16 de novembro de 2012

A obsessão pela alienação e pelo atraso

  Por Clênio Sierra de Alcântara



Não se trata de “complexo de vira-latas” e nem tampouco pessimismo e crença de que neste país pouca coisa pode dar certo. Trata-se, fundamentalmente, de enxergar  os fatos sem o véu da fantasia, sem a euforia do pensamento mágico.

Em nenhum momento eu me empolguei quando da divulgação de que o Brasil sediaria a Copa do Mundo de Futebol de 2014. Não me entusiasmei pelo simples fato de que continuo considerando que este país tem demandas verdadeiramente urgentes e necessárias. “Ah, mas se for assim nunca o Brasil vai poder sediar nenhum grande evento, porque sempre terá algo a fazer”, alguém pode dizer. Aí é que está o ponto-chave da discussão: o Brasil sempre terá algo a fazer, dado que o atrasado viceja nele em muitas frentes.

Quando este país foi escolhido para organizar o Mundial de 2014 os meios de comunicação divulgaram tal  informação com o maior espalhafato. O discurso era - e continua sendo – construído de modo a fazer crer aos incautos que vivemos nosso melhor momento e que o evento só trará benefícios para a nação. Como os dirigentes sabiam que nem todos cairiam nesse conto do vigário misto de panis et circenses com uma dose cavalar de megalomania, divulgaram que o dinheiro, todo o dinheiro necessário para pôr as obras de pé, viria da iniciativa privada; assim disseram a fim de angariar a simpatia de parte da população que, com razão, repudiou esse projeto estapafúrdio desde o início, como foi o meu caso.

Como se já não fosse absurdo um país com tantos contrastes e com tantas mazelas para eliminar sediar um evento desse porte, os mandachuvas, os visionários, os entusiastas do empreendimento se empenharam em defender a construção e/ou a reforma não de dois, quatro ou seis estádios, mas de doze. Isso mesmo, doze estádios. E qual a lógica disso? Bem, segundo os dirigentes, com doze cidades-sede ampliava-se o alcance do evento para mais brasileiros, porque, ainda de acordo com eles, mais pessoas seriam beneficiadas com o conjunto de obras atreladas a tais construções. Mas nós outros que não nos deixamos levar pelo canto dessas ardilosas e muito conhecidas sereias e que bem sabemos os males que elas disseminam com seus apetites vorazes, de pronto compreendemos o que esse suposto pensamento no bem comum embute.

Escrevi embute e me veio no seu encalço a palavra embuste, que é muito parecida, não é? Embute, embuste... Correram os meses. Das pranchetas dos arquitetos saíram projetos arrojados para os novos estádios e para as áreas dos seus entornos. Tratores, caminhões, toneladas de concreto e milhares de operários começaram a tocar as obras. Aqui e ali houve um protesto e uma paralisação da mão de obra, mas nada de tão grave que o espírito esportivo, digo melhor, o espírito futebolístico não resolvesse de imediato. Tudo correndo ao gosto dos dirigentes brasileiros, embora nem sempre ao gosto dos maiorais da Fifa, a entidade máxima do futebol no mundo.

Muitos tratores, muitos caminhões, muitos operários, muito dinheiro público... Epa, dinheiro público? Mas não disseram que não entraria sequer um centavo de dinheiro do contribuinte nessa empreitada? Ah, meus amigos, desde que o Brasil é Brasil que as coisas funcionam assim: sempre buscam nos vender gato por lebre, açúcar derretido por mel de abelha, carne de cavalo por de boi... Pois bem, até o presente momento, essas obras que não iriam consumir nenhum centavo de real do patrimônio público têm 91% do capital investido proveniente do bolso do contribuinte. A previsão de gastos que era de 1,9 bilhão já bateu na casa dos 6,7 bilhões de reais, um aumento de 253%. Não tenho dúvida de que, caso ainda estivesse vivo, o arguto escritor Lima Barreto odiaria ainda mais o futebol.

