19 de novembro de 2012

No itinerário de uma imaginação criadora: entrevista com Zé do Carmo


Por Clênio Sierra de Alcântara



Fotos: autor do texto


Quem conhece pessoalmente o artesão José do Carmo Souza, o Zé do Carmo, sabe quão forte é nele o sentimento de pertencimento à sua terra e a compreensão que ele tem de toda a sua trajetória artística. A figura de Joana Izabel, sua mãe, é sempre evocada com o maior dos entusiasmos quando ele quer falar dos primeiros trabalhos que produziu, porque, como costuma dizer, foi o talento dela para moldar figuras com o barro que o levou, ainda menino, a iniciar o ofício que o tornaria conhecido muito além das fronteiras deste país.





Depois de décadas fazendo uma quantidade enorme de personagens com aquela matéria-prima, como os anjos-cangaceiros, que ele considera como uma produção polêmica devido à recusa de Dom Helder Câmara em entregar um deles ao Papa João Paulo II, Zé do Carmo resolveu enveredar – isso ainda nos anos 80 – por outra via artística - a pintura em tela -, abandonando completamente o trabalho com o barro. Ele explica essa vivência como uma necessidade que sentiu de mudar, de crescer artisticamente, de evoluir.


Muito me fascina a gênese, os anos iniciais, o “como tudo começou” na vida dos artistas. Para mim, tão importante quanto essas primícias e a arte em si, é perceber como o transcurso do tempo influiu na imaginação do artista e de como ele passou a perceber o que produziu. Em conversas que tenho mantido com Zé do Carmo, venho juntando fragmentos de lembranças com o fito de compor uma narrativa que descreva o itinerário vivencial desse homem que, sem dúvida alguma, é uma das maiores expressões da arte popular brasileira.

Há exatamente um mês eu fiz uma pequena entrevista com Zé do Carmo em sua residência, em Goiana, cidade da Zona da Mata norte de Pernambuco, programando sua publicação para hoje, porque hoje ele aniversaria, está completando setenta e nove anos de idade.

Não acredito que o homem veio do barro, como muitos proclamam; mas creio que, com o barro, o homem pode sustentar várias vidas. Parabéns, Zé do Carmo!





Afora a sua mãe, quem o senhor tem como referência na sua arte?

O meu pai. Ele era padeiro. Nas horas vagas ele fazia máscaras de papel pro Carnaval. Só que, antes de colar o papel, ele fazia as formas de barro. Ele era dançarino de gafieira. Eu vendo ele fazer as máscaras, eu me interessei também pela arte dele. Ele me influenciou bastante.

O que é que a arte representa para o senhor?

A arte pra mim é uma grande divindade criada por Deus; e é tudo na minha vida.

Defina quem é o homem e o artista Zé do Carmo.

 O homem Zé do Carmo é um homem como outro qualquer. Como artista eu me considero um criador de obra de arte polêmica.

Alguma mágoa?

Já fui magoado, já me ofenderam, mas eu não guardo mágoa. Eu sei que ódio ofende. Agora, eu me afasto da pessoa que me magoou, para mim ela morre.
O que faltou fazer na vida?

Eu tô querendo mais. Eu não posso dizer que venci. Eu quero mais. Se você parar não evolui. Enquanto você está fazendo sua arte sua imaginação também evolui. Pra mim a arte é um fenômeno. E só evolui quem não para de fazer as coisas.

Quantas obras o senhor acha que fez até hoje?

De barro mais de duas mil, eu calculo isso. Agora tela, eu acho que mais de mil.

O que a cidade de Goiana significa para o senhor?

Pra mim é uma grande cidade antiga. Goiana se desenvolveu com a vinda dos colonos que vieram de vários lugares. Duarte Coelho só se interessou por Goiana quando ela estava evoluída. Goiana é uma bela cidade. Eu amo Goiana.

Por que o senhor parou de modelar o barro?

O pessoal sempre me pergunta isso. Eu parei não porque me senti cansado de trabalhar com o barro, porque trabalhar com barro cansa muito, a gente tem de procurar, carregar, cozinhar. Não foi por isso. Eu parei de trabalhar com o barro porque eu quis mudar, desenvolver outras obras polêmicas com outra técnica.

Onde o senhor via as figuras dos cangaceiros?

Eu via em livros, em filmes, em revistas. Eu li biografias. Eu admiro os cangaceiros pela coragem, pela bravura. Por que eu admiro mais mamãe do que papai? Porque papai viu a situação, a casa cheia de filhos e nos abandonou. Mamãe, não, ela enfrentou tudo sozinha. Não arrumou outro homem. Eu considero ela uma heroína. A gente deve adorar a mãe da gente. Eu sou feliz, mas eu seria mais feliz se minha mãe tivesse viva.

Uma grande alegria.

Eu tenho várias. Minha esposa, meu filho. Também quando eu criei o anjo-cangaceiro, o Zumbi-anjo.

Como o senhor recebeu a notícia de que foi considerado Patrimônio Vivo de Pernambuco?

Eu fiquei muito feliz. Foi uma coisa inesperada. Eu sabia que meu nome estava no levantamento que o pessoal estava fazendo com vários artistas. Toda a arte que eu faço é para agradar primeiro a mim. Agora eu tenho tido sorte porque as pessoas também gostam da minha arte. Claro que eu fiquei feliz pelo título, mas eu já era feliz com o que eu fazia.

O senhor participou da Associação dos Artesãos de Goiana?

Não, eu nunca quis. Tinha muita política, as pessoas queriam saber à qual partido a gente pertencia. Eles botaram meu nome lá, mas eu nunca participei. Eles diziam que era uma honra ter o meu nome lá. Eu não gosto de coisa que é muito mexida.

O senhor pensou em estudar arte?

Teve um prefeito de Goiana, Dr. Lauro Raposo, que uma vez me perguntou se eu queria estudar em Paris. Eu era adolescente. Eu queria, mas mamãe não deixou. Nos anos 50, por causa da admiração pelo Presidente Getúlio Vargas – eu cheguei até a fazer uma escultura dele, que uma mulher me pediu pra levar pra ele e eu soube depois que ela não entregou nada, vendeu a peça a um grande colecionador – eu quis estudar na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, mas eu não consegui.

O senhor é homem de ir à missa?

Eu ainda vou, só aos domingos, quando tô com disposição. Quando eu não vou, assisto à missa do Padre Marcelo [Rossi] na televisão. Quando eu vou pra igreja, eu vou pra Igreja do Rosário dos Homens Pretos.

O senhor já viajou para fora do estado?

Já. Eu fui pro Rio de Janeiro, pra São Paulo pra fazer exposição do meu trabalho.

O senhor trabalhou em alguma empresa?

Eu nunca trabalhei pra ninguém. Eu nunca fui empregado de ninguém, graças a Deus, porque eu nunca quis ter um patrão. Eu sempre vivi do meu trabalho. Agora eu trabalhei muito, viu. Eu sempre fui completamente independente. Nunca fui desanimado, nunca tive preguiça de trabalhar.


Nenhum comentário:

Postar um comentário