19 de agosto de 2016

Sem nenhuma medalha no peito

Por Clênio Sierra de Alcântara




Nem ouro, nem prata, nem bronze. A morte do soldado Hélio Andrade marcou mais um triste capítulo da história da criminalidade do Rio de Janeiro





Diariamente a crônica policial que vem sendo escrita no Rio de Janeiro nos dá cada vez mais certeza de que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s), um projeto governamental pensado como uma possibilidade determinante para combater eficazmente a criminalidade desde sempre imperante nas terras fluminenses, bem como para garantir à população, em geral, e às pessoas que habitam áreas mais críticas, em particular, alguma segurança para que elas possam viver confiantes de que não foram abandonadas completamente pelo Estado e acreditar que estão de certa maneira sendo protegidas, redundou em um retumbante fracasso. 

Historicamente vistas como resultado do pouco caso, do desleixo e do “não tô nem aí” de políticos populistas que ocuparam o Palácio Guanabara, as favelas – ou comunidades, como alguns preferem chamá-las – deixaram de ser apenas o destino de homens e mulheres desempregados e/ou “assalariados” que foram constante e forçosamente, desde antes da excludente belle époque pereirapassiana – que higienizou, modernizou e embelezou o Rio de Janeiro, então capital federal, encarecendo os aluguéis e expulsando do cenário urbano os desvalidos –, sendo encaminhados para os morros e outros subúrbios, em territórios que acabaram se transformando – também em razão da inépcia do Estado – em redutos dominados por criminosos que estabelecem e ditam as leis que eles bem entendem a fim de impor suas vontades e fazer da intimidação feroz, da ocupação permanente do espaço, da ameaça cruel e cotidiana e da implantação perene do medo os instrumentos necessários para a manutenção de uma governança atroz que não reconhece qualquer outra autoridade que não seja a deles mesmos e subjuga implacavelmente o cidadão de bem.

Não é agir tolamente montar bases de policiamento em áreas onde a criminalidade impera há décadas, sem que se busque estancar e/ou dificultar o acesso dos traficantes a arsenais espantosamente superiores aos dos policiais? Não é ser ingênuo demais acreditar que a simples presença de agentes da lei fará com que homens que mantêm uma cadeia de articulação e de ação espalhada para além de um, digamos, ponto-base, deixem de manter suas transações e negócios que movimentam milhões de reais mensalmente? Não é, de certo modo, abusar da nossa inteligência e da nossa credulidade e paciência estabelecer um suposto plano de pacificação comunitária em territórios dominados pela bandidagem por anos a fio sem que se consiga nem ao menos estancar a circulação das toneladas de drogas que alimentam e sustentam todo o aparato criminoso?

O Rio de Janeiro de paisagens estonteantes que por ora abriga um evento esportivo de alcance global continua, infelizmente, refém e submisso às ordens e às vozes de comando que partem das bocas de alguns poderosos traficantes. A escalada da criminalidade no Rio de Janeiro que, todos sabemos, não é de hoje, continua a zombar do arcabouço legal e a promover atrocidades empunhando a indecente, perturbadora e acintosa bandeira da impunidade.

Enquanto as disputas esportivas distraíam e entusiasmavam torcedores no parque olímpico, fora das arenas de competições, na realidade cruel das ruas do Rio de Janeiro, a Segurança Pública dava outra vez prova de que, mesmo com o reforço temporário recebido para salvaguardar a realização da Olimpíada, ela continuava insegura e indefesa. Ampliando a já estarrecedora estatística que até o dia 13 de julho computava a morte de sessenta e sete agentes de segurança (policiais militares e civis e bombeiros) ocorridas somente neste ano, na noite do último dia 10, uma guarnição formada por agentes da Força Nacional entrou por engano, segundo se disse, na Vila do João, no Complexo da Maré, e foi recebida a tiros, um dos quais atingiu a cabeça do soldado Hélio Andrade, de 35 anos de idade, que foi socorrido, mas acabou falecendo no dia seguinte.

Muito por culpa do modo como a própria estrutura organizacional e operativa do Estado age para instruir e formar os agentes da Segurança Pública, instrumentalizando-os e fazendo-os acreditar que são efetivamente “cidadãos à parte” entre a população, somos uma sociedade que ainda interage de maneira inapropriada com esses indivíduos, como se eles não fossem pessoas e sim autômatos a serviço dos órgãos governamentais. Daí por que muitos de nós nos sentimos como que intimidados com a presença deles e não raro mantenhamos, paradoxalmente, uma indiferença tal para com eles que faz com que fundamentalmente não nos importemos com seus sentimentos, angústias e fraquezas, que são tão humanas quanto as nossas, e façamos de conta que não nos diz respeito o peso do luto que suas famílias carregam quando um deles é assassinado no exercício de sua profissão ou mesmo durante a folga.

Ainda há pouco o antropólogo Cristiano Galvão, um intelectual bastante atuante que eu admiro e estimo, escreveu num artigo que “Formada por uma natureza simbiótica e dual a polícia brasileira nasceu agregada aos regimes da hierarquia militar, treinada para a guerra, mas com responsabilidade funcional de proteger a sociedade”. Penso que talvez resida nessa dualidade a barreira invisível e ao mesmo tempo densa que impede que um e outro lado se enxergue como cidadãos que de fato são; e, quando um não se reconhece no outro, é impossível que se estabeleça um mínimo que seja de empatia.


O soldado Hélio Andrade não subiu ao pódio na Olimpíada do Rio de Janeiro. Saiu de cena sem ostentar nenhuma medalha no peito. Na ausência do outro, da prata e do bronze que ele não obteve, destinemos à sua memória ao menos o nosso respeito e a nossa compaixão.

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