasileiro, dispensando-se, depois, de fazê-lo em seu verdadeiro autor [...]; por sua vez, os parentes das vítimas desta retaliação se contentaram em exterminar os agentes materiais do massacre, eximindo-se de estender a vingança aos mandantes”, relatou Mário Márcio de Almeida Santos no livro Anatomia de uma tragédia: a hecatombe de Garanhuns (Recife: CEPE, 1992).
            Como Luís Jardim, até onde eu sei, recusou-se desde então a tocar no assunto com maior vagar – na entrevista que ele concedeu a Joselice Jucá, em 1979, que foi incluída na publicação Imagem e texto: homenagem ao pintor e escritor Luís Jardim, organizada por Edson Nery da Fonseca (Recife: Editora Massangana, 1985), Lula disse o seguinte: “[...] houve um fato terrível: nossa família foi toda sacrificada – a célebre hecatombe de Garanhuns. Todos assassinados [...] Fomos então embora para o Recife, fugindo, porque se dizia que até as crianças estariam ameaçadas também, e que não iria se deixar rastro do nosso tempo. Questões políticas, mal-entendidos, e também a interferência de um homem foi todo o pivô dessa desgraça” -, só podemos mesmo imaginar os efeitos que a tragédia provocou em seu íntimo. Tornou-se impossível para ele permanecer morando em Garanhuns; e foi assim que o rapazote Lula alçou voo de sua terra com destino ao Recife. Chegando à capital pernambucana, Lula empregou-se como caixeiro numa firma de Elpídio Gondim. Impressionou-se, certo dia, ao presenciar o patrão dialogando em inglês com um professor negro chamado Mr. Goldman; e decidiu que aprenderia a língua de Shakespeare tendo aulas com esse mestre: “Dominando já a língua inglesa, deixou Luís Jardim de ser caixeiro, indo trabalhar no City Bank (sic) a convite de Ulisses Freyre, irmão de Gilberto”, conta-nos Edson Nery da Fonseca no opúsculo Conferência do jornalista  e escritor Edson Nery da Fonseca sobre Luís Jardim (Recife: Gráfica Inojosa, s. d. A conferência foi pronunciada em 1991).
            Com Gilberto Freyre, Luís Jardim manteria uma grande amizade. Lula acabou ingressando naquele grupo de admiradores que Gilberto angariou ainda moço e que tinha em José Lins do Rego a figura do mais fiel escudeiro. Casando-se com uma moça rica chamada Alice Alves – Lula se encarregaria de dilapidar o dinheiro da jovem, investindo em negócios que não prosperaram -, Luís Jardim teve Gilberto como um dos padrinhos. E foi Lula quem datilografou – não sei se todo ou apenas uma parte, porque as informações que colhi divergem – os originais do livro que se tornaria um grande clássico: Casa-grande & senzala, publicado em 1933; e, já no ano seguinte, ilustrou à mão, uma por uma, as capas do belo Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife, também de autoria de Gilberto Freyre.
            De passagem pelo Rio de Janeiro, aonde fora participar de uma muito bem sucedida – basta dizer que todos os trabalhos foram vendidos – exposição de aquarelas por ele pintadas, ouviu a seguinte proposta da esposa Alice: Você sabe de uma coisa, acho bom ficar por aqui mesmo!”. E foi assim que, Luís Jardim e Alice, fixaram-se definitivamente em terras fluminenses, terras essas onde ele despontaria como um dos mais talentosos artistas brasileiros da imagem e da palavra.
            Foi Rodrigo Mello Franco de Andrade, o grande mineiro protetor das riquezas artísticas do Brasil, quem convidou Luís Jardim para trabalhar no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; para o IPHAN Lula prestou serviços durante cinco anos. Quando ingressou na Livraria José Olympio Editora, Luís Jardim produziu dezenas e dezenas de ilustrações para capas de livros e também para o interior dessas publicações. Mas ele fez bem mais do que isso na empresa de J.O., num tempo em que Lula, com seu bigodinho e chapéu panamá, circulava pelo Rio de Janeiro, numa baratinha, um carro esporte que, no dizer de Lucila Soares, “simbolizava o auge da modernidade”: “Do