Imagine o leitor se todo esse dinheiro – 6,7 bilhões de reais – fosse empregado, por exemplo, em obras de saneamento básico por esse país afora. Saneamento básico não é obra complementar; saneamento é obra fundamental; é obra que promove saúde pública; é obra que salva vidas. E, no entanto, o saneamento básico não tem sido encarado como tal pelos sucessivos administradores desta nação.

As cidades brasileiras, de maneira geral, sofrem com deficiências estruturais que o poder público não tem conseguido sanar. Questões como mobilidade, trânsito congestionado, degradação de espaços públicos, lixões, poluição de rios e mananciais que abastecem esses centros urbanos, ocupação desordenada e violência estão o tempo todo na ordem do dia  sem que se consiga ao menos abrandar as suas causas e efeitos. As cidades brasileiras, de maneira geral, estão carecendo tanto de infraestrutura que há quem diga que elas precisariam ser refeitas quase que por inteiro.

O Brasil grande que se dá ao luxo de gastar bilhões de reais na organização de um evento esportivo para estrangeiro ver, é o mesmo Brasil pequeno que vê inúmeros de seus cidadãos morrerem nos corredores dos hospitais por falta de leitos e de atendimento médico; o Brasil grande que se arvora de ser uma das maiores economias do mundo, é o mesmo Brasil pequeno que não conseguiu ainda levar água encanada e luz elétrica para os domicílios de todos os seus cidadãos; o Brasil grande que promete transformar os arredores dos estádios que está construindo, é o mesmo Brasil pequeno que não resolve o problema do esgoto correndo a céu aberto pelas ruas de suas cidades; o Brasil grande que projeta e ergue estádios monumentais, é o mesmo Brasil pequeno que possui escolas sucateadas nas quais faltam professores e mobiliário e que ensina mal; o Brasil grande que propagandeia que solucionará o caos do trânsito de suas grandes cidades – pelo menos das que abrigarão os jogos – até, em alguns casos, no ano que vem – quem em sã consciência acredita nisso? -, é o mesmo Brasil pequeno de estradas esburacadas e de uma BR 101 cujas obras de duplicação se arrastam há anos. Enfim, o país grande da propaganda oficial não é o país real no qual vivemos, porque o país real está a todo tempo nos dizendo que aquele outro é mera fantasia.

No mesmo dia em que me veio a intenção de escrever este artigo eu acompanhei, sentado no sofá da sala, jantando, a exibição do Jornal Nacional, o telejornal mais assistido do país. Nesse dia – 9 de novembro -, o programa levou ao ar uma matéria da repórter Mônica Silveira que mostrou para milhões de brasileiros o descaso para com as obras de transposição do Rio São Francisco, aqui em Pernambuco, uma obra anunciada pelo Governo Federal como a redenção das pessoas que vivem nas áreas onde o canal irá passar, porque levará água para regiões onde a seca costuma ser severa. A reportagem mostrou ainda olhares vazios de um povo que tem sido castigado por uma das piores estiagens dos últimos anos. E na mesma edição do telejornal, contrastando com aquela paisagem graciliana de tantas vidas secas, milhões de brasileiros viram também a animação estampada na face da apresentadora Patrícia Poeta fazendo a chamada da matéria que mostrou a implantação do gramado – 540 mil mudinhas de grama – do estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, uma das cidades-sede da Copa de 2014. Que coisa! Que coisa!

Não estou torcendo contra o Brasil, porque para mim ele já perdeu faz tempo. Não compro ilusões. Mesmo que tudo saia bem até a Copa de 2014 – e não sairá porque, infelizmente, a única coisa organizada nestas paragens é a desorganização e as ações de malversação dos recursos públicos - o Brasil já saiu perdedor, porque novamente optou por manter em grande parte do seu território o atrasado, o arcaico e o subumano em nome de uma suposta – e fugaz – ordem de progresso.


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