27 de janeiro de 2017

Vitimização

Por Clênio Sierra de Alcântara



Como sair dos labirintos em que nos metemos ao longo da vida? Bom, se não dispomos de estratégias para tanto num primeiro momento, creio que repensar certas decisões  e atitudes que tomamos ajuda e muito a traçarmos um roteiro que nos possibilite encontrar a saída


Os muitos labirintos em que adentramos ao longo da vida sem termos em mãos um novelo de lã que nos possibilite sair facilmente deles nos põem, por vezes, frente a frente com pessoas que nos fazem refletir acerca de vários aspectos e acontecimentos que de maneira profunda e/ou apenas superficial pontuaram a nossa existência, bem como a respeito de certas posturas que estabelecemos como norte de nosso viver.

Nuns bons e recentes dias de folga, eu travei dois diálogos com duas mulheres, em diferentes momentos e lugares, que deram mais uma medida do quanto o ser feminino carrega dentro de si uma pretensiosa vontade de moldar o mundo com uma visão simplista e dicotômica que estabelece que os homens encarnamos o mal  e elas são a legítima e única representação do bem.

Numa noite de sexta-feira de outubro, no centro histórico de São Luís do Maranhão, eu entabulei conversa com uma jovem atriz e um seu amigo também ator. Desde o primeiro momento eu percebi que ela era bem enjoadinha, sabe? daquele tipo que acredita ser superior a tudo e a todos e que é depositária de toda a verdade e sabedoria que existe. Mesmo notando sua antipatia para comigo – ao contrário do seu acompanhante, que me olhava com olhos de fome – eu insisti em ficar ao lado deles. E aí foi que, na primeira oportunidade que teve para me desancar e dizer que eu não estava agradando, ela o fez com aquele ímpeto muito próprio de quem mantém um discurso pronto para repeti-lo em qualquer situação.

Ao relatar-lhe – respondendo à pergunta que ela me fez se eu tinha filho ou não – aquele momento íntimo – que eu já contei aqui, inclusive – que tive com uma garota, há quase vinte anos, que nunca me vira antes e nem eu a ela, e que tanto insistiu para que transássemos sem preservativo que eu acabei cedendo; e que, um mês depois, ligou para o meu local de trabalho dizendo que estava grávida, o que me levou a ir até ela lhe dizer que eu não queria em hipótese alguma ser pai – e ainda mais numa circunstância em que nem namoro ou envolvimento afetivo entre nós houve – e lhe propus que ingerisse um abortivo e ela, ainda assim, decidiu levar a gravidez adiante e eu, em todos esses anos, nunca me interessei em saber como a situação continuou, a irascível atriz destilou todo o seu veneno travestido de feminismo para cima de mim. Quase sem tomar fôlego, a dona da verdade disse que eu não sou uma pessoa digna, nem confiável, nem solidária, nem merecedora de crédito e que eu sou mesmo é um tremendo covarde. Ela disse isso tudo e se afastou de mim, convencida, tenho certeza, de que ganhara o debate fazendo o seu showzinho moralista. Ocorre que não houve discussão alguma. Eu não ia perder meu tempo batendo boca com alguém que só enxerga a vida em preto e branco e estabelece dogmas como diretriz de seu caminhar. Quando ela se ausentou, o seu amigo me contou que ela já encenou uma peça que narra o “drama de mulheres que foram abandonadas pelos seus companheiros”; e que ela tem uma filhinha - se entendi bem, o pai da criança não mora com elas. Como eu nada tinha para falar com aquele sujeito e muito provavelmente a atriz deveria estar por ali, no meio da multidão, esperando que eu me afastasse do seu amigo para só então retornar para o lado dele, eu procurei sair dali; e desejei em pensamento que ela vivesse durante um tempo suficiente para se certificar de que não são apenas os homens que maltratam as mulheres e desgraçam, por assim dizer, as suas vidas, porque elas também sabem fazer isso sozinhas, consigo mesmas.

Mudando de lugar, o dia e o cenário agora também são outros: tarde de uma quarta-feira de dezembro na Praia de Tambaú, em João Pessoa, capital da Paraíba. Estava eu ali sentado defronte ao mar lendo o meu Giulio Carlo Argan e gozando de toda a liberdade que alguém poderia ter, quando, como que resultante de um movimento de prestidigitação, apareceu ao meu lado uma mulher muito extrovertida dizendo: “Ah, vai ser com esse rapaz simpático que eu vou deixar minhas coisas para ir tomar banho”. Imaginem que, sem nem me conhecer e nem saber a boa peça que eu sou, ela me qualificou de “simpático”.

Ocorreu que, em vez de fazer o que anunciara, a criatura sentou junto de mim e se pôs a falar pelos cotovelos, me fazendo mil e uma perguntas e censurando minha densa barba e os pelos do meu tórax. Não precisei demoradamente ouvi-la para perceber que ela era uma pessoa problemática. E foi dito e feito. Como eu lhe respondia na lata e sem nenhum constrangimento a todas as indagações que me fazia, ela principiou, tal qual àquela sabichona do Maranhão, a me julgar dizendo que não era correto que eu me envolvesse sexualmente com homens e com mulheres; que eu não poderia de jeito nenhum ser ateu; que eu tinha de me orientar pela moral cristã; que os homens só pensamos em nós mesmos; e que eu me tinha como “autossuficiente” por ter lhe dito que não me preocupo com o que vão pensar de mim e que busco manter distância de pessoas mal resolvidas, como era o caso dela.

Foi a partir daí, meus caros, que ela principiou a dizer mais de si. Ela é uma dessas pessoas – creiam: ela já tem cinquenta anos de idade! – que atravessam a existência à procura de si mesmas numa busca que é tormentosa e pode ser infinda – daí por que ela também se incomodou com a minha postura libertária. Disse-me que nunca transou com homens; que teve envolvimento com mulheres e continua sentindo esse desejo; que já ingressou em várias igrejas cristãs e no kardecismo; e que recebe acompanhamento psiquiátrico. Deixou-me ver que essa peregrinação religiosa que faz e o modo como se intromete na vida das pessoas, reprovando os atos de independência delas e querendo controlá-las, se deve ao fato de ela ser alguém que tem muitos recalques, incluindo sexuais. Eu ainda fiz a grande besteira de não apenas lhe dar o meu número de telefone, como também de me encontrar com ela dias depois. Nunca mais outra vez. Como diz a língua afiada do povo, a língua mais que certa do povo, só parente é que a gente não escolhe.

Dois diálogos. Dois momentos. Dois encontros. Duas mulheres – uma, jovem e crente de que sabe tudo da vida e que às mulheres não cabem outro papel que não seja o de vítima; e outra, de meia-idade, controladora e impositiva que a todo custo reprime a homossexualidade que lhe define. Dois pensamentos distintos perante o enfrentamento da vida que, no entanto, resvalam para o mesmo propósito: apontar os homens como sendo os únicos responsáveis por todos os infortúnios que atingem as mulheres.

Decididamente não será por causa dessas duas mulheres que cruzaram o meu caminho que eu vou deixar de ser feminista, porque, na minha consciência, feminismo não rima com vitimização. Tampouco não será pelas admoestações que elas me lançaram que eu vou recuar da minha decisão de nunca e jamais falsificar meus sentimentos. Ouçam-me bem: eu vou continuar vivendo sem me esconder da vida.

          

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