29 de março de 2018

Sedução, alegria e espanto em Salvador

Por Clênio Sierra de Alcântara

                 Fotos: Ernani Neves  
  Igreja do Senhor do Bonfim, um dos pontos mais visitados da capital baiana. Estivemos lá numa sexta-feira, "o dia maior", como me disse uma fiel devota. Estar na Bahia é algo muito fascinante e sempre motivador para mim


I


Pouco mais de um ano depois de o Brasil ser descoberto pelos portugueses, os navegadores de além-mar se depararam no dia 1º de novembro de 1501 com uma baía muito ampla, cheia de ilhas e repleta de habitantes e a batizaram de Baía de Todos os Santos – como se sabe, eles comumente davam nomes aos acidentes geográficos e aos lugares quase sempre de acordo com os santos do dia -; e assentaram um marco de pedra no extremo sul do promontório, no sítio atualmente ocupado pela fortaleza e farol de Santo Antônio da Barra – a antiga Ponta do Padrão.

Muito embora tenha sido desde o primeiro momento considerada um bom e seguro lugar para ancoragem e nela houvesse sido erguida uma feitoria com o objetivo principal de tentar intimidar as incursões dos franceses e garantir o abastecimento das naus portuguesas com o pau-brasil, a baía acabou sendo negligenciada a tal ponto que, tendo Cristóvão Jacques entrado nela em 1525 com o fito de combater piratas oriundos da França, veio ele a ser considerado o descobridor daquela área.

É digno de nota o fato de que um português chamado Diogo Álvares, o Caramuru, que teria sobrevivido a um naufrágio ocorrido por volta de 1510 ou 1511 nas imediações do Rio Vermelho, na localidade que já foi considerada bairro, o da Mariquita, viveu durante vários anos entre o gentio; por esse tempo, aliou-se a corsários franceses, servindo de intermediário entre eles e os nativos no comércio do pau-brasil.



Dona Marina do Rosário: fé na base de tudo


Ernani Neves recebendo a bênção do padre


Eu fazendo pose junto ao gradil repleto de fitas do Senhor do Bonfim







Entendeu a Coroa Portuguesa que a Bula papal assinada por Alexandre VI, que fixara o Tratado de Tordesilhas, determinando a divisão do mundo entre Portugal e Espanha, era ignorada principalmente pelos franceses e não eram meras feitorias que iriam impedir as constantes expedições deles para negociarem com os índios. Desse modo decidiu-se recorrer a outro empreendimento com vistas a garantir a posse da terra: a criação das Capitanias hereditárias, a partir das quais se pretendia promover a fundação de povoações e estimular a colonização da vastíssima costa brasileira.

Foi em meados da década de 1530 que chegou à Capitania da Baía de Todos os Santos o seu primeiro donatário Francisco Pereira Coutinho. Ele desembarcou com sua gente na enseada da Barra, próxima à povoação estabelecida por Caramuru. Percebendo a necessidade urgente de dominar e defender o porto, o donatário construiu uma estância com casas para cerca de cem moradores com trincheiras ao redor – essa Vila do Pereira estava situada no local atualmente conhecido como Porto da Barra. Ainda que contando com o auxílio de Diogo Álvares para conter a insatisfação dos nativos diante do imperativo de posse de suas terras, Pereira Coutinho, o “rusticão”, como fora apelidado, teve de enfrentá-los em vários combates até que, certa feita, capitulou e retirou-se para Porto Seguro. Cogitou mais tarde em retomar a direção de sua capitania; e na viagem de volta diz-se que um naufrágio o surpreendeu nas proximidades da Ilha de Itaparica, onde acabou morrendo nas mãos dos índios. O que se seguiu foi o saque e arrasamento da Vila do Pereira, o desarmamento da fortaleza, a destruição dos engenhos de açúcar e a matança de todo o gado.

O que fazer depois do malogro tanto do estabelecimento de feitorias quanto do sistema de Capitanias hereditárias? A nova diretriz para promover a colonização foi dar à Colônia um governo-geral que fosse capaz de dirimir e de sobrepor pela força e pela autoridade e competência, todos os fatores que se portaram como obstáculos para o desenvolvimento das capitanias. Decidiu Dom João III que a sede do governo seria instalada na Bahia. E assim, por alvará de 7 de janeiro de 1549, determinou o monarca, conforme vai dito na Enciclopédia Brasileira dos Municípios:

mandar fazer uma fortaleza e povoação grande e forte na Baya de Todos os Santos por ser yso o mais conveniente luguar que ha nas ditas terras do Brazil para daly se dar favor e ajuda nas outras povoações e se ministrar justiça e prover nas cousas que cumprem a meu serviço e aos negócios de minha fazenda e a bem das partes... (1)




A ocupação desordenada dos morros dá a tônica na capital baiana














Em completo estado de ruínas, em 2013, estes edifícios contíguos à Igreja da Conceição da Praia estão sendo reconstruídos



Ainda em 1549 – em 1º de fevereiro – partiu da capital portuguesa grande frota constituída pelas naus Salvador, Conceição e Ajuda, as caravelas Rainha e Leoa e o bergantim São Roque, trazendo centenas de pessoas, inclusive três das personalidades mais significativas no que diz respeito à organização do Brasil: Tomé de Sousa, o primeiro Governador-geral, o padre Manuel da Nóbrega, superior dos jesuítas, e Garcia d’Avila, que foi feitor e almoxarife da cidade.

Depois de entrar em entendimento com Diogo Álvares, Paulo Dias Adorno e outros moradores para que providenciassem alojamentos para todo o contingente, Tomé de Sousa desembarcou no dia 31 de março. Muito embora a glória da fundação da cidade tenha cabido a ele, não podemos excluir a existência do núcleo de povoação, a Vila do Pereira. O desembarque de Tomé de Sousa marca efetivamente o início da história de Salvador e da construção da cidade. Oficialmente comemora-se a fundação da cidade no dia 29 de março, data da chegada de Tomé de Sousa.

