18 de novembro de 2017

De perceber e sentir a cidade

Por Clênio Sierra de Alcântara



Fotos: do autor     A percepção, que muitas pessoas têm, de que as cidades de um modo geral foram feitas primordialmente para a circulação de carros, exibe flagrantes de desprezo para com a morfologia dos centros urbanos, que não conseguem absorver completamente a ininterrupta necessidade de espaços exigida pelos veículos automotivos







Dias atrás eu vivenciei a seguinte experiência numa movimentada rua do Recife: parei numa esquina e fiquei observando o volumoso tráfego de veículos que, naquela via, seguiam em sentido único. Olhando para alguns dos condutores notei que eles guiavam os seus possantes sem olhar para os lados, sem perceber o que estava ao redor deles. O olhar para frente era por vezes alternado com o lançar os olhos para o telefone celular, mesmo estando o sinal aberto. Não havia, ou melhor, parecia não haver para aquelas pessoas outra coisa além da autopista e dos celulares. Os prédios, a ponte, as árvores, a cidade em si, pareciam nem sequer existir, porque na prática condutora de automóveis, mesmo os dispositivos limitadores e/ou inibidores de alta velocidade – semáforos, faixas de pedestres, placas – não conseguem tirar do motorista o foco do propósito de partir e chegar; de modo que, o que não estiver no asfalto propriamente dito, está fora do campo de interesse dele; sendo assim, a cidade quase que cai no terreno da abstração, porque ele não a enxerga propriamente.

É claro que nem todos os condutores de veículos perdem por inteiro a cidade de vista; mas eu acredito que grande parte deles perde, sim. E isso se dá porque, para muitos motoristas metidos na estreiteza das artérias entupidas por carros, ônibus e caminhões, a morfologia urbana se resume ao caminho que seja melhor para seguir, à estrada que esteja menos esburacada e/ou livre de congestionamentos e retenções, porque o que realmente importa, como já foi dito, é o partir e chegar.

Recorrendo à imagem de uma metrópole futurista, à maneira de Fritz Lang, podemos até fantasiar que algum dia a humanidade irá se deparar com cidades nas quais aos pedestres só serão destinados os espaços subterrâneos, ficando a superfície sob o inteiro domínio dos veículos automotivos.

Por mais que as tecnologias avancem, parece ser ponto pacífico que jamais iremos abrir mão dos carros, porque eles permanecem sendo, para milhões de nós, o meio mais eficiente, econômico, rápido e seguro para que se percorram grandes distâncias. Daí por que no âmago da indústria automobilística reside um empenho enorme em aprimorar tais máquinas – sobretudo desenvolvendo modelos que sejam movidos por energias outras que não provenientes da queima de combustíveis fósseis – e não em substituí-las.

Não este artigo não é somente uma diatribe contra a superabundância de carros nas ruas e avenidas das cidades de maneira geral e, por conseguinte, a submissão dos centros urbanos a tais máquinas. O fundamento do que vai dito aqui é em boa medida um questionamento muito pessoal quanto à percepção e à própria diferença de relacionamento com a cidade que é mantida por pedestres e por condutores de veículos automotivos.

Caso lançássemos mão de um experimento bastante simples como propor que um indivíduo percorresse caminhando uma rua x em toda a sua extensão e que o mesmo trajeto fosse percorrido por um outro sujeito, só que conduzindo um automóvel e, no final, perguntássemos  a um e ao outro o que foi que cada um deles viu da cidade enquanto venciam o percurso, muito provavelmente seria a do caminhante a descrição mais rica em detalhes sobre o cenário urbano. É bastante possível que em seu relato o caminhante mencionasse que viu tal e tal prédio; que passou defronte à loja na qual comprou isso e aquilo no Natal; que se deparou com uma calçada esburacada; que havia uma árvore bastante inclinada em determinado trecho; que um novo bar abriu suas portas na esquina com a rua y; que havia ambulantes atrapalhando a passagem ao lado da lanchonete z; etc. E o que diria o motorista? Certamente a sua visão do território urbano seria muito limitada; penso que em seu relato ele mencionaria que o trânsito naquela área estava tranquilo e/ou travado; que estava faltando sinalização naquela via; que não concordava com o limite de velocidade estabelecido para aquele logradouro; que não compreendia por que havia tantos semáforos ali; etc. Ou seja, tudo relacionado com a matéria da trafegabilidade.

