30 de dezembro de 2016

George Michael: uma voz da liberdade para além da tristeza e da dor

Por Clênio Sierra de Alcântara


Foto: divulgação     A morte de George Michael encerra um ano de grandes perdas                     de artistas do universo da música pop


Enquanto nos Estados Unidos dos vibrantes anos 80 do século passado a música pop era intensamente marcada pela potência criadora e inventiva de um Michael Jackson, pelo talento de um multi-instrumentista chamado Prince e pelas vertigens e peripécias de uma Madonna, no Reino Unido, primeiro formando a dupla Wham! com Andrew Ridgeley e, depois, despontando em ascendente carreira solo, George Michael surgiu atraindo a muitos holofotes e conquistando fãs ao redor do mundo, legião na qual desde cedo eu me incluí.

Reunindo uma beleza magnetizante com uma voz que era também ela de enorme poder de atração, George Michael era a um só tempo o boa pinta que enchia os olhos das garotas – e dos garotos também, claro, porque beleza não faz mal nenhum a ninguém – e o rapaz que cantava, como se dizia naquele tempo, muito direitinho, o que era um mel na sopa para uma indústria fonográfica sempre ávida e disposta a descobrir e lançar nomes novos no mercado, ainda que, por vezes, esses ditos talentos acabassem não passando do segundo disco.

Não foi esse o caso de George Michael que, tendo já conquistado o sucesso na companhia de Ridgeley, alçou voos ainda mais altos com discos que conjugavam sempre baladas românticas com canções de forte apelo dançante. Sucedendo ao megasucesso “Careless whisper”, digna de figurar em qualquer lista de programas radiofônicos de love songs, vieram pequenas joias do cancioneiro pop cantado em inglês, como “Father figure”, “Heal the pain”, “Freedom 90” e “Fastlove”, músicas essas que confirmavam que George não era apenas um rostinho bonito, mas também um compositor talentoso que amadurecia artisticamente criando melodias em perfeita sintonia com versos que, de alguma maneira, buscavam não somente retratar um estado de ânimo, bem como o espírito do seu tempo.

Eu falei de maturidade aqui querendo entrar no campo das turbulências da vida pessoal que, inevitavelmente, deixariam em George Michael sinais reveladores de que as coisas não iam nada bem para com ele. Se Prince era o artista atormentado que talvez se sentisse não inteiramente compreendido e/ou reconhecido pelo tamanho talento que tinha – quem não se lembra, por exemplo, da época em que ele passou a querer ser “chamado” não pelo nome de batismo e sim por um símbolo? – e Madonna era a mulher que, apesar da baixa estatura física – ela mede pouco mais de um metro e sessenta de altura -, se apresentava como uma fêmea gigante que dia a dia ia construindo uma imagem e fazendo sua plateia crer que ela era realmente tudo aquilo que dizia ser, George era, assim como Michael Jackson, um homem que, não duvido, sofria terrivelmente com uma homossexualidade que por uma ou algumas razões – quem sabe integralmente o que se passa na cabeça de alguém e ainda mais se esse alguém é um astro do show business? – era reprimida; e, no seu caso, a revelação de que ele se relacionava sexualmente com homens acabou vindo a público, em 1998, de uma forma bastante constrangedora, para dizer o mínimo – denunciador de sua falta de tato para lidar com o episódio foi o clipe da música “Outside”, em que ele buscou fazer troça e debochar do ocorrido e que, a meu ver, resultou em algo ainda mais constrangedor porque o deboche até que valeria, se ele fosse um cara bem resolvido sexualmente e, assim como Elton John, seu grande amigo, não estivesse nem aí para o que pensavam dele. É curioso esse seu comportamento em relação à aceitação da homossexualidade porque, além de o pop inglês contar com outro astro daquele tempo declaradamente gay, que era Boy George, no início da década de 90, George Michael aparecerá ao lado dos remanescentes do grupo Queen cantando para arrecadar fundos destinados a instituições de luta contra a AIDS, uma síndrome devastadora que surgia como uma “doença da comunidade gay”, e que faria do incomparável Freddie Mercury, vocalista daquela banda, uma das primeiras celebridades mortalmente vitimadas por ela.

As tormentas da vida de George Michael ficaram como que condensadas no álbum Older, lançado em 1996, que foi dedicado a dois brasileiros: a Tom Jobim “who changed the way I listened to music”; e a Anselmo Feleppa, o homem que ele conheceu no Brasil e que se tornaria seu namorado e “who changed the way that look at my life”. Sim, George Michael estava mais velho, porque o tempo passa para todos e cada um de nós; e nesse disco-reflexão ele decerto procurou expurgar-se de seus sofrimentos, numa expiação que tem algo de muita melancolia. A certa altura da música “Move on” – na verdade, finalizando-a – ele proclamou: “I’m gonna be lucky in love someday”. Talvez esse lamento estivesse ligado à perda de Anselmo, que morrera e que levou George a compor também uma das mais belas canções de toda a sua carreira e que abre Older – assim como a coletânea Ladies & gentlmen, de 1998 – como se fosse um rito de uma religiosidade que era só dele: “Jesus to a child”, que traz um testemunho digno de quem realmente conheceu um amor intenso e verdadeiro: “you will always be... my love”.

Num ano em que o mundo da música pop perdeu alguns dos seus nomes mais expressivos, como David Bowie e Prince, George Michael também nos deixou no domingo passado, aos 53 anos de idade, vítima de um enfarte, segundo o noticiário. O talentoso artista que em “Heal the pain” dizia “be good to yourself/because nobody else/has the power to make you happy”, ao que parece, estava mergulhado num sofrimento infindo que muito certamente se devia à inconformidade com a perda de sua mãe Lesley, ocorrida anos atrás. Calou-se aquele que um dia foi chamado de “golden boy” e que em dueto com a superdiva Aretha Franklin ouviu-a entoar expressivamente estes versos tão animadores da canção “I knew you were waiting (for me)” que bem poderiam ter sido escritos por ele: “Like a warrior that fights/and wins the battle/I know the taste of victory”.

George Michael que, em “Freedom 90”, pregou a plenos pulmões a suprema liberdade dizendo que “all we have to do now/is take these lies and make them true somehow/all we have to see/is that I don’t belong to you/and you don’t belong to me”, percorreu os últimos anos de sua vida prisioneiro da tristeza e da dor.

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