Por Clênio Sierra de Alcântara
É fato incontestável que as políticas e diretrizes visando a preservação do patrimônio edificado, no Brasil, estão desde há muito estabelecidas e consolidadas; prova disso é que o seu principal órgão responsável por essa questão, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), está, neste 2017, completando oitenta anos de existência. Em que pesem todos os instrumentos legais que determinam a proteção de uma dada edificação e mesmo de um conjunto de edifícios, continuamos assistindo aqui e ali ao descaso dos proprietários desses imóveis para com o que preconizam as leis; e esse descaso, proposital ou não, ao mesmo tempo em que põe em risco de morte as pessoas que transitam no entorno desses prédios que estão, em alguns casos, bastante deteriorados, sela de maneira lamentável o destino do que foi denominado como patrimônio histórico, que é o seu provável desabamento e/ou demolição.
Os que se dedicam à escrita da História sabemos que esse exercício de reconstituição do passado pode ser realizado a partir das mais diversas fontes, inclusive a oral, e não necessariamente com o exame e interpretação de algo concreto e objetificado. No entanto, apagar e destruir vestígios materiais que dizem respeito à história da humanidade significa não apenas ignorar as marcas do passado, como também abrir mão de manter entre nós testemunhos de um tempo que já passou. E toda vez que um monumento, uma obra de arte significativa e relevante, um documento, enfim, um artefato de cunho histórico desaparece, desaparece junto com ele um pedaço de nossa história.
Como minhas preocupações intelectuais como narrador da História estão muito voltadas para a espacialidade das cidades, a reflexão que trago neste artigo mira principalmente as edificações tidas como referenciais no âmbito da construção de uma narrativa que contempla, por assim dizer, a evolução de um dado cenário urbano, estejam elas protegidas ou não por leis e órgãos responsáveis pela salvaguarda desse tipo de patrimônio, que se encontra à mercê de uma invasiva e destruidora ideia de evolução e progresso do locus citadino, exercendo sobre ele uma pressão econômica tal que pretende passar como um gigante rolo compressor por cima da memória espacial e construtiva das cidades, apagando por completo o rastro evolutivo e os marcos identificadores de sua história.
No Brasil, ainda hoje, transcorridos oitenta anos de existência do principal e mais abrangente órgão responsável pela proteção do patrimônio da nação, que, como foi dito, é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, os conceitos de preservação e de progresso continuam se digladiando em praça pública e nas salas de reuniões nas quais são discutidas as possibilidades de pôr abaixo um ou mais prédios e/ou ocupar espaços vazios de significação histórica com edificações de alto padrão porque se compreende que agindo assim é que se está pensando no verdadeiro progresso da cidade e contribuindo para que os seus habitantes possam vivenciá-la com legítima dignidade.
As implicações desse pensamento, digamos, progressista, além de serem altamente nocivas para a manutenção do caráter e da identidade da cidade detentora de um patrimônio edificado e de paisagens naturais igualmente consideradas como dignas de serem protegidas, resultam, na verdade, na difusão de uma precária noção de progresso para o espaço construído das cidades. Qual seja: a de que toda vez que o poder econômico julgar que o cenário urbano já não lhe agrada, porque deixou de lhe conferir lucro, deve-se pô-lo abaixo e erguer um outro. Simples assim, como se os prédios fossem objetos construídos com peças de Lego.
No vagar pelas ruas de nossas cidades antigas, facilmente identificamos como a força do poder econômico vai se estabelecendo na paisagem. Ele está evidenciado, por exemplo, numa placa de “vende-se” afixada no sobrado cuja ruína é iminente. E isso, claro, é visto com certa satisfação pelas pessoas que não foram educadas para o reconhecimento e defesa do patrimônio edificado; elas acreditam que algo importante e benéfico para a cidade ocupará o espaço do prédio abandonado, uma vez que o velho sobrado vai com certeza ser retirado dali e, em seu lugar, será erguido um grandioso e moderno edifício de não sei quantos andares ou, talvez, um sempre necessário estacionamento para veículos.
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Quando o discurso que diz
que supostas necessidades do presente – neste caso, a renovação predial de uma
cidade – devem se sobrepor a qualquer iniciativa de preservação, buscando com
isso atrair o apoio da opinião pública, atinge-se um ponto deveras conflituoso,
sobretudo, se os prédios em questão estiverem em estado de abandono, uma vez
que, para quem não é esclarecido a respeito das ações de salvaguarda, prédio
velho e/ou abandonado, é prédio que deve sumir do mapa para dar lugar a
construções novinhas em folha que, além de embelezar o ambiente antes
degradado, promove uma valorização daquele lugar onde elas foram erguidas.
O processo de gentrificação
está querendo cada vez mais avançar por áreas de preservação, como se vem
verificando, por exemplo, no Recife e em Salvador. A dinamização dos marcos
decisórios do poder econômico e imobiliário representa um sério risco a todos
os esforços que não somente funcionários públicos honestos e organizações da
sociedade civil vêm desenvolvendo há vários anos no sentido de proteger de
todas as formas esses sítios da sequiosa e voraz especulação imobiliária, que
se infiltra ferreamente em todas as esferas com o intuito de reverter convenções
e até leis para que seus projetos saiam do papel. O próprio empenho em promover
o “melhoramento do escoamento do tráfego de veículos”, não sejamos inocentes,
tem um dedo do poder econômico e imobiliário por trás, porque, quando não pura
e simplesmente essas intervenções põem abaixo edificações para abrir e/ou
alargar ruas e avenidas, ao dinamizarem
e/ou tentarem melhorar essa trafegabilidade, promovem, também, a
valorização de prédios novos e terrenos no entorno das vias. Ou seja, de uma forma ou
de outra, a cidade é retalhada e suas áreas de preservação ficam a todo tempo à
mercê de “necessidades” disso e daquilo.
Não é de hoje que se procura
discutir o que fazer para garantir que os sítios urbanos protegidos por leis de
caráter preservacionista não sejam tragados pelo descaso do próprio poder
público que, ao ignorar e não fiscalizar as determinações de
salvaguarda, contribui consideravelmente para que o patrimônio edificado das cidades
paulatinamente desapareça.
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