25 de agosto de 2017

Feiras livres (16)

Por Clênio Sierra de Alcântara


Fotos: do autor


Centro (Itabaiana – PB). Depois da feira livre que ocorria na Praça Antônio Vtalino, na minha cidade natal, Abreu e Lima, que eu comecei a percorrer ainda menino, e da de Caruaru, a respeito da qual eu tanto escutava o Luiz Gonzaga cantar nas frequências das rádios AM na casa da minha avó Maria da Conceição os famosos versos de “Feira de Caruaru”, compostos por Onildo Almeida, era sobre a de Itabaiana que eu mais ouvia falar. E sabem por quê? Porque era para lá que Luís do Bode, que negociava carne de caprinos - não foram poucas as ocasiões em que eu vi muitos desses animais abatidos e dependurados no quintal de sua casa -, e Seu Déda, o segundo marido da minha avó, que vendia carne de porco também na feira, iam muitas vezes – de Seu Déda eu sei que ele tinha outros canais fornecedores – comprar os animais para o abate, repetindo um fluxo de comércio que ainda hoje é mantido por várias pessoas, como a mãe do meu amigo Emanuel Martins, que trabalha com carnes em Paulista, e toda semana viaja até o interior paraibano para comprar não animais vivos e sim cortes de carnes na feira livre itabaianense. Também era lá – e talvez continue sendo – que se compravam aves vivas, como perus, principalmente na época das festas de fim de ano. A propósito leiamos o que vai dito na página 276 do volume XVII da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros publicada em 1960: “Itabaiana já possuiu a maior feira de gado da Paraíba, condição que perdeu há pouco tempo. No entanto, às segundas-feiras, ainda é apreciável o movimento de compra e venda de gado”.













Hospedado em João Pessoa, na manhã do dia 20 de dezembro passado, uma terça-feira que, como eu já sabia, era o dia da semana em que a feira livre de Itabaiana – a cidade dista a cerca de 79 km da capital – ocorre com maior movimento tanto de feirantes quanto de compradores, eu segui para o terminal rodoviário do bairro do Varadouro, onde embarquei num ônibus cercado de expectativa para, finalmente, conhecer aquela feira sobre a qual tanto eu ouvira falar. Na minha cabeça levava também a doce voz da saudosa Clara Nunes cantando essa coisa deliciosa que é “Feira de mangaio” que tem uns versos que dizem assim: “Fumo de rolo, arreio de cangaia/Eu vim pra vender, quem quer comprar?/ Bolo de milho, broa e cocada/ Eu vim pra vender, quem quer comprar?”, composição do fabuloso itabaianense Severino Dias de Oliveira, que todos nós conhecemos como Sivuca, em parceria com a igualmente paraibana, só que da cidade de Sousa, Glória Gadelha. E não se pode esquecer que, junto Chiquinho do Acordeon, Sivuca compôs uma música apenas instrumental intitulada "Feira de Itabaiana".













Outra referência que quero inserir aqui eu recolhi nas páginas do romance Doidinho, lançado em 1933 pelo paraibano do Pilar, José Lins do Rego, a quem eu tanto invejo pela vivacidade e pelo colorido de suas narrativas. Em Itabaiana, onde o personagem Carlos de Melo, apelidado Doidinho, foi estudar em regime de internato no Instituto Nossa Senhora do Carmo, de Francisco Lauro Maciel Monteiro, o Seu Maciel, a feira livre era uma referência constante e inescapável. Os trens correndo. A vida pulsando na cidade. E a feira livre atraindo gente de tudo quanto era canto. Afastado do Engenho Santa Rosa, propriedade do seu admirado avô José Paulino, o adolescente começara a perceber que "As cousas do mundo estavam reduzindo as minhas admirações de menino" (José Lins do Rego. Doidinho. 18ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1979, p. 105). E naquelas descobertas o reconhecimento do espaço urbano itabaianense lhe imprimia outro sopro de vida:

Na rua a liberdade sorria-me como um namorado. Pela primeira vez estava vendo a cidade, a Rua do Comércio cheia de gente na feira, o jardinzinho da praça da Estação e o hotel que ficava junto do Mercado. Era uma coisa grandiosa a feira de Itabaiana. Nunca vira tanto povo junto, num rebuliço de festa, nessa confusão, nesse bate-boca dos que vendem e trocam. Havia de tudo: o lado do queijo, da carne-de-sol, do açúcar bruto, do açúcar purgado, do feijão, ruas inteiras de gêneros, gente falando alto, cheiro de bacalhau, de peixe em salmoura, de frutas passadas (José Lins do Rego. Op. cit. p. 20-21).



