Durante cerca de um mês, os recém-chegados se ocuparam em estabelecer contatos de paz com os nativos, promover o plantio de mantimentos, armazenar apetrechos bélicos e ferramentas, reparar a cerca da antiga povoação do Pereira e explorar o terreno à procura de um local adequado ao estabelecimento da cidade. Eis a descrição do sítio que fora escolhido para tanto:

um terrapleno distante, cerca de meia légua, da Vila Velha e da povoação do Pereira, de situação estratégica, debruçado a pique sobre o mar, dominando-o, com ótimas aguadas e porto extenso, de fácil defesa, caso viessem ataques do mar ou de terra, uma vez que este altiplano dominava os morros vizinhos, de que se isolava pelos riachos e lagoas que enchiam as baixadas de valados profundos. (2)

O terreno foi limpo, levantada uma estacada, construídos os muros e erguidas as casas do Governador e da Câmara no alto do monte. O arquiteto Luís Dias desceu à ribeira e ali fez, à beira–mar, o arsenal e a alfândega com os armazéns. Em princípio as casas foram construídas todas térreas, feitas de taipa de mão e cobertas com folhas de palma.







Elevador Lacerda




Mercado Modelo



















Em 13 de julho de 1553 chegou à Bahia Duarte da Costa, sucessor de Tomé de Sousa no governo-geral, cuja administração, curta como a do antecessor, foi marcada pelo triunfo sobre os tupinambás e o impulso dado à catequese encabeçada pelo padre Nóbrega.

Corria o ano de 1557, quando às paragens baianas aportou Mem de Sá, o terceiro Governador-geral, que seguiu no posto durante quinze longos anos (1557-1572), boa parte deles dedicados à expulsão dos franceses do Rio de Janeiro. Durante o seu governo, a cidade de Salvador conheceu um período de movimentada renovação urbana. Em termos de construção e reformas prediais, sofreram intervenções a Casa de Câmara e o Palácio do Governador; foram construídas as primeiras enfermarias da Casa da Misericórdia; erguido o corpo de alvenaria da Sé Catedral; e edificada às custas dele a Igreja do Mosteiro de Jesus (atual Catedral Basílica). Mem de Sá mandou erguer em Pirajá até um engenho público, o Lagar do Príncipe, onde os lavradores pobres podiam moer suas canas, e restaurar aldeias em torno da cidade.

No ano de 1573 a Coroa Portuguesa tomou a decisão de manter o Brasil sob a administração de dois governos com atribuições iguais, mas independentes entre si: o governo do Norte, com sede em Salvador, ficou a cargo de Luís de Brito; e o do Sul, sediado no Rio de Janeiro, foi confiado a Antônio Salema. Tal resolução caiu por terra cinco anos depois, quando novamente unificou-se a administração sob a autoridade de Diogo Lourenço da Veiga, ficando sediado outra vez em Salvador.

Antes que o terceiro quartel do século XVI terminasse, o ouvidor Cosme Rangel conseguiu desbaratar os vários quilombos de negros fugidos que se formaram nos arredores da cidade, entravando o seu crescimento. Outros entraves a emperrar seu desenvolvimento foram a expansão pela costa à procura de terras para a lavoura da mandioca, as primeiras entradas e a fundação do Rio de Janeiro; além disso, a população não era numerosa por essa época: em 1576 contaram 1.100 brancos apenas.































Igreja do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo foi restaurada e reaberta neste ano, depois de ficar mais de vinte anos fechada 

Imóveis como estes estão escorados para que não desabem








Hora de descansar porque hoje eu andei muito






Rua Chile


Vista do Forte de São Marcelo











Rompendo a cerca primitiva, a cidade crescera, estendo-se desde a atual Praça do Pelourinho, ao norte, até ao terreiro hoje conhecido como Praça Castro Alves, ao sul. O período quinhentista seria marcado ainda pelo aumento de construções religiosas em vários pontos do espaço urbano: o Mosteiro de São Bento e o dos Carmelitas, por exemplo, foram iniciados respectivamente em 1584 e 1586: e o de São Francisco em 1583.

A prosperidade baiana – um dado evidencia isso: em 1576, só de Angola, foram trazidos 3.000 negros para trabalharem ali como escravos em engenhos, que eram 36 e produziam 3.000 caixas de açúcar, possivelmente ao ano – despertou ainda mais a cobiça de outros europeus, principalmente quando houve a unificação dos reinos da Espanha e de Portugal, no período de 1580 a 1640, conhecido como União Ibérica. Os inimigos dos espanhóis não perderam tempo em promover incursões com vistas a ocupar Salvador. Em 21 de abril de 1587 a cidade foi bombardeada por piratas ingleses comandados por Lestes e Withrington, cujo desembarque acabou não ocorrendo devido a um temporal que desarvorou os navios.

Na véspera do Natal de 1599 uma esquadra flamenga comandada pelo almirante Leynssen encheu a Baía de Todos os Santos posicionada para o combate. No entanto, as defesas portuguesas não capitularam, repeliram e impediram o desembarque dos invasores. Durante quase dois meses – cinquenta e cinco dias – os holandeses, não conseguindo aportar em Salvador, queimaram embarcações no porto, e percorreram o Recôncavo assaltando engenhos de açúcar, destruindo alambiques e incendiando casas.












Hora de sentar para assistir ao pôr do sol na Barra


Eu e Luana Monteiro


A simpaticíssima Cristina Fonseca






Ainda no princípio do século XVII – 1604 – os holandeses, desta feita sob o comando de Paul Wan Caarden, tentaram novamente invadir a cidade; bombardearam o burgo durante quarenta dias, mas outra vez não venceram a resistência portuguesa.

O crescimento e a fama adquirida pela cidade continuaram atraindo a cobiça estrangeira. Já em 1612 corsários franceses de Daniel de La Touche que intentavam chegar àquele terreno foram repelidos em pleno oceano.

