8 de fevereiro de 2013

Cidades & Armadilhas: o caso de Santa Maria e uma sugestão

Por Clênio Sierra de Alcântara



À medida que vão nos chegando informações a respeito da tragédia que ceifou a vida de mais de duzentas pessoas na boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, vemos como acontecimentos catastróficos neste país quase sempre são resultantes de uma sucessividade de equívocos, de negligências, de desrespeito às normas legais, do pouco caso e do desprezo puro e simples para com a vida humana.

As legislações no Brasil existem para ser burladas; as normas técnicas existem para ser ignoradas; os fiscais existem para ser subornados... Sempre se dá um jeitinho de contornar os eventuais “entraves” ao livre comércio de produtos e serviços com vistas a aumentar a margem de lucro. E danem-se a saúde dos consumidores e a integridade física dos usuários.

As autoridades e os responsáveis pela tragédia de Santa Maria deveriam dar-se conta de que nada, absolutamente nada do que eles venham a dizer, mitigará a dor das famílias que perderam seus jovens, porque, descaso, inaptidão, indiferença e ganância não confortam ninguém, pelo contrário, exasperam a todos que continuam buscando respostas para o que aconteceu naquela casa de diversão na madrugada do dia 27 de janeiro. Os culpados tiram sempre os deles da reta. As autoridades dão as costumeiras explicações evasivas que tudo esclarecem e nada justificam. E o que sobra é a dor dilacerante dos parentes e amigos dos indivíduos que pereceram vitimados que foram pela absoluta falta de compreensão de que a vida das pessoas é algo mais valioso do que o tilintar das moedas e do lucro a todo custo.

O acontecimento sinistro envolvendo a boate Kiss novamente expôs o modo amadorístico como uma coisa extremamente séria, que é a observação e a garantia de segurança para frequentadores de ambientes de lazer, é tratada por muitos empresários, talvez, confiantes de que escaparão impunes pelos males que praticam. Devem existir em todas as unidades da federação brasileira milhares de estabelecimentos – e eu falo aqui não só de boates, mas também de supermercados, restaurantes, lojas, escolas, etc. – que funcionam apresentando o mesmo aparato precário de segurança que existia na boate gaúcha, onde extintores de incêndio eram meramente decorativos, uma vez que não estavam em condições de uso, e não existiam saídas de emergência, uma vez que a porta de entrada era a serventia da casa para tudo. E cadê a fiscalização para atuar os infratores? Infelizmente só numa coisa este país é realmente eficiente: na cobrança de impostos.

Decerto que equipamentos de segurança e a observação de normas protocolares não evitam efetivamente que acidentes e desastres aconteçam; mas eles podem minimizar danos materiais e, principalmente, salvar vidas.

A boate Kiss era um caso típico de armadilha urbana. As armadilhas urbanas estão por toda parte – e nem sempre escondidas: são as calçadas destruídas, que não oferecem nenhuma acessibilidade; são os bueiros destampados; são as ruas esburacadas; são os depósitos clandestinos de gás de cozinha; são as marquises em vias de desabar; são os parques de diversão com brinquedos e outros equipamentos sem manutenção periódica; são os bares, lanchonetes e restaurantes pelos quais a vigilância sanitária nunca passa; etc.

Para a desculpa esfarrapada das autoridades que dizem não dispor de um contingente expressivo de fiscais para atuar em tantas frentes, eu tenho uma sugestão. Por que não implantar um Disque Denúncia mais abrangente, que possa também receber informações do tipo: o posto tal comercializa combustível adulterado; a padaria da minha rua utiliza madeira da Mata Atlântica em seu forno; os extintores de incêndio do prédio onde eu trabalho estão vencidos e os hidrantes também não funcionam; a boate que eu frequento não segue nenhuma norma de segurança? Será que, tendo informações como essas em mãos, a atuação dos órgãos fiscalizadores não poderia ser dinamizada?

Tão logo a poeira abaixe, tão logo a fumaça se dissipe, em Santa Maria, tudo voltará ao terreno odioso da indiferença e do descaso, porque é assim que as coisas funcionam nestas plagas. É preciso que tudo mude para que permaneça exatamente como está. É preciso que mais pessoas morram porque sempre haverá quem lucre – e muito - com a indústria do morticínio.

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