Quando desembarquei em Itabaiana, já a agitação e o bulício da feira livre se fazia presente, porque foi junto a ela que o ônibus estacionou.  Naquele exato instante nem de longe eu imaginei que o que entraria pelos meus olhos daquela feira livre não encontrava comunhão com o que durante tantos anos se fixara em mim penetrando pelos meus ouvidos. E, à medida que eu a fui atravessando em todos os seus quadrantes, algo do meu tesouro reunido em forma de descrições e imaginação se desfez como num passe de mágica muito próprio dos enredos infantis, porque a real dimensão da feira livre de Itabaiana estava aquém do que se estabelecera numa das gavetas de guardados do meu pensamento. De alguma maneira conhecê-la verdadeiramente, presenciá-la, senti-la, cheirá-la, apalpá-la foi como se retirassem de mim um desejo, visto que a feira não era tudo aquilo que eu sempre acreditei fervorosamente que fosse.













Em parte montada sobre os antigos trilhos da linha férrea, a feira livre de Itabaiana apresenta lixo acumulado em vários pontos





Foi muito estranho lidar com esse sentimento de frustração porque, como já disse, eu não estivera ali, na feira, antes; o meu saber e conhecimento sobre ela era um acúmulo de falares e de dizeres que eu ouvira de algumas pessoas ao longo de muitos anos. E essa apreensão de uma, digamos, realidade imaginada, concebera no meu entendimento a feira livre de Itabaiana como sendo algo que era bem maior do que aquilo que presencialmente eu vi.

É bem possível, aliás, muito possível que, como ocorreu com a maioria – e talvez com todas – as feiras livres nordestinas que passaram a ter como concorrentes grandes supermercados, a de Itabaiana tenha também ela perdido, em alguma medida, parte da pujança que se via em tempos idos. Ainda assim, sem sombra de dúvidas, ela permanece sendo um grande acontecimento do cotidiano socioeconômico dessa cidade paraibana.













A confirmar o enorme prestígio de que goza a feira livre de Itabaiana bastaria dizer que ela continua ocupando a principal via do centro urbano, a Av. Presidente João Pessoa, na qual está assentada a imponente Igreja-Matriz de Nossa Senhora da Conceição e onde se encontram inúmeros estabelecimentos comerciais e órgãos da administração pública, como a Prefeitura Municipal e a Câmara de Vereadores. Outro sinal de sua importância reside no fato de que, como dito em linhas atrás, ela permanece recebendo forasteiros que muitas vezes vêm de bem longe para nela se abastecerem.

A entrada da feira é tomada por muitos taxistas e mototaxistas; e ela fica próxima ao terminal rodoviário, o que lhe confere, podemos dizer, enorme acessibilidade.










Da Av. Presidente João Pessoa – foi ali que, numa pequena lanchonete, eu comi bolo baeta acompanhado com caldo de cana – a feira se espalha, se derrama por vários outros logradouros, como a Praça Venâncio Neiva e a Rua Floriano Peixoto. Os bancos dos feirantes são feitos da forma mais conhecida no Nordeste: eles são confeccionados com madeira e cobertos com lonas plásticas. E, além disso, ali ainda vemos – o que sempre me encanta e enche os meus olhos – o primitivismo da disposição de produtos diretamente no chão, algo que, ao que parece, felizmente, nenhuma postura municipal, norma sanitária ou qualquer coisa que o valha, há de fazer desaparecer das feiras nordestinas.

Na feira livre de Itabaiana pode-se encontrar de um tudo – para fazer uso de uma expressão tão nossa, porque quem diz “de um tudo” quer dizer que se não tem realmente de tudo, tem muita coisa. E naquela feira eu encontrei fumo de rolo, bolos, bolachas, objetos feitos de flandres e de couro, muitas roupas e calçados, frutas, legumes e verduras, beijus, carnes, frango abatido, lençóis, mealheiros – a “língua certa do povo”, como diria o poeta Manuel Bandeira, diz miaeiro -, peixes, temperos e ervas, etc.









