17 de fevereiro de 2018

Personas urbanas (16)

Por Clênio Sierra de Alcântara


Se você não suporta mais tanta realidade
Se tudo tanto faz, nada tem finalidade
Então pra que viver comigo?
                                                    Admito que perdi. Paulinho Moska




Insatisfação. Deveríamos, desde a mais tenra idade, ser ensinados e/ou estimulados a esboçar, demonstrar e dizer das nossas insatisfações em relação a qualquer coisa que nos inquietasse. Mas não é isso o que normalmente acontece. Infelizmente, no geral, somos desde crianças como que orientados a fingir, a calar, a engolir o choro, a disfarçar, a esconder e fazer de conta que tal e tal coisa, pessoa e/ou situação não nos traz a mínima satisfação, quando, pelo contrário, nos inquieta, nos aflige, nos perturba, nos tira o sono, nos enfraquece, nos constrange, nos apequena, nos humilha e até nos amedronta. Habitualmente chegam mesmo a dizer que não é de bom tom e nem demonstração de que se teve boa educação expressar ali, no instante em que o fato ocorreu, o incômodo que ele nos causou. Espera-se que nós engulamos os sapos, que suportemos calados a dor, que digamos o não queríamos dizer e ajamos como autômatos programados para sempre dizer sim e/ou está tudo bem, ainda que não esteja.

Não é todo mundo que consegue se desvencilhar das amarras dessa verdadeira educação da submissão e da resignação e passa a seguir os fundamentos de uma cartilha própria cuja lição número um é a que estabelece que devemos nos livrar de toda e qualquer insatisfação que for possível, para que não façamos do nosso cotidiano um calvário interminável.

Há quem pense que precisa dar explicações a respeito de sua inadequação a isso e aquilo, de sua insatisfação frente a uma coisa e outra, quando o que basta realmente é o simples ato da recusa, é um simples e enfático não a depender do caso. Querem um exemplo: desde muito jovem ouvi dizer que não era elegante se desfazer de presentes. Ora, e eu vou guardar e/ou celebrar algo do qual não gostei? Sabe o que faço quando me presenteiam com algo que me causa repulsa? Ou o repasso para alguém que eu sei que ficará no mínimo contente em ganhar aquilo ou jogo na lata do lixo depois de fazê-lo em mil pedaços. O que eu não faço é conviver com algo que me incomoda tremendamente a cada vez que eu lanço os olhos sobre ele. Eu não iria, mas vou dar outro exemplo: não costumo dizer que estou de dieta ou coisas do gênero para recusar determinadas comidas, principalmente quando até me enojam e/ou o cheiro me dá um embrulho no estômago; eu digo logo e sem rodeios, que eu não como aquilo e ponto-final. Esse negócio de “agir com educação” para não ferir sensibilidades, definitivamente não serve para mim. Não tenho mais idade para isso. Meus estoques de vergonha, paciência e fingimento se esvaíram faz tempo e eu decidi não repô-los.

Deixemos de lado essas considerações iniciais, porque, na verdade, eu quero dizer aqui de uma insatisfação bem específica, que é a de estar num relacionamento afetivo que já não nos dá mais prazer e que resultou num atrapalho de vida, para ser mais preciso, porque tem certos relacionamentos que paulatinamente vão subtraindo e roubando de nós toda e qualquer mínima satisfação e até a alegria de viver, porque resultam em fardos pesados demais para carregarmos; e quando se chega a tal ponto é sensato, prudente e saudável, antes que o mal nos consuma por inteiro, nos livrarmos deles.

Uma amiga de longa data me procurou dia desses para me contar das agruras de anos vividos ao lado de um marido que não já não a completa e que a fez passar por um pesadelo terrível que, inclusive, a levou a fazer terapia e que, acredito, desencadeou o estado de insatisfação que impera ainda hoje sobre ela. Quando ela começou a narrar as insatisfações, eu recordei que lá atrás, no momento em que se deu o tal pesadelo, eu lhe disse que aquilo por si só, dada a gravidade do acontecimento, era um motivo mais do que suficiente para que ela pusesse os pontos nos is e avaliasse quão temerário seria continuar metida com um homem que foi capaz de fazer o que ele fizera. Não adiantou. E não adiantou porque as pessoas, em geral, e as mulheres, em  particular – sobretudo as que  tolamente acreditam que podem dobrar os homens -, não seguem conselhos; e o que querem, na verdade, é só desabafar, e o desabafo, como cada um de nós sabe e muitas vezes se recusa a aceitar, por si mesmo não soluciona tudo. E ela continuou descrevendo a sua trajetória de dissabores.

No relato dessa minha amiga entraram os elementos comumente encontrados nas narrativas de tantas outras mulheres que buscam justificar os motivos e as razões de se manterem presas a relacionamentos que só as corroem mais um pouco a cada dia: o homem lhe dá suporte para criar o filho único; ela não sabe qual será a ocasião certa para pôr fim à relação. Ouvindo isso, o que eu poderia dizer?

Falei que não tenho experiência de morar junto com alguém e nem sequer tentei, porque num relacionamento que tive, que durou dez anos, não havia interesse para tanto. Mas o tempo vivido nessa relação me deu bagagem suficiente para eu ter uma posição muito clara sobre essa questão da insatisfação. Foram inúmeras as idas e vindas e o desgaste inevitável foi corroendo tudo. Até que eu cheguei a um ponto em que não suportei mais, porque muito nitidamente eu via que aquela ligação afetiva não tinha mais razão de ser e estar acontecendo. Não que me faltasse carinho e nem apreço com relação à pessoa; o que faltava essencialmente entre nós – e isso para mim é basilar – era uma sintonia quanto à visão de mundo e ao modo de enfrentarmos as dificuldades do dia a dia inerentes ao que somos, ao que pensamos e ao que desafiamos. E como eu era, desde o início, a parte considerada egoísta, individualista, impositiva, insensível e por aí vai, resolvi dar um basta definitivo à situação. E, em que pese a tristeza que me acompanhou por dias a fio depois da separação, eu fui sentindo que gradativamente a tristeza foi dando lugar a uma confortável e bastante prazerosa paz interior, paz e alívio por ter conseguido finalizar aquele capítulo da minha vida, porque foi como se eu tivesse me libertado de um calabouço muito escuro e frio. Nossa, que alívio!

Minha amiga insistiu no fato de que o homem lhe dá suporte para que ela consiga proporcionar uma boa educação para seu filho, que é enteado dele. Disse-lhe que não confundisse gratidão com prisão. E arrematei os relatos de meus infortúnios vivenciados naquele relacionamento dizendo para ela que viver com insatisfação, seja em relação com o que for, para mim é a pior coisa que existe.


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