Avisado de que os holandeses planejavam uma nova investida, o governador Diogo de Mendonça Furtado tratou de acelerar as obras que garantissem a defesa da cidade, como fortes, trincheiras e redutos. Em 14 de abril de 1624 flamengos foram avistados na altura da foz do Rio São Francisco. Em 9 de maio, por volta das nove horas da manhã, transpuseram a barra, renderam o forte na Ponta do Patrão, tendo 1250 deles desembarcado nas proximidades dessa fortaleza, enquanto a maior parte da esquadra rumava para o porto da cidade. E na noite desse mesmo dia eles acamparam nas portas de São Bento. Não houve desta vez resistência. Portugueses e espanhóis – recordemos que ainda se encontravam sob o mesmo governo Portugal e Espanha devido à União Ibérica (1580-1640) – foram dominados pelos flamengos que saquearam Salvador recolhendo alfaias, joias, moedas de prata e muitas outras coisas. Donos da situação, eles fortificaram a seu modo a cidade e depredaram igrejas a fim de transformá-las em depósitos, celeiros, adegas e paióis.

Para as bandas do Rio Vermelho a resistência foi se organizando; e dali as guerrilhas se movimentavam em ataques aos inimigos nas zonas de São Bento, Carmo e Itapagipe.



              A partir daqui os registros fotográficos são de minha autoria e correspondem ao ano de 2017








A imagem de Nossa Senhora da Conceição muito celebrada em seu dia


















Ao lado desse prédio caindo aos pedaços, encontra-se um estacionamento


Diversão total!







O socorro espanhol só chegaria no ano seguinte. Em 22 de março, uma esquadra de cinquenta e dois navios – além de urcas, patachos e outros barcos -, com um contingente de 12563 homens sob o comando de Dom Fradique de Toledo, adentrou na baía bloqueando a esquadra holandesa. No dia 30 de abril ocorreu a assinatura da rendição dos invasores no Convento do Carmo.

As narrativas históricas nos informam que até mesmo os soldados espanhóis contribuíram para agravar o estado de ruína em que a cidade fora deixada pelos holandeses, promovendo saque de tudo que fosse possível ser levado, como até portas e fechaduras. Um dos maiores danos que a invasão provocou foi a destruição dos livros e arquivo da Câmara, causando a perda de um rico documentário da vida da cidade até 1624.

Enquanto buscava se reerguer e ampliar seu sistema defensivo, Salvador teve de repelir uma nova investida holandesa, ocorrida um março de 1627, sob as ordens de Pieter Heyn.



























Depois de, em 1630, dominarem a Capitania de Pernambuco, os holandeses, agora já sob o comando do conde Maurício de Nassau, armaram poderosa esquadra destinada a invadir o terreiro soteropolitano. Eis o que registrou Gaspar Barlaeus sobre o preâmbulo dessa investida no livro em que se narra os anos do governo nassoviano – 1637/1644 – nas terras brasileiras:

Começou, pois Mauricio a revolver no pensamento esta facção de maior tomo e de maior labor, isto é, a expugnação da Baía e de sua metrópole [...] Era ali, diziam eles, o principal refúgio dos portugueses; era ali que se dava a máxima atenção à resistência contra o invasor e à honra do rei da Espanha; em nenhuma outra parte havia mais engenhos de açúcar e presa mais rica; com aquela vitória poderia o Brasil dentro em breve estar todo sujeito à Holanda, e nenhuma outra cidade galardaria mais dignamente os vencedores  e causaria danos mais certos aos adversários. (3) 

Foi em 16 de abril de 1638 que a esquadra holandesa desembarcou na praia de Nossa Senhora da Escada sem encontrar resistência. Daí marcharam os flamengos sobre Itapagipe, atingiram Água de Meninos e galgaram o oiteiro da Lapinha e assestaram sua artilharia no alto da Soledade. No dia 2 de maio uma decisiva batalha foi travada à noite e os invasores não resistiram ao fogo da fortaleza de Santo Antônio Além do Carmo e aos ataques dos comandados de Luís Barbalho. E, sem saída, Maurício de Nassau pediu armistício e, em meio a este, retornou com sua gente para Pernambuco.

Mas os holandeses não tardariam a retornar ao terreiro soteropolitano. Em 25 de abril de 1640 eles estavam de volta, agora sob o comando do almirante Lichtbardt. Nessa investida não apenas a cidade foi atacada: vinte e sete engenhos foram incendiados e destruídos; além de povoações e casas particulares da região do Recôncavo.

No ano de 1647 Salvador sofreu outro ataque holandês. Dois mil e quinhentos homens comandados por Sigismundo Van Sckoppe desembarcaram na ilha de Itaparica em fevereiro e só se retiraram em dezembro daquele ano, quando se aproximava um reforço português vindo de Lisboa.





É noite em Salvador: começa o envolvente Circuito Jorge Amado











O definitivo esforço contra os invasores no século XVII proporcionou um tempo de nova e fulgurante expansão do espaço citadino. A tosca cidade de palha e madeira adquiria doravante ares de verdadeiro centro urbano com a construção de palácios, como o dos governadores, o do arcebispo, o da Câmara, o da Misericórdia; além de santuários e conventos. O casario humilde também se expandiu. E a cidade foi descendo pelas ladeiras, se estabelecendo igualmente na parte baixa do terreno que marcava a Baía de Todos os Santos.

Nos primeiros anos do século XVIII a cidade continuou crescendo a olhos vistos. Sob a administração do marquês de Angeja (1714-1718) ocorreu – e diz-se que com o incentivo dele – a chegada de membros da aristocracia rural do Recôncavo, que começou a estabelecer em Salvador a construção de residências compatíveis com a riqueza de que dispunham.