A mim me parece ser inquestionável que pedestres e condutores de veículos têm modos diferentes de perceber e sentir a cidade; eles mantêm para com a cidade um relacionamento que difere não somente na forma de enxergá-la, mas também na maneira de vivenciá-la. E tanto isso é evidente que entre pedestres e condutores não existe uma convivência pacífica e harmoniosa, como bem demonstram os elevados índices de atropelamento que diariamente ocorrem nas ruas e avenidas, onde os carros mais e mais requerem espaços para circularem e estacionarem, como se o direito dos motoristas sobre a cidade fosse maior do que o dos caminhantes.

As políticas e as diretrizes administrativas das Municipalidades precisam atentar para uma realidade inescapável: caso se resolva ficar o tempo todo pensando a cidade como o lugar que deve ficar ininterruptamente se adequando e se ajustando para acomodar automóveis, progressivamente os espaços urbanos vão perder nacos consideráveis de áreas destinadas ao convívio social, como vem ocorrendo no Recife, onde pelo menos uma praça – a Olavo Bilac – e várias artérias, como a Av. Norte e a Av. Cruz Cabugá, tiveram de ser ajustadas às demandas dos veículos que, como se sabe, não param de crescer: enquanto aquela praça perdeu parte significativa do seu terreno para abrigar uma estação de ônibus do tipo BRT, calçadas e imóveis tiveram de sumir para que aquelas duas vias fossem em certos trechos alargadas.



Já faz algumas décadas que, no Brasil, as políticas urbanas sucumbiram aos imperativos e ditames da indústria automobilística, fazendo de nossas cidades uma espécie de jogo de montar e desmontar para que nelas caiba o maior número possível de veículos. Grita-se a plenos pulmões por melhoria dos transportes públicos de passageiros. Pede-se encarecidamente aos prefeitos que eles revejam suas prioridades administrativas e não ponham a “reforma da cidade para ajustar o trânsito” como promessa fundamental de campanhas eleitorais. Apela-se aos órgãos de proteção ao patrimônio edificado que façam valer a proibição à presença maciça de automóveis nos sítios históricos. E tudo vergonhosa e precariamente vai sendo mantido da forma que apenas os pleitos dos condutores de veículos sejam atendidos, mesmo que, para tanto, a cidade continue sendo degradada, cortada, rasgada, destruída e reconstruída, sem que se considerem os anseios daqueles indivíduos que não a veem apenas como uma via de mão única; e que vivem nela e a buscam porque intencionam que ela os abrigue, os divirta, os socorra, os emocione e os faça se sentirem parte orgânica de sua cotidianidade presente, uma cotidianidade que não despreza as coisas do seu passado e que vislumbra seu plano futuro compreendendo que os problemas todos que nelas existem devem ser, o quanto antes, resolvidos visando ao bem comum e não ao bem de um só segmento da sociedade.









A meu ver uma reflexão de cunho urbanístico profundo e voltado para essas questões deve avaliar que talvez seja vão pensar o tempo todo em como conceber a “cidade ideal” sem que tratemos de considerar plenamente a “cidade real” na qual vivemos. Os esforços todos que possam ser envidados para a erição desse projeto de cidade não podem partir do zero, uma vez que existe uma realidade construída que agrega tanto coisas ruins como também coisas boas, e estas, convenhamos, não podem e nem devem ser desperdiçadas.





(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], nº 14, dezembro de 2017, Opinião, p. 2).

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