19 de novembro de 2013

Talento e devoção: 80 anos de Zé do Carmo, Patrimônio Vivo do Brasil



Por Clênio Sierra de Alcântara



                                                                      Para não dizer que o centenário do seu nascimento                                                                                      passou em branca nuvem, este texto é dedicado a você,  
                                                                                                Souza Barros



Zé do Carmo amassando o barro - década de 70 (Acervo do artista)

Na Rua Padre Batalha, nº 103, em Goiana, cidade da Zona da Mata Norte pernambucana, reside um dos artistas populares – ou popular-acadêmico, como o estilo dele e de outros artistas goianenses foi definido com certo desdém por Abelardo Rodrigues e Hermilo Borba Filho, talvez por só enxergarem valor de fato na “arte popular ingênua” para não dizer “tosca”, “primitiva” (Cerâmica popular do Nordeste. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1969, 29, 118 e 193) – mais importantes no quadro das artes figurativas brasileiras. Nascido José do Carmo Souza, em 19 de novembro de 1933, Zé do Carmo começou sua vida artística aprendendo a modelar o barro observando as mãos hábeis de sua mãe Joana Izabel de Assunção, uma mulher guerreira que fazia peças para vender na feira livre da área central de Goiana a fim de sustentar os cinco filhos, abandonada que fora pelo então marido. “Minha mãe lavou roupa de ganho, fazia artesanato... De quase tudo ela fez para sustentar a mim e aos meus irmãos. Minha mãe era tudo para mim”, me confidenciou Zé do Carmo numa das várias visitas que lhe fiz.

Dos quatro irmãos de Zé do Carmo, apenas os homens se dedicaram ao trabalho artesanal com o barro: João Antônio chegou a manter uma loja na década de 60 na mesma Rua Padre Batalha; e Manuel Miguel auxiliava o irmão mais velho. O próprio pai de Zé do Carmo, Manuel de Souza dos Santos, que chegou a trabalhar como padeiro, fazia máscaras carnavalescas de papel machê a partir de um molde confeccionado com barro. Foram tempos muito difíceis que Zé do Carmo relembra em detalhes. Tempos em que sua família morava de favor num quartinho nos fundos da Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia.


Zé do Carmo ao lado da esposa Marinalva e do pai dele (Acervo do artista)

Modelando com grande perícia e aprimorando um pouco mais a cada dia o ofício que aprendera com sua mãe, o menino e depois o adolescente buscou conciliar seu fazer artístico com os estudos regulares. É precisamente este ponto de sua trajetória que acentua sua singularidade: em meio a um cenário onde o comum era o artista popular ser analfabeto, Zé do Carmo não só concluiu seus estudos, como tornou-se um leitor interessado na história da arte.

Havia em Goiana um agitador cultural e mecenas operoso chamado Lauro Raposo, que chegou a ser prefeito e a presidir o Instituto Histórico dessa cidade. A arte do adolescente chamou a atenção do “Dr. Lauro”, que pretendeu mandar o rapazote estudar em Paris, a partir do contato que mantinha com Cícero Dias, o famoso pintor pernambucano então residente na capital francesa. “Mas mamãe não gostou nadinha da ideia. Eu era o filho mais velho; e ela tinha medo de que eu viajasse e não voltasse mais”, me contou Zé do Carmo.

Não resta dúvida de que o reconhecimento de sua arte feita por um homem tido como importante na cidade, como era Lauro Raposo, imprimiu a Zé do Carmo um sentimento de revigoramento e determinação. A situação da mãe abandonada – seus irmãos nunca perdoaram a atitude do pai – e o anseio de oferecer a ela alguma melhoria de vida manteve o goianense com obstinação de vir a crescer com seu labor artístico. E nem o tempo que ele passou prestando serviço militar no Tiro de Guerra do Exército o afastou do seu propósito.