Novas ruas continuam a surgir; e velhos bairros também vão acompanhando o crescimento da cidade. Na parte baixa da montanha, a construção da alfândega ensejou o surgimento de inúmeras casas de negócio, dando origem à atual Cidade Baixa, que sempre enfrentou ameaças de desabamentos da encosta, como os que ocorreram em 1721 e 1732, apesar das obras visando a consolidação do terreno. A propósito, vale a pena o exame de um mapa de cerca de 1785, de autoria de José Gonçalvez Galeão, no qual são indicados os aterros e as novas áreas edificadas, avançando sobre o mar, e que está contido na obra magnífica Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial, organizada por Nestor Goulart Reis. (4)











Muito embora tenha perdido o status de capital da Colônia em 1763, Salvador permaneceu em franca fase de desenvolvimento ainda no século XVIII, quando se observam a abertura de novas artérias e retificação e pavimentação de outras já existentes. Além disso, a cidade foi equipada com um cais de desembarque, foram erguidas outras muralhas entre a Misericórdia e o Taboão, e o seu primeiro teatro – a Ópera Velha – na Rua do Saldanha. De modo que, como esse ritmo construtivo, a cidade adentrou no século XIX com o seu delineamento já estabelecido, indo, na Cidade Baixa, da Praia da Preguiça até a Jequitaia, numa rua tortuosa que comportava prédios de 3 e 4 andares, e, na Cidade Alta, do Forte de São Pedro até o Convento da Soledade.

Antes, porém de começarmos a “passear” pela cidade no século XIX, leiamos a descrição que dela fez  Luiz dos Santos Vilhena que a ela chegou em fins de 1787, anotando, entre tantos outros pormenores, que o sítio urbano era constituído por seis bairros: São Bento, da Praia, Santo Antônio Além do Carmo, Palma, Desterro e Saúde. Vejamos o relato:

Pouco menos de meya légua para dentro da Barra e pelo pé da montanha que acompanha a marinha, correndo de Nordeste a Sul sudoeste, fica a cidade do Salvador, comessando na praya no citio da Preguiça athe a Gequitaia, com huma rua tortuosa mas continuada com propriedades de cazas de tres e quatro andares e outros grandes edifícios tendo de oito para nove mil pez portugueses de comprido; e a esta povoação que por toda a sua extensão deita diversos beccos que vão morrer na marinha, chamão a Praya ou Cidade Baixa. Por sette calçadas que sobem pela colina procurando a campanha para a parte do Nascente se comunica esta com a cidade alta que na mesma direcção da Montanha corre com huma semelhante rua, com tortuosidades não pequenas, desde o Forte de S. Pedro athé o convento da Soledade, com meya légua de comprido, com pouca differença. Na sua mayor largura, procurando a campanha ao Nascente, poderá ter a cidade de quatrocentas para quinhentas braças; bem entendido que differentes ruas acompanhão aquella principal com direcções diversas; os seus grandes Edificios, Templos e Cazas nobres são ordinário pelo gosto e risco antigos, em que se notão algumas irregularidades, á excepção de poucos mais modernos. (5)



A feirinha em Campo Grande






A passagem – na verdade, a comitiva se demorou trinta e quatro dias na cidade: de 22 de janeiro até 26 de fevereiro de 1808 – da corte de Dom João VI por Salvador, fugindo da invasão dos exércitos de Napoleão Bonaparte, trouxe um ritmo de acelerado progresso material para Salvador. Algo verificado acentuadamente sob a administração de Dom Marcos de Noronha e Brito, o oitavo Conde dos Arcos (1810-1818). Por esse tempo ergueu-se o vistoso prédio da Junta do Comércio (atual Associação Comercial), construiu-se o Passeio Público, organizou-se uma biblioteca pública. Mas nem tudo era transformação positiva o que ocorria no espaço urbano. Continuaram os desmoronamentos na encosta sobre a qual estava assentada a cidade – nos invernos de 1812 e 1813, inúmeros prédios desabaram e outros foram soterrados na Cruz do Pascoal, no Xixi (Pilar), na Misericórdia, na Gamboa, na Conceição e em Santo Antônio Além do Carmo – e, em decorrência disso, cogitou-se transferi-la para a península de Itapagipe.

Johann Moritz Rugendas, o talentoso alemão nascido em Augsburg, que nos legou uma das mais ricas coleções de gravuras de aspectos da vida natural e social do Brasil do século XIX, esteve em Salvador em 1821. Rugendas circulou por várias áreas da cidade observando tipos humanos e aspectos das edificações tanto na Cidade Baixa como na Cidade Alta. Segue um trecho dos seus apontamentos:

Perto da alfândega e do cais de desembarque, as casas têm, em geral, três, quatro e mesmo cinco andares, mas não comportam senão de três a quatro janelas nas fachadas. As ruas são estreitas e irregulares, porque o pequeno espaço entre os rochedos e o mar não permitia abri-las com maior largura. Três ruas ascendentes, e fortementes inclinadas, unem a cidade comercial aos bairros e arrabaldes. Nestes as ruas são mais largas, mais limpas e mais bem calçadas. Há, na Bahia, grande número de edifícios públicos, mas eles são muito mais notáveis pelo tamanho que pela beleza da arquitetura. (6)










Edifício Oceania, um dos ícones da capital baiana

Quarta-feira, 17 de outubro de 1821: “Esta manhã, ao raiar da aurora, meus olhos abriram-se diante de um dos mais belos espetáculos que jamais contemplei. Uma cidade magnífica de aspecto, vista do mar, está colocada ao longo da cumeeira e na declividade de uma alta e íngreme montanha”. Foi com essas palavras que a inglesa Maria Graham marcou sua primeira impressão de Salvador nas páginas do seu diário. Mas bastou que ela começasse a percorrer a pé o burgo que de longe lhe despertara admiração para que outra realidade enchesse seus olhos: disse que a rua pela qual entrou através do portão do arsenal era “sem nenhuma exceção o lugar mais sujo em que eu tenha estado” – na verdade, segundo ela, a Cidade Baixa era imunda -; as construções eram altas, “mas não tão belas nem tão arejadas como as de Pernambuco”. A curiosa e bem disposta visitante disse que andou pela maior parte da cidade tendo verificado que as casas, “na maior parte, são repugnantemente sujas”; e que, magnificamente situada, a Cidade Alta, “Pela sua elevação e pela grande inclinação da maior parte das ruas, é incomparavelmente mais limpa que o porto". (7) 

