Por Clênio Sierra de
Alcântara
Foto: divulgação Cícero Dias, sua filha Sylvia e o compadre Picasso: vida e arte em bonito e saudosista registro cinematográfico de Vladimir Carvalho |
Menino de engenho, assim
como o foram alguns dos mais consagrados artistas brasileiros, como os
paraibanos José Lins do Rego e Augusto dos Anjos, e o alagoano Jorge de Lima, Cícero
Dias (1907-2003), pernambucano da cidade de Escada, atravessou o território da
infância desfrutando das delícias do Engenho Jundiá e conhecendo também ali as
cruezas banais que constituem o mundo. Para além do verde dos canaviais e dos
tons pastéis das brincadeiras infantis existia o negro dos trajes das pessoas
nos dias de luto, dizendo que a vida não era só feita de um céu azul e límpido,
da água morna do rio tão convidativa para os banhos e do canto dos pássaros que
se achegavam para cima do telhado da casa-grande: a vida era um campo vasto
onde cabiam ainda as desilusões, as perdas e a morte.
O mundo possível do menino
Cícero Dias irá figurar de modo inescapável no universo pictórico que o homem
da cidade Cícero Dias, como pintor, constituirá ao longo de oito décadas num
trabalho intenso que percorrerá cenários tão diversos como a sua Escada natal,
o Recife, o Rio de Janeiro, Paris e Lisboa. E, nessa labuta imagética, a
profusão de cores e o proustiniano resgate e/ou necessário registro do arcabouço
do seu passado, irá preencher com uma verve própria de quem ambiciona construir
uma obra sólida, telas e mais telas com flagrantes daquele bucolismo que será
entremeado por paisagens oníricas, porque elas fundamentalmente eram o
complemento de sua realidade.
Grande amigo de Cícero Dias,
o sociólogo Gilberto Freyre, cuja personalidade irrequieta e instigadora atraía
tantos artistas, escreveu vários artigos a respeito do escadense que ele muito
admirava. Num desses textos ele disse algo – e isso lá na década de 1930 – que considero
a síntese mais expressiva e precisa que eu conheço acerca do pintor de “Amor
Maria”: “Cícero Dias desarruma as coisas, as pessoas e os animais da terra para
juntar depois figuras e objetos que nunca ninguém viu juntos” (originalmente
publicado em folheto no Recife, em 1933, sob o título II Exposição Cícero Dias na Escada, apareceu intitulado “A pintura
de Cícero Dias: seu ‘sur-nudisme’” no livro Retalhos
de jornais velhos [que é a 2ª edição, revista e aumentada, da obra Artigos de jornal, de 1935], lançado
pela Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, em 1964, dentro das Obras reunidas de Gilberto Freyre. A citação
aparece na página 150. E não podemos nos esquecer que foi ainda em 1933 que
Freyre lançou o seu clássico absoluto Casa-grande
& senzala, estudo que contou com uma ilustração das dependências do
Engenho Noruega feita por Cícero Dias a
partir de sugestões do autor). Quase dez anos depois, num tempo em que Cícero
Dias se encontrava já em Paris, para onde se mudara em 1937 devido à pressão
da ditadura de Getulio Vargas, o autor de Sobrados
e mucambos fez novamente com palavras outro retrato de Cícero, desta feita
nas páginas da edição do dia 7 de novembro de 1942 do Diário da Manhã, do Rio de Janeiro: “Seu pincel é quase uma
vassoura de bruxo. Suas cores são outras tantas coisas de bruxaria. Seus azuis
e encarnados são exclusivamente dele e do povo e do folclore e não das receitas
certas e rígidas das escolas”. E mais adiante Freyre sentenciaria que ninguém
era mais vivo, corajoso, pessoal, “fiel a si mesmo, fiel aos seus amigos, fiel
à sua pintura” do que Cícero Dias (“Cícero Dias e seu ‘nonsense’” in Clarissa
Diniz e Gleyce Heitor (orgs.). Gilberto Freyre.
Rio de Janeiro: Funarte, 2010. As citações aparecem respectivamente assim: p.
185-186 e p. 186).
Foi a trajetória do renomado
pintor escadense que o arguto e incansável documentarista Vladimir Carvalho,
outro paraibano de boa cepa, buscou descrever em seu Cícero Dias, o compadre de
Picasso, ao qual eu fui assistir na tardinha do último dia 7 de dezembro no
Cinema São Luiz, no Recife.
Reunindo depoimentos de
algumas das mais admiráveis personalidades pernambucanas, como Francisco
Brennand, José Cláudio e Edson Nery da Fonseca – eu acompanhei a gravação do
depoimento de Edson no hoje quase distante novembro de 2013, na sua casa, em
Olinda – e de, entre outros, do paraibano pernambucanizado Ariano Suassuna,
Vladimir Carvalho procurou traçar um panorama da vida e da obra de Cícero Dias
percorrendo sendas e veredas deixadas pelo pintor que foi compadre de Pablo
Picasso – o espanhol era padrinho da filha de Cícero, Sylvia Dias – sem deixar
de abordar pelo menos dois dos aspectos mais discutidos da carreira de Cícero
que são: a propalada influência que sobre ele teriam os trabalhos do pintor
russo Marc Chagall – a esse respeito José Cláudio defende veementemente Cícero
Dias reiterando uma postura que conserva há anos, dizendo que, enquanto Chagall
era religioso, ensimesmado e noturno, Cícero era diurno, carnal, pagão (veja-se
a propósito o depoimento “O que não se vê em Cícero Dias”, de sua autoria, que
aparece em Quatro faces de um encanto:
Cícero Dias, livrinho muito simpático organizado por Karla Melo e Patrícia
Tenório que foi lançado pela Calibán, do Rio de Janeiro, em 2008) –; e a
incorporação à sua pintura de elementos abstracionistas e cubistas que
resultaram em trabalhos como “Galo ou Abacaxi” e “Mamoeiro ou Dançarino”, da
década de 1940, que provocaram reações acaloradas e por vezes de crítica
acerba, como as do jornalista Mário Melo, porque, de certa forma, essa fase da
pintura de Cícero Dias como que sepultou inteiramente aquela atmosfera de sonho
que se enxergava em suas produções dos anos de 1920, e isso causou estranheza e
até desapontamento no meio do seu público admirador que vendo o que via
deveria, imagino, se perguntar: “Então foi isso que Cícero foi aprender a fazer
em Paris?”.
A câmera curiosa de Vladimir
Carvalho avança por sob as pontes do Recife e chega ao Marco Zero da cidade
onde Cícero Dias deixou escrito no chão o testemunho de que vira o mundo e ele
principiava justamente não na Paris de Montmartre e da Champs-Elysées, mas na
capital pernambucana. Noutra sequência e agora bem lá do alto, como se
estivesse em companhia daquele homem do poema “Glória de Cícero Dias”, do
mineiro Murilo Mendes, que chega ao céu carregando “ainda a lembrança da gente
obsura da terra” – cito os versos a partir da página 101 do volume único da Poesia completa e prosa de Murilo Mendes,
organizado por Luciana Stegagno Picchio para a Editora Nova Aguilar, do Rio de
Janeiro, que foi lançado em 1994 -, a câmera registra as ruínas da casa-grande
do Engenho Jundiá. O canavial do seu entorno certamente ainda deve estar sendo
destinado ao fabrico do doce e prazeroso açúcar, mas o que as imagens nos
revelam é uma nota amarga e melancólica.
(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], nº 6, Opinião, p. 2, fevereiro de 2017).
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