12 de janeiro de 2017

Morticínio no cárcere

Por Clênio Sierra de Alcântara


Foto: G1     Retrato fiel e acabado de nossa indigência social, as cadeias e presídios brasileiros passam bem ao largo de qualquer senso de humanidade


A história horripilante da violência nossa de cada dia ganhou, na semana passada, uma dessas passagens macabras que deveriam ser tomadas como pontos definidores de uma reavaliação a respeito do que tem sido a baliza das ações do Estado brasileiro na esfera do vigiar e punir.

A privação da liberdade de ir e vir deveria por si só ser a pena justa destinada a todo aquele que cometeu um crime que se enquadre nessa sentença. Mas engana-se estupidamente quem acredita que ao ser detido e mandado para uma unidade prisional, no Brasil, o indivíduo estará verdadeiramente sob a tutela e guarda do Estado. Longe, bem longe disso. Ao ingressar num dos presídios estaduais deste país o apenado entra num grande inferno no qual a superlotação das celas e as condições degradantes e subumanas do cárcere são apenas um detalhe a demonstrar a falência do sistema prisional brasileiro.

Ao adentrar numa dessas quase masmorras o delinquente se vê forçado a se submeter não propriamente aos ditames das leis que regem um estado de direito, mas a um conjunto opressivo e intimidador de regras estabelecido por chefes do crime organizado que são, de fato, os reais controladores do cotidiano dessas prisões. De modo que, ou o cara se sujeita a cumprir as determinações dos marginais-autoridades que, entre outras coisas, inclui o pagamento de uma taxa de proteção, ou ele pode ficar certo de que sua vida não será poupada na próxima rebelião – ou ainda, para aumentar a pressão psicológica e o terror, os chefões todo-poderosos ameaçam mandar matar os parentes dos insubmissos.

Não estou entre aqueles que dizem que todo castigo para bandido é pouco. Mas também não apoio os defensores do abrandamento das penalidades para crimes de qualquer natureza, regime de progressão de pena, prisão domiciliar e quetais, que enchem a vista de criminosos em potencial que enxergam na legislação brasileira uma proteção – e eu ia quase dizia incentivo – para práticas criminosas. E nem acredito em ressocialização de assassinos e estupradores. Compreendo que unidades prisionais devam ser lugares que nunca façam o indivíduo que delinquiu pensar que o crime compensa e que, lá dentro, o espírito humano deixou de existir. Pelo contrário. Aos apenados deveria ser mostrado o quanto que a liberdade é um bem precioso; e que o processo civilizatório se estabeleceu nas sociedades para que todos nós abandonássemos a bestialidade e a barbárie e passássemos a procurar viver de maneira pacífica entre os nossos iguais.

Quando, ao iniciar o ano, fomos apresentados ao morticínio de mais de cinquenta detentos num presídio de Manaus, no Amazonas, e, cinco dias depois, um episódio da mesma natureza, desta feita ocorrido numa prisão de Boa Vista, capital de Roraima, ceifou a vida de quase quarenta apenados, novamente nos certificamos de que as autoridades públicas brasileiras tratam das coisas sérias com total descaso e nenhuma seriedade. As indagações são inúmeras, pertinentes e merecedoras de respostas satisfatórias: por que os agentes do Estado permitem a subjugação de presos por outros presos? Por que entram tantas armas, drogas e celulares nas prisões? Por que não se busca acabar com a superlotação dos presídios construindo outros?

Poderíamos ser levados a acreditar que de tais acontecimentos estarrecedores, verificados no Amazonas e em Roraima, o Estado brasileiro haverá de tirar alguma lição. Ocorre que não é por falta de exemplos e de didatismo – quem não se recorda do que aconteceu no Complexo Prisional de Pedrinhas, no Maranhão, no ano passado, e no do Curado, aqui em Pernambuco? – que as autoridades públicas não reagem contra essa calamidade vergonhosa; é por pura e simples falta de iniciativa e por uma crença infeliz e imbecil que as faz pensar que vale mais a pena financiar a construção de estádios de futebol milionários e aumentar o número de dependentes do Bolsa Família do que erguer e/ou reformar presídios, como se isso fossem coisas excludentes. A vida requer, meus senhores, bem mais do que pão e circo.

É a revolta, a vontade de fazer justiça com as próprias mãos, o desejo de vingança e a descrença na aplicação justa de uma pena, que faz com que tantos de nós – por vezes escancaradamente, por vezes à boca pequena -  lancemos os mais vis impropérios contra os presidiários e desejemos que sempre o pior aconteça com eles, fazendo com que um ódio ancestral nos conduza de volta à animalidade e à barbárie.

A banalidade do mal que nos assombra diariamente em todas as esferas sociais também ela nos pune ao fazer com que nos sintamos indefesos e, ao mesmo tempo, incuta em nós essa carga de insatisfação perante a escalada infrene da violência que faz par com a inoperância das autoridades que nos (des)governam e que, em situações como as havidas no Amazonas e em Roraima, ficam a trocar acusações, eximindo-se da culpa, como se a responsabilidade e/ou a falta dela fosse um joguinho de tabuleiro no qual a ação depende do que diz a casa para a qual os dados que são lançados sobre ele mandam ir. Temos diante de nós um sistema prisional completamente falido e um punhado de autoridades que parecem não enxergar a extrema gravidade dos fatos desumanos que dominam cotidianamente essas instituições.


Nenhum comentário:

Postar um comentário