Embora sem me ater aos detalhes dos inúmeros acontecimentos políticos e insurreicionais que marcaram a história da cidade, sempre que eu dispor de alguma informação resultante deles que digam respeito ao quadro material da urbe, mencionarei aqui, como é o caso desta: devido aos acontecimentos em torno da luta pela independência do Brasil, em 19 de fevereiro de 1822, soldados e marinheiros lusos saquearam casas e templos religiosos de Salvador. Os acontecimentos beligerantes provocaram o êxodo da gente abastada para suas fazendas e engenhos; e deixaram os que ficaram na cidade sob a ameaça também da fome. Somente em julho de 1823 foi que as tropas portuguesas começaram a evacuar Salvador.

Apesar de sua importância como centro urbano e de pagar, assim como todo o país, um imposto para a iluminação do Rio de Janeiro, os primeiros lampiões que principiaram a alumiar Salvador, alimentados com óleo de baleia, foram inaugurados em 6 de julho de 1829, na Cidade Baixa e, pouco depois, no distrito da Sé e em São Pedro.




Em louvor de Iemanjá












Em consequência dos embates que o governo regencial travou contra os partidários de Sabino Vieira, no movimento que visava a proclamar a República na Bahia que ficou conhecido como Sabinada, o número de mortos passou de mil e cerca de sessenta prédios foram destruídos por incêndios.

Ao que parece por estar sobremaneira interessado em examinar os aspectos da fauna e principalmente a flora do país, o naturalista e médico escocês George Gardner não fez descrições substanciais da “cidade da Bahia”, quando nela aportou em fins de setembro de 1837. Eis aqui um panorama por ele descrito:

A cidade, também chamada S. Salvador, situa-se na baía conhecida pelo nome de Baía de Todos os Santos. Há cidade alta e a cidade baixa: esta é edificada na estreita faixa de terra entre o mar e a eminência em que a cidade alta se levanta. é formada principalmente por uma comprida rua, ao mesmo tempo estreita, mal calçada e suja. As casas na maioria são altas e as juntas à praia avançam bastante mar a dentro. (8) 



Porto dos Livros: também imperdível


Como parte de sua viagem pelas terras brasileiras, na manhã do dia 7 de julho de 1839 o missionário protestante norte-americano Daniel Parish Kidder desembarcou na capital baiana. Acompanhemos um trecho de sua narrativa:

Tendo saltado junto ao Arsenal, passamos pela cidade baixa, que se resume numa única rua paralela à praia.

Ao longo da Rua da Praia, encontram-se as principais casas de comércio da cidade. Aqui se vê a alfândega, por onde passam todas as mercadorias de procedência estrangeira; ali o Consulado pelo qual devem transitar as exportações da província. Alguns dos trapiches existentes nas proximidades ostentam proporções enormes e, ao que se afirma, são tos maiores do mundo [...].

A cidade baixa não oferece atrativos para o estrangeiro. Os prédios são antigos, conquanto apresentem aspecto alegre. A rua é muito estreita, acidentada e pessimamente calçada. Além disso, a sarjeta fica mesmo no meio, de maneira que a rua se torna asquerosamente imunda. (9)











Mas não foram somente essas observações sobre o espaço urbano que Kidder registrou. Caminhando pela cidade, notou, entre outras particularidades, que em ponto algum a urbe se alastrava, porém, “em sua maior parte, compõe-se de apenas uma ou duas artérias principais”. E salientou que: “A cidade tem aspecto antigo. Grandes somas de dinheiro gastaram-se com a pavimentação das ruas, obra essa que obedeceu, antes à necessidade de evitar a erosão que desejo de conseguir uma superfície carroçável”. (10) 

A cidade atravessaria outro período de acentuado desenvolvimento estrutural a partir de 1840, quando, além do estabelecimento de instituições como a Escola Normal, foram pavimentadas as principais artérias da área comercial (Cidade Baixa) até a Calçada do Bonfim; nivelaram-se a Rua do Sodré e a Ladeira de Santa Tereza; fizeram-se as obras de consolidação das muralhas de arrimo da Ladeira da Misericórdia, que também foi pavimentada; abriu-se a Rua da Vala (atual Rua José Joaquim Seabra, mais conhecida como Baixa do Sapateiro), drenando brejos e canalizando córregos desde a Ladeira de são Roque até o Arco da Estrada (Arco das Sete Portas); e foi regularizado o serviço de abastecimento de água, tendo sido inaugurados em 7 de janeiro de 1852 vinte e um chafarizes, sendo alguns deles de caráter ornamental. (11) 

Passando pela Bahia em 10 de fevereiro de 1855, o médico alemão Robert Avé-Lallemant ousou, segundo ele disse, chamá-la de “imponente e magnífica”. E entre outros pormenores nos legou esta descrição daquele sítio urbano:

No alto da costa, casas de campo, vistosos jardins, praças e o forte de S. Pedro; em baixo, na praia, começa a verdadeira cidade, a cidade baixa; uma comprida faixa de cidade com casas altas, ruas estreitas e sujas e intensa vida comercial. Estende-se mais além para o norte e para o noroeste, terminando com longa fila de habitações à beira-mar, que pouco a pouco se perdem no distante Bonfim e Monserrate.

