25 de novembro de 2017

Por que precisamos continuar falando sobre discriminação contra os negros?

Por Clênio Sierra de Alcântara
  




Tivéssemos todos nós uma firme coragem e consciência de lançar os olhos para o plano passado da história deste país, querendo nele enxergar e, sobretudo, buscando nele compreender a formação e as engrenagens de sua estrutura socioeconômica, muito provavelmente nos daríamos conta e nos certificaríamos da necessidade permanente de termos e de mantermos um convívio que fosse, no mínimo, respeitoso para com os negros; convívio respeitoso esse que em nenhum momento perdesse de vista um propósito de reparação para com eles, pelos tantos males que a instituição da escravidão, sob o patrocínio estatal, lhes causou, males esses que se refletem até hoje no cotidiano de milhões de homens e mulheres descendentes daqueles que eram, segundo uma máxima que atravessa a nossa historiografia, “as mãos e os pés dos senhores de engenho” e que, ainda assim, ainda que fossem as molas propulsoras e a força motriz dos engenhos, minas e onde mais fosse possível empregá-los, amargaram toda a sorte de maus tratos, humilhações e desumanidade que um indivíduo é capaz de infligir a outro. Atente-se para o fato de que foi a instituição da escravidão e não o negro em si, que provocou consequências deletérias na formação da sociedade brasileira, aspecto esse sustentado por Gilberto Freyre, um estudioso normalmente tão perseguido por raivosos integrantes do Movimento Negro, que não admitem de modo algum que foi o autor de Casa-grande & senzala que, nessa obra seminal, reabilitou a figura do negro na constituição da nossa nacionalidade, preferindo eles apontá-lo como alguém que falseou a verdade, romanceando de modo abrandado o tipo de tratamento que os proprietários de escravos destinavam à sua mão de obra e vendo o Brasil como uma verdadeira “democracia racial”, como se fosse ilegítimo e inadequado querer pensar uma ideia e/ou projeto benevolente e pacífico de sociedade e de nação.


Mas não temos agido com respeito para com os negros, infelizmente. Embora não vigore mais – pelo menos não institucionalmente – em nossa sociedade a manutenção de uma “caça” aos negros no sentido que vigorava na época do Brasil Colonial e Imperial, a realidade das estatísticas vem nos mostrando que a “caçada” que se promove atualmente aos negros não se destina a capturá-los para inseri-los em trabalhos forçados e ou “análogos à escravidão” – isso ainda ocorre, mas não apenas com negros, como atestam as diligências dos fiscais do Ministério do Trabalho, cujas ações correm o risco de ser prejudicadas em virtude de uma resolução tomada recentemente – e, sim, para eliminá-los mesmo, matá-los, exterminá-los: segundo dados divulgados no 11º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), referentes ao ano passado, houve 61.619 mortes violentas no Brasil em 2016. E para ficarmos apenas com um recorte dos dados que foram apurados dessa tragédia nacional, que atinge sobremaneira jovens e pobres, computando somente os indivíduos que foram mortos por policiais, sete em cada dez alvos eram negros e pardos. No país das desigualdades sociais, a brutalidade nossa de cada dia, como indicam os levantamentos estatísticos, vitima principalmente um determinado estrato da sociedade e pessoas com caracteres físicos bem definidos.


Seria simplismo e ingenuidade demais pensarmos que todos esses negros e pardos – nessas classificações de cor de pele, eu sou identificado como pardo – foram abatidos só porque eram negros e pardos. Ora, é claro que não. Assim como brancos, amarelos e gente de qualquer cor que mais exista, negros são seres humanos e não outra coisa; e como seres humanos, como quaisquer seres humanos, eles também podem ser foras da lei, assassinos, estupradores, assaltantes... No entanto, fica explícito em estatísticas como a do FBSP que, mesmo considerando que negros e pardos constituem a maioria do contingente populacional brasileiro, o fato de ser negro e/ou pardo já configura um fator que pesa contra eles em várias frentes. Historicamente mantidos nos estratos menos favorecidos da sociedade, com baixa escolaridade e, por conseguinte, ocupando empregos que ofertam salários menores, não raro, mesmo quando muitos deles conseguem ultrapassar essa barreira opressora e são bem escolarizados e qualificados, um número significativo deles acaba sendo preterido de bons empregos justamente por serem negros. Ou seja, eles vão passar por um processo seletivo para uma vaga de trabalho sabendo que a cor de sua pele é um ônus e não um bônus na hora da decisão dos recrutadores.


A dificuldade que certos segmentos da sociedade brasileira têm – e não somente partindo daqueles que são “loiros e de olhos azuis”, como dizem alguns – de não só respeitarem como também compreenderem que negros são tão seres humanos como qualquer outra pessoa é revelada muitas vezes em ações e comportamentos mesquinhos e por demonstrações cruéis de intolerância religiosa, como o episódio envolvendo o jornalista William Waack que, numa fala infeliz e execrável, teria classificado como “coisa de preto” ficar buzinando insistentemente – pelo menos foi o que eu ouvi e entendi no vídeo postado no YouTube – e os sucessivos ataques incendiários aos centros de religião de matriz africana, bradando os criminosos por aí que “essa coisa nem religião é”. E o que dizer da agressão deveras covarde sofrida pelo ator negro Diogo Cintra, em São Paulo, no último dia 15? Será mesmo que se tratou de uma briga sem motivação racista?


Não é correto tratar os negros o tempo todo como vítimas inocentes de circunstâncias além de seu controle. Como também não é justo conferir apoio a atitudes como a da ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois que num rompante, vá lá, de desatino, sendo ela uma magistrada e parecendo ignorar até mesmo o papel simbólico que detém como exemplo para milhões de homens e principalmente de mulheres negras deste país, declarou que, caso não pudesse juntar aos seus R$ 30.400,00 de salário de desembargadora aposentada pelo estado da Bahia, o de ministra, estaria exercendo função que “sem sombra de dúvida se assemelha ao trabalho escravo”. Devemos, isso sim, como eu disse lá no início, tratá-los respeitosamente e apoiarmos todas as iniciativas que visem a repará-los de perdas e humilhações que lhes foram historicamente infligidas. Talvez a permanência ininterrupta das cotas para o ingresso de negros em universidades públicas e na disputa por vagas em concursos públicos não seja o mais adequado, mas, sem dúvida alguma, tal iniciativa precisa ser ainda mantida pelo menos até que comecemos a perceber os efeitos benéficos da ação no seio da nossa sociedade. Outra frente de luta de caráter também urgente é nos mantermos vigilantes contra projetos que vêm tentando anular títulos de posse de terra conferidos às comunidades legalmente reconhecidas como sendo remanescentes de quilombolas. Precisamos definitivamente entender que promover reparação com relação à população negra deste país, não quer dizer que devamos tratar essas pessoas como coitadinhas. Não, a reparação aqui deve ser compreendida como ação efetiva de justiça social.


Não sei exatamente em que momento do nosso longo, árduo e penoso processo civilizatório nós falhamos a ponto de, a partir daí, nos empenharmos tenazmente em querer negar aos negros uma condição e uma natureza humana. Habitualmente muitas pessoas buscam não reconhecer a humanidade de outras, agindo elas próprias de maneira inteiramente desumana. E essa atitude por si só nos diz por que precisamos continuar falando sobre discriminação contra os negros.

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