Percorri a feira livre de um canto a outro, sozinho, metido comigo mesmo e com o meu espírito de descoberta. Aqui e ali, entre uma rua e outra, sem nem precisar ser muito observador, o caminhante nota que, a despeito da importância socioeconômica da feira livre para o município, a Prefeitura Municipal não tem cuidado como deveria do espaço onde ela acontece. Parte da feira se arruma sobre os trilhos pelos quais circulavam trens; e nessa área o lixo se acumula a olhos vistos, me levando a acreditar que não existe coleta por ali. Além disso, é bastante precária a instalação dos banheiros públicos; e a exposição de esgoto é outra nota ruim que se observa ali. A impressão que me deu foi que, na verdade, a Municipalidade parecia ignorar completamente essas deficiências.




















Desta feita eu não quis entrevistar feirantes e sim pessoas que buscavam a feira livre de Itabaiana com alguma frequência. A minha intenção foi colher depoimentos de indivíduos que vissem a feira de fora e não de dentro dela.

Tereza Batista, de 52 anos de idade, é agricultora e mora em Alhandra. Disse-me que frequenta a feira livre itabaianense desde a adolescência e que achava que a feira, durante todos esses anos, não cresceu nem diminuiu, mas continuava desorganizada. Apesar de morar na cidade de Alhandra, pelo menos uma vez por mês ela vai visitar sua mãe, que mora no Sítio Cabral – ela própria cresceu nesse sítio -, numa cidade chamada Mogeiro, e aproveita a viagem, para fazer umas comprinhas: “Tem coisas que a gente não se agrada, né? Mas tem muitas coisas nessa feira de Itabaiana que eu gosto bastante [...] Tem muita coisa em conta. Negócio de panos de prato como esses [ela falou me mostrando os panos] eu compro pra revender [...] Eu acho ela muito organizada não, porque tem um esgoto que a gente passa depois da linha do trem; é um esgoto a céu aberto. Eu acho uma imundice. Eu acho pra mim que aquilo ali era pra ter mais organização. É muito lixo”. Tereza Batista me disse ainda que nunca viu o trem passando por Itabaiana; e recordou que o via correndo lá em Mogeiro.





Meu engana fome: caldo de cana e bolo baeta









Adoro o cheiro da massa do beiju assando 


À esquerda, no saquinho plástico, aparece uma tapioca; no primeiro plano vê-se o igualmente gostoso beiju





Meu amigo Emanuel Martins, de 38 anos, acompanha sua mão Maria do Socorro, de 65 anos, todas as terças-feiras na longa viagem de Abreu e Lima até Itabaiana – eles saem de madrugada de casa; e fazem isso há seis anos. Ele me disse o seguinte: “Eu acho que de tamanho a feira não mudou desde quando eu comecei a ir com mainha pra lá. Agora o que eu venho observando é que o movimento vem caindo muito. Tá fraco, tá fraco mesmo. Não vejo mais tanta gente na feira como eu via”.








Esse rolo escuro em cima do banco é justamente o fumo de rolo de que fala a música "Feira de mangaio" 



























Quem hoje percorre a feira livre de Itabaiana observa que, apesar de deficiências de ordem estrutural e de limpeza, que ali reinam, ela segue mantendo e conservando muito da essência das grandes feiras livres que ocorrem no Nordeste, como repositório de tradições e de costumes de um povo.


4 comentários:

  1. Muitíssimo obrigado. Sua vivência foi de muita importância para mim. Eu estou desenvolvendo um estudo comportamental da utilização da ferrovia nos espaços intra-urbanos e Itabaiana possui uma ligação eminente com os trilhos na feira. Muito obrigado, Clénio!

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  2. Obrigado, você, Ricardo, pela interação. Conhecimentos devem ser compartilhados

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  3. Ricardo, estou preparando um artigo sobre a cidade de São Félix,localizada no Recôncavo Baiano, que também era cortada por uma importante ferrovia e que atualmente vê o seu patrimônio ferroviário abandonado

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    1. Aqui na Paraíba sofremos com o mesmo descaso, como você viu. Seu trabalho me ajudou muito a entender a feira de Itabaiana para o desenrolar da minha pesquisa. Eu o defendo nas próximas semanas e será um prazer compartilhá-lo com você. Sou muito grato!

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