Em cima, no alto, para o interior, a cidade alta, continuação alcantilada da cidade baixa, uma babel de casas, igrejas, conventos, um caos de vielas, praças, recantos, becos e travessas, que sobem e descem, e em cuja conexão, só depois dalgum tempo, pode o recém-chegado descobrir alguma ordem. (12)

Dentro do roteiro da longa viagem empreendida pelas províncias do norte do país, em 6 de outubro de 1859 desembarcou em Salvador o imperador Dom Pedro II, acompanhado da imperatriz Teresa Cristina. Em seu diário de viajante, o imperador não apenas fez descrições de lugares, pessoas, coisas e situações, como também vez e outra se arriscou a fazer desenhos de alguns sítios por ele visitados. Apesar de ser muito meticuloso e observador e de ter, ainda na embarcação examinado uma planta da cidade, pouco nos diz Dom Pedro II detidamente a respeito dos aspectos urbanos de Salvador. Quando descreveu o desembarque, ocorrido depois do almoço, ele registrou que “As ruas são estreitas e enlameadas – não muito – até à Sé Nova, ou igreja de Jesus”. (13) 



Balada na Rua do Couro







Apenas um ano após a visita do imperador, Salvador se viu novamente envolvida por uma série de melhoramentos: macadamizou-se a Rua da Vala; inauguraram caminhos novos que ligaram a Fonte Nova ao Rio Vermelho, costeando o Dique do Tororó, e o Retiro ao Engenho da Conceição.

Foi no dia 10 de maio de 1862 que o serviço de iluminação a gás carbônico começou a funcionar, inicialmente montado entre a Rua do Noviciado (São Joaquim) e o Cais Dourado ou do Ouro (Praça Marechal Deodoro da Fonseca), com 96 combustores, tendo sido construído o gasômetro naquela rua. Três meses depois já eram 1475 o número de lampiões em pleno funcionamento.

Outra iniciativa de grande importância que marcou o crescimento da cidade foi a concessão do serviço de transporte de carga e passageiros ocorrida em 18 de maio de 1864, mais tarde transferida ao negociante Antônio Francisco de Lacerda, em 1869, que montou elevadores hidráulicos ligando as partes baixa e alta, inaugurados em 8 de dezembro de 1873 e eletrificados em 1907.


II


A esta altura a evolução da urbe prosseguia com seu arcabouço delineado, tendo morros e elevações desaparecidos para darem lugar a praças e jardins. No ano de 1878 foi aberta a Ladeira da Montanha, vista como uma “audaciosa obra de engenharia” a ligar os dois níveis de terreno que constituíam a cidade.

As crônicas históricas apontam o enfraquecimento da lavoura canavieira em virtude do decreto da abolição da escravatura, o empobrecimento também dos criadores de animais e as longas estiagens como fatores que provocaram a falta de recursos até então destinados ao desenvolvimento material da capital baiana, tendo ela entrado no século XX praticamente com o surto de progresso estagnado. É de se ver, no entanto que, acompanhando o que então se processava no Rio de Janeiro e no Recife, então as cidades que abrigavam as principais zonas portuárias do país, igualmente em Salvador as primeiras décadas do novo século foram marcadas por obras no porto que ampliaram a área da cidade com os sucessivos aterros necessários para a construção do ancoradouro, obras essas que tiveram início em novembro de 1906 e se prolongaram até maio de 1913. Como ocorreu naqueles dois centros, tais obras motivaram uma era de bota-abaixo em Salvador, algo tão marcante no período da belle époque no Brasil, durante o qual nacos consideráveis do traçado colonial e imperial e significativas construções históricas desapareceram do cenário urbano. Antes que as máquinas terminassem os seus serviços na área portuária soteropolitana, grandes trabalhos realizados de 1912 a 1914 promoveram a abertura da Av. Sete de Setembro, desde o Largo do Teatro  (atual Praça Castro Alves, seguindo pelo caminho da Vila Velha, até o Farol da Barra, entre outros proclamados melhoramentos e modernização do centro da cidade, conforme apregoava o ideário nacional, o que levou à destruição, entre outros, das igrejas da Ajuda, a de São Pedro e a do Rosário de João Pereira. E de roldão as demolições prediais havidas nesse período acabou de forma compulsória expulsando para áreas bastante afastadas do centro urbano, muita gente que não podia bancar mais a alta dos preços dos aluguéis, porque, conforme bem observou Mário Augusto da Silva Santos, um traço “marcante dessa modernização foi sua ação predatória, no sentido de demolir muitas unidades habitacionais, sem a devida reposição”, (14) com o agravante de que os distritos centrais eram os espaços mais densamente povoados. E será o avanço em direção aos arrabaldes (Barra, Graça, Itapagipe, Mares, Brotas, Liberdade, São Caetano, Pituba e Itapoã) que fundamentalmente marcará o crescimento da cidade até pelo menos a década de 1950. De acordo com as informações da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, no decênio 1940-1950, “o mais rápido crescimento populacional ocorreu no quadro suburbano, que cresceu em cerca de 72%, enquanto o urbano aumentou apenas em 40%”. (15)





Ocupação já!




Plano Inclinado Gonçalves




Tenho em mãos três publicações que são verdadeiros achados para os estudiosos da história do desenvolvimento urbano de Salvador e das transformações pelas quais essa cidade passou. A primeira delas trata-se de um álbum apropriadamente intitulado Bahia de ontem e de hoje, lançado em 1953, durante a gestão do prefeito Osvaldo Veloso Gordilho, pela Diretoria do Arquivo, Divulgação e Estatística da Prefeitura do Salvador. É o dito álbum um pequeno e breve primor no que diz respeito à ideia de sua concepção, que é simples e direta: com breves legendas, nos são revelados alguns cenários da cidade registrados em diferentes épocas que, postos lado a lado, nos fazem ver as mudanças que ocorreram até aquele momento. Já no texto de apresentação, Altamirando Requião, então membro da Academia de Letras da Bahia, nos oferta uma narrativa que é um misto de lamento pelas transformações e espanto com o que foi posto no lugar:

Esta metrópole de quatrocentos e alguns anos envelheceu, remoçando-se... A pouco e pouco, foi perdendo os traços vivos de sua ancianidade e as tintas fortes de sua feição colonial, nas demolições e nas remodelações, que fizeram da Praça da Parada a majestosa Praça Municipal; que transformaram as gargantas circumvizinhas da Catedral e do Palácio do Arcebispo, na arejada e formosa Praça da Sé; que substituiram a centenária Rua dos Mercadores na opulenta Rua Chile; que contrastearam a “Casa dos Sete Candieiros”  com o arranha-céo (do Ipase), ora em conclusão estonteante [...]

