23 de dezembro de 2016

Feiras livres (14)

Por Clênio Sierra de Alcântara



Fotos: do autor    Entrada da pequena feira livre de Itapiçuma: essa feira é uma das sobrevivências da memória social da cidade


Centro (Itapiçuma - PE). O estudo das origens das feiras livres nordestinas ou, dito de outro modo, um olhar para o passado das mais antigas feiras livres que ainda resistem em praticamente todas as cidades do Nordeste, podem revelar aspectos curiosos e surpreendentes no que diz respeito à configuração espacial que várias delas possuíam, o que, por extensão, pode dizer muito da própria reconfiguração do tecido urbano dos burgos onde elas existem. Esse ponto, em particular, é bastante relevante porque, ao mesmo tempo que nos informa das transformações por que o espaço citadino passou, faz com que entendamos como a feira em si perdeu e/ou ganhou prestígio ao longo dos anos dentro da dinâmica do grupo social no qual ela está inserida.






Este prédio azul é o antigo mercado público do município


Dando continuidade ao meu interesse de conhecer e vivenciar experiências em feiras livres, na manhã da sexta-feira 30 de setembro, eu atravessei a Ponte Getulio Vargas, que liga a Ilha de Itamaracá, onde moro, ao continente, para percorrer a menor feira livre que eu até hoje conheci, que é a que existe na área de ocupação urbana mais antiga na cidade de Itapiçuma – me desculpe o leitor por minha preferência pela grafia antiga do nome desse município.


Quem vê hoje a configuração da feira livre de Itapiçuma – o dia principal da feira é o sábado – custa a acreditar que há cerca de trinta anos ela ocupava toda a área da Praça Agamenon Magalhães, era bem maior que a de Igaraçu e atraía feirantes e compradores de outras cidades, sendo um grande e movimentado acontecimento social da localidade, segundo alguns depoimentos que eu colhi durante a pesquisa.


Nesta foto e na seguinte vê-se a Praça Agamenon Magalhães






Imagem do interior do antigo mercado público






De acordo com Auda Rosa, 64 anos, professora aposentada e moradora de Itamaracá, a feira era enorme e muito diversificada: “A gente saía daqui da ilha e ia pra lá. Era muito boa. Tinha ‘rua’ de roupa, de verdura, de fruta. A melhor parte era a ‘rua’ das galinhas”. Curioso foi constatar em seu depoimento que, embora frequentemente fosse feirar por ali, ela não tenha lembranças do funcionamento do amplo mercado público, atualmente desativado. O fechamento desses estabelecimentos é, infelizmente, uma realidade que eu tenho verificado em vários lugares por onde ando.


Tendo seguido os passos de sua mãe, a feirante Antônia Maria, de 59 anos, expõe em seu banco tapioca, bolos e coco. Contou-me que a feira livre de antigamente atraía muita gente; e que a de Igaraçu não chegava nem perto do tamanho dela: “A praça era cheia. Vinha gente de tudo quanto é canto”. Ela recordou ainda do tempo em que o mercado público funcionava: “Era bom também. Tinha farinha, feijão... Tudo naqueles sacos grandes, sabe?”.








Antônia Maria seguiu o ofício de feirante de sua mãe










Os bancos dos comerciantes – uns são confeccionados com madeira e outros com aço; e todos são cobertos com lonas plásticas – da pequena feira livre de Itapiçuma, que não chegam a vinte, ocupam a Rua José Gonçalves que, nos tempos áureos, abrigava somente o comércio de peixes, crustáceos e moluscos. Quase tudo que é posto à venda – frutas, legumes e verduras, temperos e especiarias – é oriundo do Centro de Abastecimento e Logística de Pernambuco (Ceasa), localizado no Recife. Na mesma rua onde a feira é armada está localizado o antigo mercado público, que atualmente serve a outros usos temporários determinados pela Municipalidade; e é digno de nota também o fato de que aquela rua ladeia um supermercado que, claro, possui uma seção de hortifrutigranjeiros, ou seja, disputa fregueses com a feira.














Dada a localização geográfica do espaço da feira – a poucos metros da beira do Canal de Santa Cruz, o largo braço de mar que separa a Ilha de Itamaracá de Itapiçuma -, fiquei a imaginar quão bonito que deveria ser a chegada dos ilhéus em embarcações para fazer a feira num tempo em que, como bem lembrou o escritor Alves da Mota no seu livro Itamaracá, lançado em 1985, ainda não existia a ponte ligando a ilha ao continente.






Aparelho que tritura temperos e outros produtos








Moradora da cidade de Abreu e Lima, Vera Lúcia, 61 anos, atua como feirante há mais ou menos quarenta anos, vendendo cominho, colorau, alho e outros condimentos. Sem esconder seu ar de lamento diante do quadro atual da feira que ela outrora conheceu, a comerciante me disse o seguinte: “Antigamente a feira era boa, a gente se arranjava. Hoje tá muito fraca”.























Considerando o que foi em décadas atrás, a feira livre de Itapiçuma, que insiste em existir, é uma pequena parte, uma sobrevivência e um testemunho de uma memória social ampla e fecunda que retrata, por assim dizer, não apenas as transformações pelas quais ela passou, mas também a própria dinâmica econômica, as relações de consumo da população e as mudanças estruturais e físicas da cidade que a abriga.

Ah, eu não posso deixar de dizer isso: a tapioca que comprei à atenciosa e simpática Antônia Maria estava deliciosa.

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