À medida que aperfeiçoava sua habilidade escultórica, Zé do Carmo começou a dominar todo o processo que envolvia a confecção de sua arte: escolha e preparo do barro; construção de forno; temperatura e tempo de queima das peças. Este último aspecto é de extrema importância porque sem o seu domínio, o artesão põe a perder boa parte do seu trabalho: muitas peças se quebram ainda dentro do forno se a temperatura não for adequada.

Determinado a ampliar seus conhecimentos e suas aptidões artísticas, Zé do Carmo chegou a estudar no Liceu de Artes e Ofícios do Recife. Embora não tenha concluído o curso, Zé, que morou durante certo tempo no bairro de Santo Amaro, fez muitos contatos até mesmo antes do ingresso naquela instituição; e conseguiu que o superativo José Césio Regueira Costa, então presidente do Departamento de Documentação e Cultura, que era instalado no 9º andar do Ed. Bancários, na Av. Guararapes, área central do Recife, realizasse uma exposição de seu trabalho na Drogaria Fernandes, que existia na Rua Nova: “A exposição foi um sucesso. Consegui vender todas as peças”, conta Zé do Carmo. Dos tempos de peregrinação no Recife, ele não esquece do apoio que recebeu, entre outros, de Paulo Fernando Craveiro, Lourdes Sarmento, Marcus Accioly e Renato Phaelante, que, de uma maneira ou de outra divulgavam o seu trabalho.

Com a fibra daqueles que acreditam piamente no que fazem, ao longo das décadas de 60 e 70 Zé do Carmo, por conta própria, tomou ônibus em direção ao sudeste do país a fim de vender e divulgar sua arte. Nessas andanças conseguiu ser recebido na redação de O Globo, no Rio de Janeiro.


Zé do Carmo é um tesouro que eu encontrei em Goiana (Foto: Ernani Neves)



Cioso do seu ofício, de personalidade forte, consciente da singularidade de sua arte, Zé do Carmo, já restabelecido em Goiana, numa casa que conseguiu comprar com a indicação do seu amigo Luiz Moraes, proprietário do famoso restaurante Buraco da Gia, deu aulas a vários meninos como meio de difundir e perpetuar um trabalho que ele julgava ser digno e satisfatório, apesar de não ser fácil, porque ele sempre teve consciência de que muitos artesãos passavam necessidades, que lhes faltavam por vezes o básico da vida, como a comida. Talvez por isso – porque sofrera na pele as agruras de ser um artista pobre que nasceu numa cidade que, além de oferecer como ocupação à sua gente basicamente o trabalho na lavoura de cana-de-açúcar, era relativamente distante da capital -, Zé do Carmo não aceitava certos julgamentos que faziam de sua arte. Decerto rebatendo críticas como as que foram feitas por Hermilo Borba Filho e Abelardo Rodrigues, ao ser entrevistado em 1975, Zé do Carmo foi enfático: “Só se fala agora nas coisas primitivas de Tracunhaém. Não sinto vontade de fazer esse trabalho bem popular, mas também não faço um trabalho clássico” (Silvia Rodrigues Coimbra et al. O reinado da lua. Rio de Janeiro: Salamandra, 1980, p. 221).

Católico fervoroso de ir à missa e tomar parte em procissões – ele foi sacristão na juventude -, Zé do Carmo construiu uma espécie de mundo particular influenciado, não duvido, pela leitura de livros de ciências ocultas. Seja como for, foi o catolicismo que deu a tônica em seu trabalho. Sendo assim, quando soube que o Papa João Paulo II viria ao Recife em 1980, resolveu procurar o então arcebispo de Olinda e Recife Dom Helder Câmara com o propósito de deixar com ele, para ser entregue ao Sumo Pontífice, algumas peças como presente: “Eu levei as peças num caixote. Quando Dom Helder viu os cangaceiros-anjos foi logo dizendo: ‘Estas não. Quem já viu anjo cangaceiro?!’. E ficou só com algumas”. Zé do Carmo estava no meio da multidão que foi recepcionar João Paulo II no viaduto da Joana Bezerra. Posteriormente o Vaticano despachou uma carta para o artista goianense agradecendo pelo presente.