Foi-se a igrejinha branca dos Nobregas e dos Aspilcuetas, e surgiu a Capela leviana de Júlio Brandão. Foi-se a pesada Matriz do Largo de S. Pedro e ficou, adeante, na Piedade, a silhueta esguia levantada pelo arquiteto Rossi Batista. Foi-se a vetusta Casa da Câmara, do vetusto Ginga da Cadeia, e sobreviveu o Palácio renascentista da Prefeitura. desapareceu a Casa do Governo, levantada pelo 1º e reconstruída, em pedra e cal, pelo 3º Governador, e lá se ostenta, em seu lugar, o Palácio Rio Branco. Foram-se a Relação e a Casa da Moeda, e brotaram do solo, como se por milagres de uma vegetação portentosa, circundante, os Edificios Lacerda e da Imprensa Oficial.

Bahia, que ainda és a da Cruz do Pascoal e a do Cruzeiro do São Francisco; que ainda permaneces a das Portas do Carmo e a dos Quinze Mistérios; que ainda relutas, contra os alviões do progresso, nas fortalezas conservadoras de tua Quitandinha do Capim e da tua Rua dos Marchantes; até quando, impávida, resistirás, ainda para que não te convertam numa grande Cidade Maravilhosa, igual às outras maravilhosas cidades do Brasil?. (16)

E folheando o álbum vemos o quanto que “os alviões do progresso” redesenharam e/ou deformaram vários recantos da cidade, como a Praça Castro Alves – era o antigo Largo do Teatro por causa do Teatro São João, que foi consumido pelo fogo em 1918 -, o Palácio Rio Branco, a Ladeira de São Bento, a Praça 13 de Maio e a já mencionada Rua Chile, que já se chamou Rua Direita do Palácio.







Ainda durante a gestão do prefeito Osvaldo Veloso Gordilho veio a lume o Roteiro turístico da cidade do Salvador, recheado com fotos, desenhos e mapas. No texto em que assinou, datado de fevereiro de 1952, o burgomestre Gordilho destacou que Salvador não parara no tempo, como Olinda e Ouro Preto; e que ela “Possúe todas as características de uma metrópole, civilizada e próspera, com um porto movimentado e um grande comércio”. (17)  Mais adiante – e antes de o leitor ser apresentado a inúmeras descrições de monumentos, lugares, festas, desenhos de Lygia, fotografias, mapas, horários de partida de bondes e toda sorte de informações úteis aos que buscavam a cidade naqueles dias, lemos essa quase nota explicativa saída da pena de Albano Frederico Marinho de Oliveira que para mim continua soando como uma verdade dos dias de agora:

Bahia, terra única. Dentro da grandeza do presente, com seus arranha-céus , seus jardins, o passado está bem vivo, nas cousas que ainda restam [grifo meu]: solares, igrejas, fortes, “bahianas”, efós, acarajés e tantas outras tradições. (18)

A terceira publicação que merece ser apreciada é esta coisa primorosa intitulada Lembranças do Brasil: as capitais brasileiras nos cartões-postais e álbuns de lembranças, organizada por João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo. Nela nos deparamos com vários flagrantes da capital baiana registrados principalmente nas três primeiras décadas do século XX, como um que os autores acreditam que remonte a 1905, no qual aparece a área vizinha ao antigo prédio da alfândega – o prédio depois seria convertido no atual Mercado Modelo – que, tempos depois, seria aterrada. São igualmente impressionantes os postais que revelam trechos da antiga e extensa Av. Sete de Setembro que permanece sendo uma das mais importantes artérias da cidade. 





Não serão pequenos os esforços dos administradores da capital baiana para, ao longo de praticamente todo o século XX, promover a expansão do tecido urbano; e, nesse movimento, a cidade antiga foi sendo também ela descaracterizada e ocupada por construções outras que emulavam as da cidade nova.

Se era verdade, como escreveu Gabriel Soares de Souza no seu Tratado descritivo do Brasil em 1587 que, quando chovia, os céus da Bahia exibiam “formosas mostras de nuvens de mil cores e grande resplendor”, (19) foram negras as que pairaram sobre o firmamento soteropolitano num largo período do século passado, tempo esse em que as picaretas ditavam o compasso pondo abaixo inúmeras edificações para que, entre 1938 e 1942, durante a administração do prefeito Durval Neves da Rocha, fosse aberta a Praça da Sé.

O sociólogo Gilberto Freyre que em 1926 escreveu um poema intitulado “Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados”, que tem um trecho em que ele diz que ali as casas aparecem “trepadas umas por cima das outras”, como “gente se espremendo pra sair num retrato de revista ou jornal” (20) , publicou no periódico A Manhã, do Rio de Janeiro, no dia 29 de janeiro de 1944, um artigo sob o título “Agradecimento aos baianos” no qual disse considerar a Bahia “a cidade mais verdadeiramente cidade do Brasil”. (21). E por falar em poemas, o alagoano Jorge de Lima escreveu outra coisa bem gostosa de ler tomando a cidade de Salvador como tema e publicou-a em 1927. Em “Bahia de todos os santos” – e não é tarde para dizer que durante muito tempo quem dizia Bahia, dizia Salvador – o bom do Jorge disse assim:

És tão cheia de altos e baixos,
Bahia, gostosa dos dendês, jilós acaçás e pimentas-de-cheiro.
Lamento o mau gosto dos teus turistas
que te conhecem de oitiva,
e não vão além de tua Rua Chile, asfaltada, de tuas avenidas
que o Seabra alargou. (22)

