Tivéssemos todos nós uma
firme coragem e consciência de lançar os olhos para o plano passado da história
deste país, querendo nele enxergar e, sobretudo, buscando nele compreender a
formação e as engrenagens de sua estrutura socioeconômica, muito provavelmente
nos daríamos conta e nos certificaríamos da necessidade permanente de termos e
de mantermos um convívio que fosse, no mínimo, respeitoso para com os negros;
convívio respeitoso esse que em nenhum momento perdesse de vista um propósito
de reparação para com eles, pelos tantos males que a instituição da escravidão,
sob o patrocínio estatal, lhes causou, males esses que se refletem até hoje no
cotidiano de milhões de homens e mulheres descendentes daqueles que eram,
segundo uma máxima que atravessa a nossa historiografia, “as mãos e os pés dos
senhores de engenho” e que, ainda assim, ainda que fossem as molas propulsoras
e a força motriz dos engenhos, minas e onde mais fosse possível empregá-los,
amargaram toda a sorte de maus tratos, humilhações e desumanidade que um
indivíduo é capaz de infligir a outro. Atente-se para o fato de que foi a
instituição da escravidão e não o negro em si, que provocou consequências
deletérias na formação da sociedade brasileira, aspecto esse sustentado por
Gilberto Freyre, um estudioso normalmente tão perseguido por raivosos
integrantes do Movimento Negro, que não admitem de modo algum que foi o autor
de Casa-grande & senzala que,
nessa obra seminal, reabilitou a figura do negro na constituição da nossa
nacionalidade, preferindo eles apontá-lo como alguém que falseou a verdade,
romanceando de modo abrandado o tipo de tratamento que os proprietários de
escravos destinavam à sua mão de obra e vendo o Brasil como uma verdadeira “democracia
racial”, como se fosse ilegítimo e inadequado querer pensar uma ideia e/ou
projeto benevolente e pacífico de sociedade e de nação.
Mas não temos agido com
respeito para com os negros, infelizmente. Embora não vigore mais – pelo menos
não institucionalmente – em nossa sociedade a manutenção de uma “caça” aos
negros no sentido que vigorava na época do Brasil Colonial e Imperial, a
realidade das estatísticas vem nos mostrando que a “caçada” que se promove
atualmente aos negros não se destina a capturá-los para inseri-los em trabalhos
forçados e ou “análogos à escravidão” – isso ainda ocorre, mas não apenas com
negros, como atestam as diligências dos fiscais do Ministério do Trabalho,
cujas ações correm o risco de ser prejudicadas em virtude de uma resolução
tomada recentemente – e, sim, para eliminá-los mesmo, matá-los, exterminá-los:
segundo dados divulgados no 11º Anuário
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), referentes ao ano passado,
houve 61.619 mortes violentas no Brasil em 2016. E para ficarmos apenas com um
recorte dos dados que foram apurados dessa tragédia nacional, que atinge sobremaneira
jovens e pobres, computando somente os indivíduos que foram mortos por
policiais, sete em cada dez alvos eram negros e pardos. No país das
desigualdades sociais, a brutalidade nossa de cada dia, como indicam os
levantamentos estatísticos, vitima principalmente um determinado estrato da
sociedade e pessoas com caracteres físicos bem definidos.
Seria simplismo e
ingenuidade demais pensarmos que todos esses negros e pardos – nessas classificações
de cor de pele, eu sou identificado como pardo – foram abatidos só porque eram
negros e pardos. Ora, é claro que não. Assim como brancos, amarelos e gente de
qualquer cor que mais exista, negros são seres humanos e não outra coisa; e
como seres humanos, como quaisquer seres humanos, eles também podem ser foras
da lei, assassinos, estupradores, assaltantes... No entanto, fica explícito em
estatísticas como a do FBSP que, mesmo considerando que negros e pardos
constituem a maioria do contingente populacional brasileiro, o fato de ser negro
e/ou pardo já configura um fator que pesa contra eles em várias frentes. Historicamente
mantidos nos estratos menos favorecidos da sociedade, com baixa escolaridade e,
por conseguinte, ocupando empregos que ofertam salários menores, não raro,
mesmo quando muitos deles conseguem ultrapassar essa barreira opressora e são
bem escolarizados e qualificados, um número significativo deles acaba sendo
preterido de bons empregos justamente por serem negros. Ou seja, eles vão
passar por um processo seletivo para uma vaga de trabalho sabendo que a cor de
sua pele é um ônus e não um bônus na hora da decisão dos recrutadores.
A dificuldade que certos
segmentos da sociedade brasileira têm – e não somente partindo daqueles que são
“loiros e de olhos azuis”, como dizem alguns – de não só respeitarem como
também compreenderem que negros são tão seres humanos como qualquer outra
pessoa é revelada muitas vezes em ações e comportamentos mesquinhos e por
demonstrações cruéis de intolerância religiosa, como o episódio envolvendo o
jornalista William Waack que, numa fala infeliz e execrável, teria classificado
como “coisa de preto” ficar buzinando insistentemente – pelo menos foi o que eu
ouvi e entendi no vídeo postado no YouTube – e os sucessivos ataques
incendiários aos centros de religião de matriz africana, bradando os criminosos
por aí que “essa coisa nem religião é”. E o que dizer da agressão deveras
covarde sofrida pelo ator negro Diogo Cintra, em São Paulo, no último dia 15?
Será mesmo que se tratou de uma briga sem motivação racista?
Não é correto tratar os
negros o tempo todo como vítimas inocentes de circunstâncias além de seu
controle. Como também não é justo conferir apoio a atitudes como a da ministra
dos Direitos Humanos, Luislinda Valois que num rompante, vá lá, de desatino,
sendo ela uma magistrada e parecendo ignorar até mesmo o papel simbólico que
detém como exemplo para milhões de homens e principalmente de mulheres negras
deste país, declarou que, caso não pudesse juntar aos seus R$ 30.400,00 de
salário de desembargadora aposentada pelo estado da Bahia, o de ministra,
estaria exercendo função que “sem sombra de dúvida se assemelha ao trabalho
escravo”. Devemos, isso sim, como eu disse lá no início, tratá-los respeitosamente
e apoiarmos todas as iniciativas que visem a repará-los de perdas e humilhações
que lhes foram historicamente infligidas. Talvez a permanência ininterrupta das
cotas para o ingresso de negros em universidades públicas e na disputa por
vagas em concursos públicos não seja o mais adequado, mas, sem dúvida alguma,
tal iniciativa precisa ser ainda mantida pelo menos até que comecemos a
perceber os efeitos benéficos da ação no seio da nossa sociedade. Outra frente
de luta de caráter também urgente é nos mantermos vigilantes contra projetos
que vêm tentando anular títulos de posse de terra conferidos às comunidades
legalmente reconhecidas como sendo remanescentes de quilombolas. Precisamos definitivamente
entender que promover reparação com relação à população negra deste país, não
quer dizer que devamos tratar essas pessoas como coitadinhas. Não, a reparação
aqui deve ser compreendida como ação efetiva de justiça social.
Não sei exatamente em que
momento do nosso longo, árduo e penoso processo civilizatório nós falhamos a
ponto de, a partir daí, nos empenharmos tenazmente em querer negar aos negros
uma condição e uma natureza humana. Habitualmente muitas pessoas buscam não
reconhecer a humanidade de outras, agindo elas próprias de maneira inteiramente
desumana. E essa atitude por si só nos diz por que precisamos continuar falando
sobre discriminação contra os negros.
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