Vendedor de jornal, um dos tipos populares criados pelo artista (Acervo do artista)


A criação do cangaceiro-anjo marcou um ponto crucial na rota artística de Zé do Carmo. Admirador entusiasmado de Lampião e de todo o universo do cangaço – admiração que o levou a colecionar recortes de jornais e revistas, a ler livros sobre o tema e a exibir fotografias do famoso cangaceiro na parede da sala de sua casa -, Zé do Carmo muito provavelmente não fazia ideia que a figura por ele concebida ganharia tanta notoriedade depois do episódio da recusa de Dom Helder. Dentro de um conjunto que inclui uma infinidade de tipos populares, como pescador, vendedor de jornal, apanhador de lenha, anjos músicos e santos como um impressionante e enorme São Pedro Pescador, encomendado para a capela de uma base naval do Rio Grande do Norte na década de 70, o cangaceiro-anjo tornou-se um ícone da produção em barro desse artista admirável. São cangaceiros-anjos as derradeiras peças que ele esculpiu antes de decidir parar de uma vez de trabalhar com esse material, no hoje distante ano de 1980. Portanto, quem for ao Centro de Artesanato de Pernambuco, no Bairro do Recife, e adquirir obras dele que estão expostas ali, saiba desde já que estará fazendo aquisição de uns quase tesouros, esculturas que têm mais de trinta anos, as últimas fornadas de um dos mais completos artistas do barro deste país.



27 de setembro de 1974, data do embarque de São Pedro Pescador (Acervo do artista)



Ao largar de vez o trato com o barro e partir para o campo da pintura em tela, uma mudança que ele próprio explica que foi resultado “de uma necessidade que eu senti de crescer como artista”, Zé do Carmo, que fabrica as telas, as tintas e as molduras que usa, manteve e até exacerbou o seu gosto e respeito para com as criaturas angelicais. Na fantasia pictórica por ele concebida, anjos franzinos compõem cenas que são encantadores idílios; sem hierarquizá-los, Zé do Carmo confirma nesses seres – tal qual vinha fazendo com os cangaceiros-anjos -, os fundamentos de uma religiosidade na qual o sagrado e o profano dão as mãos em comunhão; e expõe um modo todo seu de interpretar a sacralidade do que está ao seu redor para além dos dogmas da religião que professa.

Zé do Carmo veio ao mundo um mês antes do lançamento de Casa-grande & senzala. Admirador confesso de Gilberto Freyre, autor da inovadora obra, o artista goianense compartilha com o sociólogo a recusa pela difusão da figura do Papai Noel nestas escaldantes terras nordestinas. Assim foi que, depois de criar e materializar em barro o personagem Vovô Natalino, um substituto para o velhinho oriundo das terras geladas – a escultura repousa até hoje soberana em seu ateliê, fazendo companhia ao também admirável anjo-cangaceiro -, Zé do Carmo resolveu conceber um auto de Natal e dar vida à sua criação, contratando um rapaz para encarná-la. Lançando mão de economias de muitos anos, foi até a feira da cidade de Itabaiana, na Paraíba, comprar peças de couro a fim de mandar confeccionar as vestes do personagem – calça comprida e gibão -; comprou também alpercatas, chapéu e animais vivos para compor o presépio; além de um jumento que conduziria a carroça na qual o Vovô Natalino percorreria as ruas de Goiana distribuindo apenas brinquedos populares como bonecas de pano, manés-gostosos e rois-rois.

