Por Clênio Sierra de Alcântara
Os muitos labirintos em que
adentramos ao longo da vida sem termos em mãos um novelo de lã que nos
possibilite sair facilmente deles nos põem, por vezes, frente a frente com
pessoas que nos fazem refletir acerca de vários aspectos e acontecimentos que
de maneira profunda e/ou apenas superficial pontuaram a nossa existência, bem
como a respeito de certas posturas que estabelecemos como norte de nosso viver.
Numa noite de sexta-feira de
outubro, no centro histórico de São Luís do Maranhão, eu entabulei conversa com
uma jovem atriz e um seu amigo também ator. Desde o primeiro momento eu percebi
que ela era bem enjoadinha, sabe? daquele tipo que acredita ser superior a tudo
e a todos e que é depositária de toda a verdade e sabedoria que existe. Mesmo notando
sua antipatia para comigo – ao contrário do seu acompanhante, que me olhava com
olhos de fome – eu insisti em ficar ao lado deles. E aí foi que, na primeira
oportunidade que teve para me desancar e dizer que eu não estava agradando, ela
o fez com aquele ímpeto muito próprio de quem mantém um discurso pronto para
repeti-lo em qualquer situação.
Ao relatar-lhe – respondendo
à pergunta que ela me fez se eu tinha filho ou não – aquele momento íntimo –
que eu já contei aqui, inclusive – que tive com uma garota, há quase vinte anos,
que nunca me vira antes e nem eu a ela, e que tanto insistiu para que
transássemos sem preservativo que eu acabei cedendo; e que, um mês depois,
ligou para o meu local de trabalho dizendo que estava grávida, o que me levou a
ir até ela lhe dizer que eu não queria em hipótese alguma ser pai – e ainda
mais numa circunstância em que nem namoro ou envolvimento afetivo entre nós
houve – e lhe propus que ingerisse um abortivo e ela, ainda assim, decidiu
levar a gravidez adiante e eu, em todos esses anos, nunca me interessei em
saber como a situação continuou, a irascível atriz destilou todo o seu veneno
travestido de feminismo para cima de mim. Quase sem tomar fôlego, a dona da
verdade disse que eu não sou uma pessoa digna, nem confiável, nem solidária,
nem merecedora de crédito e que eu sou mesmo é um tremendo covarde. Ela disse isso tudo e
se afastou de mim, convencida, tenho certeza, de que ganhara o debate fazendo o
seu showzinho moralista. Ocorre que não houve discussão alguma. Eu não ia
perder meu tempo batendo boca com alguém que só enxerga a vida em preto e
branco e estabelece dogmas como diretriz de seu caminhar. Quando ela se ausentou, o seu amigo me contou que ela já encenou uma peça que narra o “drama de
mulheres que foram abandonadas pelos seus companheiros”; e que ela tem uma
filhinha - se entendi bem, o pai da criança não mora com elas. Como eu nada
tinha para falar com aquele sujeito e muito provavelmente a atriz deveria estar
por ali, no meio da multidão, esperando que eu me afastasse do seu amigo para
só então retornar para o lado dele, eu procurei sair dali; e desejei em
pensamento que ela vivesse durante um tempo suficiente para se certificar de que
não são apenas os homens que maltratam as mulheres e desgraçam, por assim
dizer, as suas vidas, porque elas também sabem fazer isso sozinhas, consigo
mesmas.
Mudando de lugar, o dia e o
cenário agora também são outros: tarde de uma quarta-feira de dezembro na Praia de
Tambaú, em João Pessoa, capital da Paraíba. Estava eu ali sentado defronte ao
mar lendo o meu Giulio Carlo Argan e gozando de toda a liberdade que alguém
poderia ter, quando, como que resultante de um movimento de prestidigitação, apareceu ao meu lado uma mulher muito extrovertida dizendo: “Ah, vai ser com
esse rapaz simpático que eu vou deixar minhas coisas para ir tomar banho”. Imaginem
que, sem nem me conhecer e nem saber a boa peça que eu sou, ela me qualificou de “simpático”.
Ocorreu que, em vez de fazer o que anunciara, a criatura sentou junto de mim e se pôs a falar pelos
cotovelos, me fazendo mil e uma perguntas e censurando minha densa barba e os
pelos do meu tórax. Não precisei demoradamente ouvi-la para perceber que ela
era uma pessoa problemática. E foi dito e feito. Como eu lhe respondia na lata
e sem nenhum constrangimento a todas as indagações que me fazia, ela
principiou, tal qual àquela sabichona do Maranhão, a me julgar dizendo que não
era correto que eu me envolvesse sexualmente com homens e com mulheres; que eu não
poderia de jeito nenhum ser ateu; que eu tinha de me orientar pela moral
cristã; que os homens só pensamos em nós mesmos; e que eu me tinha como “autossuficiente”
por ter lhe dito que não me preocupo com o que vão pensar de mim e que busco
manter distância de pessoas mal resolvidas, como era o caso dela.
Foi a partir daí, meus
caros, que ela principiou a dizer mais de si. Ela é uma dessas pessoas –
creiam: ela já tem cinquenta anos de idade! – que atravessam a existência à
procura de si mesmas numa busca que é tormentosa e pode ser infinda – daí por
que ela também se incomodou com a minha postura libertária. Disse-me que nunca
transou com homens; que teve envolvimento com mulheres e continua sentindo esse
desejo; que já ingressou em várias igrejas cristãs e no kardecismo; e que
recebe acompanhamento psiquiátrico. Deixou-me ver que essa peregrinação religiosa
que faz e o modo como se intromete na vida das pessoas, reprovando os atos de independência
delas e querendo controlá-las, se deve ao fato de ela ser alguém que tem muitos
recalques, incluindo sexuais. Eu ainda fiz a grande besteira de não apenas lhe
dar o meu número de telefone, como também de me encontrar com ela dias depois. Nunca
mais outra vez. Como diz a língua afiada do povo, a língua mais que certa do
povo, só parente é que a gente não escolhe.
Decididamente não será por
causa dessas duas mulheres que cruzaram o meu caminho que eu vou deixar de ser
feminista, porque, na minha consciência, feminismo não rima com vitimização. Tampouco não será pelas admoestações que elas me lançaram que eu vou
recuar da minha decisão de nunca e jamais falsificar meus sentimentos. Ouçam-me bem: eu vou continuar vivendo sem me esconder da vida.
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