Por Clênio Sierra de Alcântara
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Nem com uma flor? O feminicídio - e, por tabela, o racismo, a homofobia e o fundamentalismo religioso - é uma prova inconteste do grau de fracasso do nosso chamado processo civilizatório |
Uma lógica extremamente
cruel e perversa domina as sociedades, em geral, e a brasileira, em particular,
estabelecendo que às mulheres, aos homossexuais, aos negros, aos deficientes
físicos e mentais e aos pobres e miseráveis deve ser destinada uma completa e
total submissão ao mando do mundo masculino bem-sucedido: nada de contestação e
nenhum enfrentamento. Tudo é tramado para que a vida transcorra sob a ótica
única daquela suposta superioridade. Mas entre o pretendido e o estabelecido
existe todo um aparato de pessoas que não se submetem de maneira alguma ao
jugo. E é assim que tem que ser: baixar a cabeça é ser conivente com as
arbitrariedades e os abusos. É preciso se manter alerta e se impor, caso não, o
monstro da intolerância e do autoritarismo nos esmaga e devora. O cerceamento
da liberdade, o impedimento da fala, o obscurantismo, os dogmas religiosos, as
falsas barreiras de proteção, tudo isso constitui o tecido negro alinhavado
pela ordem dominadora.
Quase um mês depois daquele
episódio horrendo de estupro coletivo que vitimou quatro meninas no Piauí – o
crime hediondo ocorreu no dia 27 de maio -, duas mulheres foram sequestradas em
João Pessoa e levadas para um canavial em Goiana, na Zona da Mata norte
pernambucana, e ali foram estupradas e espancadas e, como aconteceu no Piauí,
uma delas foi morta. A sucessividade de ocorrências de estupros de mulheres –
não se divulga os casos de estupros de homens, embora eles também sejam
numerosos – no Brasil soma-se ao elevado índice de assassinatos envolvendo esposas
vitimadas por seus próprios companheiros. E lei nenhuma tem livrado nossas
mulheres dessas barbaridades. O recrudescimento do feminicídio de forma alguma
deve ser encarado como sintoma de um atavismo do qual os homens não conseguimos
nos livrar; é preciso enxergá-lo como um mal em si que deve o tempo todo ser
combatido.
No país onde o cômputo de
mortes por assassinato apresenta saldo de guerra civil, grande parte das
vítimas é jovem e negra, de ambos os sexos. Os crimes de motivação homofóbica
entram também nessa conta – e eles não são poucos. De modo que, em que pese uma
predominância entre os vitimados de indivíduos das chamadas minorias, é
evidente que a questão da criminalidade que tira pessoas de circulação como
quem lança objetos imprestáveis na lata do lixo, é um problema que atinge toda
a sociedade, é um mal generalizado.
Embora eu compreenda perfeitamente
que não existem “modelos de bem viver” – se há uma coisa muito certa que os
meus quarenta e um anos de idade me ensinaram é que na vida é preciso ter muita
coragem e não temer tudo o que vai aparecendo em nossa frente, porque viver é
estar o tempo todo numa corrida de obstáculos – e, talvez por isso mesmo, não
aceito que me venham com a postura de resignação de quem acredita que um
suposto poder sobrenatural há de proteger os fracos e oprimidos, e, muito
menos, que enxerguem o mundo em tons pastéis. A vida nos apresenta coisas muito
boas e maravilhosas, isso é inegável; e tanto é assim que não queremos abrir
mão de continuar vivendo. Por outro lado, quando a encaramos apenas pelo lado
bom, não nos preparamos para as adversidades e para os males que vão aparecendo
– e os males estão por toda a parte. Existem pessoas que vão ter toda a sua
existência marcada apenas por coisas ruins, sem chance alguma de poderem se
livrar delas. A vida também é assim. Aos que insistem em me dizer que tudo está
as mil maravilhas, eu lembro a eles que um sem-número de indivíduos vagam por
ruas e caminhos do mundo sem ter moradia e nem o que comer; aos que insistem em
não se arriscar e não têm coragem para enfrentar nada, porque agindo assim creem
se manter numa vida inteiramente dominada pela tranquilidade e pela
contemplação, eu falo para eles que é ilusão acreditar que se pode estar no
absoluto controle da existência; aos que insistem em se ver na obrigação de
serem pais para, no futuro, supostamente receberem cuidados dos filhos, eu
lembro a eles que existem milhares de orfanatos e asilos por este mundão afora;
aos que existem em propalar apenas uma visão idílica do viver, eu lhes digo que
a vida não dá garantia de nada.