Renato Phaelante tanto gostou da ideia do auto de Natal que o seu amigo estava a montar, que resolveu convidar Gilberto Freyre para ir a Goiana participar do evento inaugural programado pelo ilustre artista daquela cidade. A notícia da ida do famoso sociólogo à cidade deixou Goiana num frenesi só. E no dia marcado – 25 de dezembro de 1982 – lá estava Gilberto Freyre acompanhado pela esposa Magdalena Freyre e pelo filho Fernando. A imagem de um Gilberto todo pimpão sentado ao lado do Vovô Natalino em cima da carroça que o próprio Zé do Carmo fabricou é de uma força evocativa de expressões telúricas como poucas vezes eu vi. Sou levado a crer que o autor de Região e tradição deva ter se sentido honrado com o acontecimento; e ficado emocionado vendo ali a permanência de valores tão defendidos por ele no Manifesto Regionalista.

Altivo e orgulhoso de si e da sua obra, como todo autêntico pernambucano, Zé do Carmo não esconde, por outro lado, as dificuldades que enfrentou ao longo dessas oito décadas de vida. Quem leu o já citado O reinado da lua encontrou depoimentos de artesãos que evidenciam o estado de pobreza em que a maioria deles vivia; depoimentos que faziam com que a dedicatória posta por Souza Barros no seu livro Arte, folclore, subdesenvolvimento – “Aos míseros artesãos e artistas populares do Brasil” (2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977, p. 23) – figurasse como um protesto e não como força de expressão. De alguma maneira Zé do Carmo alcançou um patamar de reconhecimento de sua obra que poucos lograram. Mas ele não esquece que também passou maus bocados, batalhando dia a dia para prover a mãe e os irmãos do necessário. Não esqueceu também das vezes em que lhe passaram a perna, como na ocasião em que uma mulher se prontificou a levar para o então presidente Getulio Vargas uma escultura que Zé fez desse gaúcho e até hoje ele não sabe aonde a obra foi parar; de outra feita um suposto marchand jurou de pés juntos que não recebera três telas que Zé do Carmo lhe enviara.

Aparecer em livros, jornais e revistas nunca deu a Zé do Carmo garantia de uma vida confortável. Houve um momento em que a situação com a arte não estava dando nem para pagar as contas e ele, juntamente com a esposa Marinalva, botou um fiteiro na mesma rua onde até hoje moram. Quando, em 2005, Zé do Carmo foi escolhido um dos artistas Patrimônio Vivo de Pernambuco e passou a receber uma aposentadoria vitalícia no ano seguinte – que ele junta com o benefício do INSS -, a coisa mudou um pouco, mas não tanto porque o reconhecimento estatal veio encontrá-lo numa etapa da vida em que problemas de saúde consomem boa parte das finanças.

Um dedinho de prosa com Zé do Carmo nos põe imersos em um mundo redescoberto, proustiano, onde assistimos a apresentações de caboclinhos e pastoris, percorremos ruas do Recife e de sua Goiana, ouvimos estórias dos oitões das igrejas, e rimos com as presepadas que ele conta. Conformado com o fato de o seu único filho não ter se interessado em dar continuidade ao seu ofício, Zé do Carmo permanece em sua casa-ateliê em meio a telas e esculturas alimentando ideias e concebendo planos como se ainda fosse um artista-menino, como se dispusesse de toda uma vida pela frente.

No poema “Os anjos de terr(a)cota”, escrito em homenagem a Zé do Carmo, Marcus Accioly delineia uma vivência inquieta, toda ela voltada para a consagração da arte como fundamento de uma existência:



Zé do Carmo (inda menino

ou como ele diz: moleque-

de-Goiana) foi à feira

e (além do chão) pegou frete



de mil réis pelo transporte

das galinhas (e um peru

de cerâmica) que ao sol

cozeram seu barro cru



(era o primeiro trabalho

do mestre-Zé que de-logo

se acostumou com os latidos

ou os mugidos do fogo).


Sempre frisando que é um artista e não um artesão, Zé do Carmo chegou aos oitenta anos contemplando com certa confiança as veredas que sinalizam a sua passagem para a eternidade.






Um comentário:

  1. Muito bom conhecer sobre nossa cultura local pouco revelada, valeu monstro!

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