pernambucano Luís Jardim, o que mais se fixou na memória do público – e sem relação obrigatória com seu nome – foram os retratos em bico-de-pena dos autores estampados nas folhas de rosto das edições da José Olympio. É uma injustiça. Jardim trabalhou na retaguarda da produção gráfica da editora junto com Daniel Pereira. Uma função estrategicamente importante, que estabeleceu um novo padrão no Brasil, onde, até a década de 1930, com raras exceções, a qualidade média desses serviços era baixa” (Lucila Soares. Rua do Ouvidor 110: uma história da Livraria José Olympio. Rio de Janeiro: José Olympio/FBN, 2006).
            Desde criança – “Com 9, 10, 11 já estava desenhando cavalinho”, ele contou a Joselice Jucá – Luís Jardim exercitou com maestria a arte de desenhar, tendo alguém dito dele que era “dono de um traço elegante e preciso”. Por incentivo do amigo Gilberto Freyre – Gilberto gabava-se ao contar que chegou a “destruir” as primeiras manifestações literárias não só de Lula, mas também um panegírico a seu respeito escrito por Zé Lins, por considerá-las ruins (Veja-se, por exemplo: Gilberto Freyre. A propósito do recifense Luís Jardim, escritor e pintor brasileiro. In: Brasil Açucareiro, vol. 79, nº 1, janeiro de 1972, p. 33-37) -, Luís Jardim começou a enveredar, também, pelo mundo da literatura. Ele estreou em 1937 vencendo o 1º prêmio do Concurso de Literatura Infantil do Ministério da Educação e Cultura com o livro encantador intitulado O boi Aruá; e ainda no mesmo ano venceu o 2º prêmio de Livros e Estampas, também do MEC, com O tatu e o macaco – este eu nunca encontrei. Já no ano seguinte, estreando na, digamos, grande literatura, Lula logrou um feito até hoje muito lembrado: o seu livro de contos Maria Perigosa – para mim os contos “Paisagem perdida” e “Os cegos” são os pontos altos dessa obra – ganhou o Prêmio Humberto de Campos da Livraria José Olympio Editora, derrotando ninguém menos do que Guimarães Rosa que, claro, não era ainda a sumidade dos dias atuais. Seis anos depois, chegou às livrarias Nalá e Damayanti, um poema hindu por ele traduzido, que narra os encontros e desencontros de um rei e de uma princesa que a estória conta que eram lindíssimos. A estréia em romance ocorreria em 1949, com o muito bom As confissões do meu tio Gonzaga. Dez anos mais tarde, em 1959, ocorreu a publicação de Isabel do Sertão, uma peça teatral em 3 atos, que conquistou um prêmio da Academia Brasileira de Letras. Retornando ao universo infantil, Lula escreveu dois livros que são, digamos assim, releituras engenhosas de narrativas bastante conhecidas: Proezas do menino Jesus (1969), premiado pela ABL; e Aventuras do menino Chico de Assis – inspirado na vida de São Francisco de Assis (1973). São de 1978 dois livros que se complementam: Façanhas do cavalo Voador e Outras façanhas do cavalo Voador; ambos fazem um passeio pela mitologia greco-romana. A última obra ficcional de Lula apareceu em 1980. Trata-se da “novela picaresca” O ajudante de mentiroso.
            Grandes nomes da intelectualidade nacional escreveram sobre as obras de Luís Jardim. A respeito de Proezas do menino Jesus, Alceu Amoroso Lima registrou: “Não conheço ninguém, nem obra alguma da literatura universal que fizesse o que você fez. E a fez com tanta naturalidade, com tanta simplicidade, com tanta cristalinidade, que nem parece saída da pena de uma criatura humana”. Já o insigne crítico literário Wilson Martins disse assim a propósito de As confissões do meu tio Gonzaga: “Não devemos ter medo das palavras quando elas se fazem necessárias. O crítico necessita pensar duas vezes, certamente, antes de escrevê-las, mas também não deve recuar quando elas se impõem com nitidez. Digamos, pois, para finalizar estas considerações, que o livro de Luís Jardim é uma das obras-primas do romance brasileiro, digna de figurar nessa galeria quase despovoada presidida por Machado de Assis. Ele é seu descendente espiritual nos nossos dias, e com o seu aparecimento no campo do romance Machado de Assis não está mais sozinho”.
