Por Clênio Sierra de Alcântara
Há quem diga que quem
percorre o espaço antigo de uma das cidades históricas brasileiras viu todas
elas. Dizem isso não se referindo à fisionomia que elas têm, mesmo porque elas
não são iguais, apesar de se parecerem, e sim apontando para o estado de degradação
do patrimônio edificado nelas presentes. Prédios e edificações outras correndo
o risco de desabarem são, infelizmente, facilmente encontrados em urbes tão
distintas como o Rio de Janeiro, Salvador, João Pessoa, São Cristóvão,
Laranjeiras, São Luís e o Recife.
Esta e as três fotos seguintes são do ano de 2014 |
Este imóvel bastante deteriorado fica defronte ao conjunto que está sendo revitalizado. É a fidelidade ao descaso dando o tom nesse pedacinho do sítio histórico que é a Rua João Suassuna |
Voltemos por ora o nosso
olhar para a cidade de João Pessoa. O turista desavisado talvez fique
tremendamente espantado ao tomar conhecimento de que é a capital paraibana uma
urbe que existe há mais de quatrocentos anos. E creio que o espanto advenha propriamente
não pela idade, digamos assim, dessa cidade, e certamente por ele flanar pelo
chamado centro histórico e se deparar com tamanha falta de trato para com os
bens imóveis que constituem as chamadas cidades Baixa e Alta, formadas pelos
bairros de ocupação mais antiga da capital da Paraíba. Entre ruas, becos e
vielas, principalmente do Varadouro, o passante dá de cara com um acervo predial
que em grande parte ou foi descaracterizado e/ou caminha para isso; e com um
acúmulo terrível de ruínas prestes a desabar a qualquer momento, como a fachada
do Hotel Luso-brasileiro, localizado na Praça Álvaro Machado.
O que muito me impressiona
nas incursões que costumeiramente faço ao centro histórico de João Pessoa é o
que chamo de fidelidade ao descaso que o poder público e os proprietários dos
imóveis dispensam ao patrimônio edificado dessa cidade mais do que
quatrocentona. Enxergo também um evidente desprezo do público em geral para com
a preservação da memória urbana da capital que dia após dia segue se
esfacelando sem que se tomem medidas realmente eficazes para proteger o que
ainda está de pé. E fazendo par e/ou como consequência desse descaso dos
próprios moradores da cidade para com o centro histórico, verifica-se, ou
melhor, constata-se a pouca vida noturna que vibra por ali. O que é o sítio
histórico de João Pessoa, à noite, para além da Praça Antenor Navarro?
Praticamente nada. E sabem por quê? Porque uma área degradada e sem eventos não
atrai ninguém. O clima de insegurança é enorme por ali por conta das
cracolândias e prostíbulos que infestaram o bairro do Varadouro. A situação é
tão crítica, absurda e lamentável que motoristas de ônibus costumam não parar à
noite, nos fins de semana, nos pontos que ficam, vejam só, ao lado do prédio
que abriga o Comando Geral da Polícia Militar. Como assim? Ora, como não se vê
policiamento na área (?), os motoristas pensam que naquele deserto noturno quem
está nas paradas esperando coletivos só pode ser, no mínimo, um assaltante. Já passei
por essa experiência decepcionante; e tive de ir caminhando até o terminal
rodoviário.
Agora um registro fotográfico feito por Walfredo Rodríguez, autor do Roteiro sentimental de uma cidade, em 1928 |
Assim como ocorreu com São
Luís, Aracaju e outras capitais litorâneas brasileiras detentoras de centros
históricos, em João Pessoa sua parte de ocupação mais antiga foi paulatinamente
sendo abandonada, como lugar de moradia, pelas chamadas famílias de prol, que
tomaram a direção principalmente das praias, causando uma progressiva
desvalorização dos imóveis deixados para trás e provocando, claro, a disseminação
do entendimento de que o antigo não tinha mais préstimo e poderia ser deixado
entregue à própria sorte. Desse modo, e apesar de alguns ainda insistirem em
querer morar ali, o que se percebe é que, para além do caráter comercial que a
área detém – e as atividades comerciais são elas próprias, muitas vezes, as
responsáveis pela descaracterização e/ou destruição dos prédios seculares -,
aqui e ali ocupações precárias de uma gente despossuída vai dando o tom do quadro
de desmantelo que como um câncer em processo de metástase, corrói e silenciosamente
acaba com o organismo urbano. Embora o discurso do poder público queira dizer
exatamente o contrário, a verdade é que o centro histórico da capital
paraibana, com todas as ressalvas que se faça, é um organismo que se encontra
doente, muito doente.
Quando eu comecei a circular
por aquele cenário, há quase dez anos, e dei de cara com um verdadeiro acúmulo
de ruínas que me levou a escrever vários artigos, eu fui me certificando de que
em meio à paisagem desoladora circulavam rumores de que estava se buscando
salvar ao menos parte do acervo predial. E assim foi que no transcurso do tempo
algumas iniciativas de salvaguarda do patrimônio edificado saíram do papel e
trouxeram de volta um lampejo de esperança de revitalização para um ponto e
outro do centro histórico à medida que se foi restaurando e devolvendo a
dignidade a certas edificações, como a Casa da Pólvora (em dezembro de 2014), o
Hotel Globo (em agosto de 2016) e o Teatro Santa Roza (em dezembro de 2016).
