6 de janeiro de 2017

Do Engenho Jundiá até Paris: os itinerários pictóricos de Cícero Dias sob a lente de Vladimir Carvalho

Por Clênio Sierra de Alcântara


Foto: divulgação  Cícero Dias, sua filha Sylvia e o compadre Picasso: vida e arte em bonito e saudosista registro cinematográfico de Vladimir Carvalho


Menino de engenho, assim como o foram alguns dos mais consagrados artistas brasileiros, como os paraibanos José Lins do Rego e Augusto dos Anjos, e o alagoano Jorge de Lima, Cícero Dias (1907-2003), pernambucano da cidade de Escada, atravessou o território da infância desfrutando das delícias do Engenho Jundiá e conhecendo também ali as cruezas banais que constituem o mundo. Para além do verde dos canaviais e dos tons pastéis das brincadeiras infantis existia o negro dos trajes das pessoas nos dias de luto, dizendo que a vida não era só feita de um céu azul e límpido, da água morna do rio tão convidativa para os banhos e do canto dos pássaros que se achegavam para cima do telhado da casa-grande: a vida era um campo vasto onde cabiam ainda as desilusões, as perdas e a morte.

O mundo possível do menino Cícero Dias irá figurar de modo inescapável no universo pictórico que o homem da cidade Cícero Dias, como pintor, constituirá ao longo de oito décadas num trabalho intenso que percorrerá cenários tão diversos como a sua Escada natal, o Recife, o Rio de Janeiro, Paris e Lisboa. E, nessa labuta imagética, a profusão de cores e o proustiniano resgate e/ou necessário registro do arcabouço do seu passado, irá preencher com uma verve própria de quem ambiciona construir uma obra sólida, telas e mais telas com flagrantes daquele bucolismo que será entremeado por paisagens oníricas, porque elas fundamentalmente eram o complemento de sua realidade.

Grande amigo de Cícero Dias, o sociólogo Gilberto Freyre, cuja personalidade irrequieta e instigadora atraía tantos artistas, escreveu vários artigos a respeito do escadense que ele muito admirava. Num desses textos ele disse algo – e isso lá na década de 1930 – que considero a síntese mais expressiva e precisa que eu conheço acerca do pintor de “Amor Maria”: “Cícero Dias desarruma as coisas, as pessoas e os animais da terra para juntar depois figuras e objetos que nunca ninguém viu juntos” (originalmente publicado em folheto no Recife, em 1933, sob o título II Exposição Cícero Dias na Escada, apareceu intitulado “A pintura de Cícero Dias: seu ‘sur-nudisme’” no livro Retalhos de jornais velhos [que é a 2ª edição, revista e aumentada, da obra Artigos de jornal, de 1935], lançado pela Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, em 1964, dentro das Obras reunidas de Gilberto Freyre. A citação aparece na página 150. E não podemos nos esquecer que foi ainda em 1933 que Freyre lançou o seu clássico absoluto Casa-grande & senzala, estudo que contou com uma ilustração das dependências do Engenho Noruega feita por Cícero Dias  a partir de sugestões do autor). Quase dez anos depois, num tempo em que Cícero Dias se encontrava já em Paris, para onde se mudara em 1937 devido à pressão da ditadura de Getulio Vargas, o autor de Sobrados e mucambos fez novamente com palavras outro retrato de Cícero, desta feita nas páginas da edição do dia 7 de novembro de 1942 do Diário da Manhã, do Rio de Janeiro: “Seu pincel é quase uma vassoura de bruxo. Suas cores são outras tantas coisas de bruxaria. Seus azuis e encarnados são exclusivamente dele e do povo e do folclore e não das receitas certas e rígidas das escolas”. E mais adiante Freyre sentenciaria que ninguém era mais vivo, corajoso, pessoal, “fiel a si mesmo, fiel aos seus amigos, fiel à sua pintura” do que Cícero Dias (“Cícero Dias e seu ‘nonsense’” in Clarissa Diniz e Gleyce Heitor (orgs.). Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Funarte, 2010. As citações aparecem respectivamente assim: p. 185-186 e p. 186).