Acredito piamente que sem
enfrentamento e sem postura de combate não se consegue superar os reveses que
se vão nos apresentando. Sou duramente criticado por algumas pessoas por conta
de certos posicionamentos que tomei na vida, como se o meu agir estivesse fora
da legalidade. Dessas pessoas que me criticam algumas são do tipo que acreditam
poder viver a salvo do mundo porque não tomam partido algum; já outras, pensam
que devem viver escondendo e/ou negando o tempo todo o que realmente pensam e
sentem. A maneira como eu me comporto é a correta? O modo como eu estou agindo
é o mais indicado? Bom, não sou porta-voz de ninguém além de mim mesmo e não
pretendo ser modelo de comportamento para quem quer que seja; mas o fato é que
se trata de uma postura que assumi para conduzir a minha vida. E ponto. Viver,
afinal de contas é, como certa feita escrevi, se preparar para as consequências.
Quando, anos atrás, eu falei
à minha mãe da minha bissexualidade – bissexualidade que eu vejo inclinada para
a homossexualidade -, não o fiz de modo inconsequente ou tomando isso como,
digamos, uma necessidade de falar. Não, era tão somente a vida acontecendo.
Para mim a situação foi encarada como algo absolutamente normal, porque eu não
tinha mais nenhuma neura com relação a isso, muito pelo contrário, eu tinha e
continuo tendo uma vida sexual plena. Eu já estava resolvido comigo mesmo, o
que é mais importante. Naquele momento o que eu fiz foi mencionar um dos
elementos que constitui a pessoa que eu sou, confirmado por mim mesmo, como no
dia em que eu me disse que sou ateu, uma verdade tão incontroversa para mim
quanto a sexualidade que eu vivencio. Agora, foi bom para a minha mãe ter
ouvido isso de mim? Não, não foi. Desde aquele dia o nosso relacionamento nunca
mais foi o mesmo, porque ela repudia a minha conduta sexual. Paciência. Se me
perguntarem – e sempre me perguntam – se eu, hoje, falaria a ela sobre isso, a
minha resposta é um sonoro e ruidoso “sim”. Eu não tolero qualquer tipo de
patrulhamento e ainda mais o dessa natureza. E procuro não deixar margem para
dúvidas na cabeça das mulheres com as quais me envolvo; digo a elas: “Eu me
relaciono sexualmente também com homens. Depois não venha dizer que foi
enganada”. E é assim que a minha vida tem seguido, sem que eu de maneira alguma
me importe com os comentários e com o disse-me-disse. Por mais danosos e
invasivos que possam vir a ser, o preconceito e a rejeição até o presente
momento não tiraram sequer uma nesga do meu desejo. Nenhum discurso de ódio,
nenhuma atitude ofensiva, nenhum ato condenador fará com que eu mude de
postura. Não adianta, é mais forte do que eu: eu não me deixo submeter. O
silêncio e a ocultação não são escudos inexpugnáveis para quem quer que almeje
viver com dignidade.
Não acredito numa
determinada e única idade da razão. A mim me parece que a consciência que cada
um chega a ter de si e dos seus conflitos existenciais varia muito de pessoa
para pessoa; e há quem atravesse toda a sua existência num embate tremendo
porque não conseguiu atingir uma plenitude possível, uma vez que reprimiu um
desejo e uma vontade enormes que estavam ao seu alcance e ela não os consumou
por pesar demais o que os outros iriam pensar – e não me refiro unicamente a
questões sexuais, evidentemente. E a vida, como bem sabemos, é uma só, não é um
jogo que termina e recomeça conforme a nossa disposição e querer.
Os meus últimos dias têm
sido de procura. Estou em busca de um abrigo no sentido literal do termo. As
circunstâncias têm me deixado inquieto. Às vezes parece que eu vou fraquejar
por pensar que eu deveria contar com o apoio de alguém nesta hora; mas, se eu
acreditar nisso, eu não vou sair do lugar incômodo em que me encontro, e
continuarei lamentando pelo que poderia ter sido e que não foi. Nem sempre as
metades se encaixam, essa é que é a verdade. Vou cuidar para que a correnteza
do rio da vida não carregue o que realmente move o meu ser: a liberdade, a vontade
de saber, a paixão e o prazer. Enquanto a vida pulsar em mim, não vou querer
carregar sangue morto nas veias; e não vou querer viver esperando por uma
redenção improvável do mundo que me rodeia. E há de ser assim até o fim dos
meus dias.
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