Existem rumores de que uma
grande revitalização alcançará o Porto do Capim e a área dos armazéns vizinhos
à linha férrea. Projetos dessa monta exigem muito capital e os tempos estão
bicudos.
Uma prova – mais uma – de que
não são nada fáceis as questões que envolvem a implementação de projetos que
visam à restauração do patrimônio edificado no Brasil, em geral, e em João
Pessoa, em particular, é o caminhar a passos de tartaruga do projeto de
revitalização de alguns casarões desde há muito deteriorados localizados na
breve Rua João Suassuna - sua extensão é de, se muito, 150 m -, no Varadouro – a bem da verdade, há outra edificação nessa artéria que está bastante degradada. Tempo houve em que essa via era denominada de Rua dos Ferreiros e ainda Rua Visconde de Inhaúma. Faz quase quinze anos que se tenta
recuperar os imóveis e destiná-los a moradias e outras finalidades dentro do
que em tempos atrás já foi chamado de Projeto Moradouro. Recordo bem que em
2015 a Prefeitura Municipal lançou um edital anunciando a disponibilização
futura de apartamentos. No ano seguinte, novo edital foi lançado; e informava
ele que o projeto se inseria numa iniciativa de revitalização de prédios da
área central da capital; e que seriam disponibilizados doze apartamentos com
financiamento da Caixa Econômica Federal por meio do Programa Minha Casa Minha
Vida.
Nos oito casarões incluídos
no plano da obra foram feitas prospecções arqueológicas, como manda a lei a
respeito de intervenções em edificações de valor patrimonial, ao custo de R$ 112.511,74. E continuou-se na expectativa de como e
quando o projeto iria seguir adiante. E eis que, na primeira semana de janeiro
deste ano, a Prefeitura de João Pessoa divulgou outro edital de um agora
denominado Residencial Villa Sanhauá, cuja vistosa placa de anúncio eu observei
nas visitas que fiz ao local na manhã do domingo 7 de janeiro e na tarde do sábado 3 de fevereiro; a primeira delas ocorrida apenas três dias após a divulgação do edital pela imprensa; e a segunda, num dia em que flagrei homens tocando a obra. Projeto orçado em R$ 4.200.000,00 e
com prazo de conclusão estimado em cem dias, o empreendimento que, de acordo
com o edital, tem entre os seus objetivos principais “promover a ocupação
adequada das áreas centrais, estimular as atividades culturais e garantir a
preservação do patrimônio histórico” disponibilizará em forma de concessão
onerosa dezessete apartamentos para moradia – o prazo de concessão será de
vinte anos -, seis unidades comerciais que sejam vinculadas aos ramos de
alimentos, turismo e atividades culturais – neste caso a concessão, que também
poderá ser prorrogada conforme o interesse da Municipalidade, ficará em um ano.
Além disso, haverá uma unidade destinada à própria Prefeitura que, segundo
declarou o prefeito Luciano Cartaxo, “irá oferecer serviços à população” no
local.
Quem examinar o edital
verificará que, mesmo as denominadas “unidades habitacionais” do tal
Residencial Villa Sanhauá só poderão ser disputadas por pessoas “que desenvolvam atividades
culturais, artesanais ou que promovam a valorização dos elementos típicos da
região do nordeste brasileiro”. Compreendo que a Municipalidade queira
preservar para si a titularidade dos imóveis e que objetive, como foi redigido
naquele documento, estimular e proteger as iniciativas que contribuem para o
desenvolvimento sociocultural e profissional das pessoas, atuantes na área
cultural, intentando com isso “preservar e incentivar suas práticas e saberes”.
Porém, sinceramente, eu não acredito que tal iniciativa irá figurar como o
marco de um novo tempo para o abandonado bairro do Varadouro. Sim, a questão da
promoção de agentes culturais é por demais válida e digna de aplauso. Contudo,
imaginar que só essa gente é e/ou será capaz de dar vida nova àquele bairro é
ignorar, entre outros pontos, o déficit habitacional que existe no centro
histórico – e não apenas nele – que é, em parte, avizinhado por pessoas que
residem em moradias precárias – vide a população que ocupa o Porto do Capim –
em contraste com os inúmeros prédios que se encontram abandonados tanto na
Cidade Baixa como na Cidade Alta; a completa sensação de insegurança que toma
os frequentadores daquela área principalmente à noite; e a ausência de eventos
que estimulem as pessoas a vivenciar aquele território da cidade que, como eu
já disse, permanece há tempos como um espaço marginalizado da capital paraibana.
Sou levado a crer, isso sim, que o Residencial Villa Sanhauá será um retumbante
fracasso.
As necessidades que assolam
o centro histórico de João Pessoa são muitas e evidentes. Ações pontuais como a
que por ora contempla parte do casario degradado da Rua João Suassuna não
solucionam e nem dão conta de demandas que são enormes. Vejam, por exemplo, em
que estado se encontram as praças situadas à margem da linha do trem, onde
comerciantes e caminhoneiros fazem há anos o que bem entendem sem que a
Municipalidade sequer esboce qualquer mínima reação contra os tais abusos que
eles cometem por ali. Olhem o acúmulo de ruínas nas ruas Maciel Pinheiro, Duque
de Caxias, Beaurepaire Rohan, da Areia e outras mais.
A sensação que me consome ao
percorrer aquelas vetustas artérias da capital paraibana é que, dentro em breve,
mais perdas de seu patrimônio edificado serão lamentavelmente referenciadas nas
narrativas daqueles que se põem a registrar a sua memória urbana.
Muito bom!
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