Foi a trajetória do renomado pintor escadense que o arguto e incansável documentarista Vladimir Carvalho, outro paraibano de boa cepa, buscou descrever em seu Cícero Dias, o compadre de Picasso, ao qual eu fui assistir na tardinha do último dia 7 de dezembro no Cinema São Luiz, no Recife.

Reunindo depoimentos de algumas das mais admiráveis personalidades pernambucanas, como Francisco Brennand, José Cláudio e Edson Nery da Fonseca – eu acompanhei a gravação do depoimento de Edson no hoje quase distante novembro de 2013, na sua casa, em Olinda – e de, entre outros, do paraibano pernambucanizado Ariano Suassuna, Vladimir Carvalho procurou traçar um panorama da vida e da obra de Cícero Dias percorrendo sendas e veredas deixadas pelo pintor que foi compadre de Pablo Picasso – o espanhol era padrinho da filha de Cícero, Sylvia Dias – sem deixar de abordar pelo menos dois dos aspectos mais discutidos da carreira de Cícero que são: a propalada influência que sobre ele teriam os trabalhos do pintor russo Marc Chagall – a esse respeito José Cláudio defende veementemente Cícero Dias reiterando uma postura que conserva há anos, dizendo que, enquanto Chagall era religioso, ensimesmado e noturno, Cícero era diurno, carnal, pagão (veja-se a propósito o depoimento “O que não se vê em Cícero Dias”, de sua autoria, que aparece em Quatro faces de um encanto: Cícero Dias, livrinho muito simpático organizado por Karla Melo e Patrícia Tenório que foi lançado pela Calibán, do Rio de Janeiro, em 2008) –; e a incorporação à sua pintura de elementos abstracionistas e cubistas que resultaram em trabalhos como “Galo ou Abacaxi” e “Mamoeiro ou Dançarino”, da década de 1940, que provocaram reações acaloradas e por vezes de crítica acerba, como as do jornalista Mário Melo, porque, de certa forma, essa fase da pintura de Cícero Dias como que sepultou inteiramente aquela atmosfera de sonho que se enxergava em suas produções dos anos de 1920, e isso causou estranheza e até desapontamento no meio do seu público admirador que vendo o que via deveria, imagino, se perguntar: “Então foi isso que Cícero foi aprender a fazer em Paris?”.

A câmera curiosa de Vladimir Carvalho avança por sob as pontes do Recife e chega ao Marco Zero da cidade onde Cícero Dias deixou escrito no chão o testemunho de que vira o mundo e ele principiava justamente não na Paris de Montmartre e da Champs-Elysées, mas na capital pernambucana. Noutra sequência e agora bem lá do alto, como se estivesse em companhia daquele homem do poema “Glória de Cícero Dias”, do mineiro Murilo Mendes, que chega ao céu carregando “ainda a lembrança da gente obsura da terra” – cito os versos a partir da página 101 do volume único da Poesia completa e prosa de Murilo Mendes, organizado por Luciana Stegagno Picchio para a Editora Nova Aguilar, do Rio de Janeiro, que foi lançado em 1994 -, a câmera registra as ruínas da casa-grande do Engenho Jundiá. O canavial do seu entorno certamente ainda deve estar sendo destinado ao fabrico do doce e prazeroso açúcar, mas o que as imagens nos revelam é uma nota amarga e melancólica.

Seja como for, àquela altura a glória já fora alcançada por Cícero Dias; e ele – imaginemos uma pintura com esse motivo -, assim como o homem dos versos murilianos, se vê cercado de anjos que, acompanhados por “uma banda de músicos toda pachola”, gritam diante dele “batendo palmas com emoção”.

(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], nº 6, Opinião, p. 2, fevereiro de 2017).

Nenhum comentário:

Postar um comentário