            Fazendo um retrato de si mesmo no depoimento que concedeu a Eugênio Gomes e que foi publicado na Seleta organizada por Paulo Rónai (Rio de Janeiro: José Olympio/INL, 1974), Luís Jardim declarou: “Nasci ator. Sou um ator congênito. Desde menino, na intimidade da minha casa (jamais em público), que represento, inventando cenas. Bom imitador, reconheço nessa habilidade um indício de capacidade teatral”. Eis aí mais uma faceta desse garanhuense admirável. Edson Nery da Fonseca certa vez me disse, como testemunha ocular dessas representações de Lula, que “Ele foi o maior imitador de pessoas que eu conheci”.
            Bem apessoado, bon vivant – segundo Alice-Damayanti, Luís-Nalá-Jardim “Na realidade [...] gostava de exibir-se, de ser bonito” (Marcílio Reinaux. Luís Jardim: as múltiplas faces de um talento. Garanhuns: Prefeitura Municipal, 1991. É uma pena que este livro apresente tantas falhas e alguns absurdos, como dizer que Gilberto Freyre e Magdalena Guedes Pereira já formavam um casal em 1930) –, Luís Inácio de Miranda Jardim construiu uma obra imagética e literária que tem um teor telúrico muito vigoroso. Impressiona – pelo menos a mim impressionou bastante – a recorrência que ele fez a cenários, a certas coisas e animais, ao seu mundo enfim, não como pobreza do feitio criador, mas como apego mesmo a um universo que certamente foi o território de toda a sua infância e de parte de sua adolescência. Há, na escrita e no traço jardiniano, uma força – por vezes sensível, por vezes bruta – que parece não aceitar o transcorrer do tempo que distanciava o autor daquela paisagem que ele não queria ver perdida. Dito assim, a mim me parece que a Isabel, personagem da peça teatral por ele escrita, é o seu alter-ego. Isabel não se conforma em ter de abandonar o sertão, mas é impelida a deixá-lo. É bastante significativo o fato de essa personagem morrer no final, porque é, de certo modo, a morte de qualquer possibilidade de regresso. Como vimos, uma circunstância traumática afastou, ao menos fisicamente, Luís Jardim de sua terra natal de forma definitiva. Isabel do Sertão é, à sua maneira, um outro Angelus Novus à luz daquela interpretação feita por Walter Benjamin.
            Em sua coluna Pessoas, Coisas & Animais, que era publicada pela revista O Cruzeiro, Gilberto Freyre escreveu, para a edição de 15 de abril de 1950, um artigo intitulado “O escritor Luís Jardim volta à província”, no qual destacou o seguinte do amigo que, assim como ele, faleceria em 1987: “Raramente um brasileiro tem reunido tantas aptidões para as letras e para as artes como as que se juntam nesse extraordinário sr. Luís Jardim”. Exaltemos, pois, o grande Lula Jardim. Redescubramos a sua obra. Percorramos os meandros do seu legado certos de que encontraremos nele algo de muito precioso: o seu pequeno mundo aberto para o mundo todo.



(Artigo publicado também in: O Monitor [Garanhuns], dezembro de 2011,  Homenagem, p. 10).

3 comentários:

  1. Sou sobrinha bisneta de Alice Alves, esposa do tio Lula, convivi com ele até meus 13 anos, quando ele faleceu, tenho na minha casa um de seus quadros, e fiquei bem feliz em saber que ainda escrevem sobre meu tio. Tenho às vezes um receio enorme de que a obra dele se perca. Parabéns pelo artigo escrito.

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    1. Aline, como vai? Luis Jardim é primo do meu avô, Arthur Maia. Se possível, entre em contato, pois gostaria de conversar com você sobre ele. Meu e-mail é analiberacymaia@gmail.com. Obrigada.

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  2. Aline, acabo de comprar uma edição de Maria Perigosa. Ainda vou escrever sobre esse livro, seu tio merece. Muito legal o texto biográfico, obrigado ao redator do blog.

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