27 de fevereiro de 2012

Trato de casa, trato de rua

Por Clênio Sierra deAlcântara











Durante a graduação eu entrei em contato com uma obra que me impressionou bastante. Trata-se do livro O que faz o brasil, Brasil? – particularmente o capítulo “A casa, a rua e o trabalho” -, do antropólogo Roberto DaMatta. A impressão se deu porque me perturbou a maneira econômica e ao mesmo tempo tão eficaz com que o seu autor delineou um traço – e aí vai o recurso generalizante – da personalidade do brasileiro no trato com as coisas da rua e com as coisas da casa. Trocando em miúdos: o antropólogo nos mostra como interagimos com esses espaços de maneira tão distinta: a casa vista como o lugar do recato, das regras bem definidas, dos limites; enquanto que a rua é o local por excelência da permissividade, do “pode tudo”, do desregramento.

Muito embora eu, num primeiro momento, tenha endossado completamente essa visão generalizante do antropólogo, com o transcorrer do tempo fui reavaliando o meu entendimento a seu respeito. Bom, como eu disse, trata-se de um conceito explicativo que põe a todos num mesmo parâmetro definidor. É válido? Sim, porque existe uma verdade embutida nessa explicação, visto que, por um conhecimento empírico, sabemos que vigora mesmo tal distinção entre o “espaço privado” e o “espaço público”, se quisermos recorrer às expressões utilizadas por Gilberto Freyre. Ela, no entanto, é globalizante? Não, não é. E reside aí a razão do meu desacordo parcial de agora.

Lembro como se fosse hoje – perdão por essa frase feita; mas ela é tão saborosa de dizer e de ouvir – os muitos puxões de orelha que levei, em meu tempo de criança, de minha mãe e de minha avó por agir de modo que elas julgavam ser deseducado. Elas me advertiam quando eu, por exemplo, insistia em comer qualquer tipo de comida com colher; ou quando enchia o copo até a borda; ou ainda quando eu pedia algo a alguém sem preceder o pedido pelas “palavrinhas mágicas” por favor; e, também, quando eu interrompia as conversas, sem esperar a minha vez de falar.

Mainha e vovó chamavam a minha atenção para o fato de que nem tudo que se fazia em casa poderia ser feito na rua – rua, claro, significando qualquer espaço fora de nossa morada; podendo ser a rua propriamente dita; ou qualquer outro estabelecimento -, porque, segundo elas, era na rua que nós deveríamos demonstrar ainda mais nossa boa educação, nossa etiqueta no comer, no falar, no se comportar. E os puxões de orelha vinham seguidos por esta sentença definitiva e por demais esclarecedora: “costume [mau costume] de casa vai à praça”, que está, hoje, infelizmente, quase que completamente, fora de moda.

Parece-me, contudo, que o olhar do antropólogo Roberto DaMatta permanece, senão de todo, em grande parte válido. E o “senão” aqui vem também na esteira dessa situação que por ora vivenciamos e que caminha para ser a marca deste nosso tempo: a exposição exacerbada da intimidade pessoal. É enorme o contingente de indivíduos dispostos a compartilhar – seja através de fotos, seja por meio de textos, seja até mesmo em tempo real, com o uso de câmeras – com milhares de outras pessoas, as instâncias de suas vidas.

Alguns mais chegados me dizem que eu nado contra a maré pelo simples fato de eu não ter um perfil nas chamadas redes sociais – Facebook, Orkut e congêneres. Não é que eu não dê a mínima a isso. Acontece que eu não tenho disposição, nem tempo e nem assunto – eu sei, o nível ali é, às vezes, rasteiro, mas ainda assim – para ficar mandando mensagens para uma gente que - como é o caso da maioria dos perfilados –  eu nunca vi pessoalmente. Ah, façam-me o favor. Eu tenho coisas bem mais – reforce-se o bem mais - interessantes para fazer.

Para mim continua valendo essa verdade que me define: eu sou um escravo do ócio: do ócio criativo. E a casa e a rua permanecem sendo, para mim, mundos distintos, mas não inteiramente.

(Artigo publicado também in: O Monitor [Garanhuns], fevereiro de 2012, Cultura, p. 10 ).
 





















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