O Seabra em questão é o mesmo José Joaquim Seabra que lá pelas tantas, naquele poema de Gilberto Freyre, é mencionado nestes termos, depois que a Rua Chile é citada: “viva J. J. Seabra/ morra J. J. Seabra”. (23) E essa, digamos, indignação de Freyre se deve, creio eu, pelo fato de que foi durante as administrações de J. J. Seabra no governo da Bahia (1912-1916/1920-1924) e na do seu aliado Antonio Muniz (1916-1920), que Salvador perdeu uma parte significativa do seu patrimônio edificado. Em virtude de disputas políticas pelo governo estadual - chegou-se a querer transferir a capital para Jequié com o fito de postergar as eleições -, em janeiro de 1912 parte da cidade foi bombardeada. O bombardeio destruiu o Palácio do Governo e atingiu o Teatro São João e sobrados da Rua Chile; e provocou um incêndio que consumiu a Biblioteca Pública, causando a perda de livros e documentos raros porque era nela que também funcionava o Arquivo Público da Bahia. Os desdobramentos desse janeiro tenebroso resultaram na chegada de Seabra à chefia do executivo estadual. O seabrismo é um dos capítulos mais negros da memória urbana da capital baiana. Durante as administrações de J. J. Seabra foi aberta a Av. Sete de Setembro e promovidas, claro, várias demolições que levaram de roldão, entre inúmeras outras edificações, a Igreja de São Pedro e a de Nossa Senhora da Ajuda.






Foi ainda durante a efervescente década de 1940 – é de 1943 o icônico Edifício Oceania – que aportou em Salvador e por ela se apaixonou completamente – como, aliás, ocorreu com, entre outros forasteiros, o argentino Hector Julio Paride Bernabó, conhecido como Carybé – o francês Pierre Verger, que nos legou uma quantidade enorme de fotografias retratando a cidade – uma pequena mostra de sua produção dos anos de 1946, 1947 e 1949 foi reunida em forma de vinte cartões-postais e lançada como estreia da Coleção Ponto de Vista pela Corrupio Edições, de Salvador, em 1992. Verger, que amava a Bahia fervorosamente, retratou não só o espaço físico baiano, mas também os tipos humanos, as festas, as comidas e tudo o mais que enchia os seus olhos de estrangeiro faminto de tantas coisas.

Um exame bem acurado da realidade socioeconômica de Salvador durante o período que vai da década de 1930 até meados de 1970 pode ser verificado no conjunto de artigos que constituíram a obra Bahia de todos os pobres, lançada em 1980, cujos estudos buscaram situar a capital baiana e sua Região Metropolitana dentro de um quadro de transformações que flagraram uma época de baixa na economia agrícola e a industrialização que será impulsionada pela criação da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e, principalmente, da Petrobras. Os autores da coletânea de artigos deixam ver, em seus enfoques, a cidade de Salvador para além dos cenários turísticos das praias, dos berimbaus e orixás, revelando que a riqueza que foi chegando produziu também pobreza, como a favela Nova Brasília que, em dado momento da narrativa nos é apresentada assim: “Em Nova Brasília, até agora existe apenas um serviço precário de fornecimento de luz, que passou a existir depois que alguns moradores começaram a puxar a força da rua diretamente [...] A água é obtida através de cisternas que recolhem água da chuva”. (24) Faltou a esse conjunto de ensaios pelo menos um estudo que nos pusesse em contato com outros grupos marginalizados da capital, como as prostitutas que trabalhavam em pontos como o Bar Flor de São Miguel, que o xilogravurista alemão Karl Heinz Hansen – ele depois adotaria o nome artístico Hansen Bahia – conheceu em meados da década de 1950 – existiam dezenas de prostíbulos no centro antigo de Salvador nos anos 50 e 60 do século passado – e do qual evocou esta lembrança:

Maria Helena canta: “Bahia, terra da felicidade”. Maria Helena tem quinze anos e já abortou duas vezes, e Maria Helena, como todas as crianças de sua idade, brinca com bonecas. “Quando era pequena”, conta ela, “não tinha bonecas, a mãe também fazia vida. Mas, agora, que possuo dinheiro meu, comprarei minha boneca”. (25)

Hora de aprender, aprender: professora Lúcia Góes sabe das coisas. Obrigado pelos ensinamentos, minha querida!



Eu e a professora Lúcia Góes em cliques feitos por Beth Fernandes




Amigas de todas as horas: Lúcia Góes,  Beth Fernandes e Eliana Pedroso

No rastro dessa economia emergente, a cidade de Salvador e as do seu entorno verão crescerem não somente seus contingentes populacionais bem como a expansão das favelas em contraste com os prédios de alto padrão que ditarão uma norma de ocupação, principalmente, das zonas próximas às praias e ao centro histórico, nas derradeiras décadas do século XX, realidade essa que se manterá firme e determinante já no novo milênio, confirmando um diagnóstico feito pelo escritor Jorge Amado ainda na década de 1970, quando ele relatou no volume da Coleção Mercator dedicado à Bahia, que, em Salvador, “Ao lado dos arranha-céus, dos edifícios moderníssimos, da arquitetura audaciosa e rica, se levanta o mundo dos Alagados, audaciosa e mísera arquitetura, cidade de palafita sobre a lama, o mangue e o mar, onde a pobresa (sic) é infinita a resistência do homem, sua capacidade de viver”. (26) 


III


Assim como acontece com as obras literárias muito famosas e comentadas, de algumas cidades, como Salvador, ficamos sabendo e/ou conhecendo detalhes – ao menos os detalhes que interessam ao setor turístico divulgar – sem nunca termos nelas pisado. De modo que, quando eu dei por mim em plena capital baiana pela primeira vez, em outubro de 2013 – eu voltaria a revê-la em pedra, praia, casario e quitutes em dezembro de 2017 -, eu já estava, digamos, bastante familiarizado com vários aspectos de sua singular beleza e, ainda assim, quando me vi ali na Cidade Baixa e na Cidade Alta e nas águas da Baía de Todos os Santos mirando todo aquele cenário, eu percebi que tinha chegado o tempo da alegria aos meus olhos e ao meu pensamento.

Não consegui conter o espanto ao me deparar na parte de ocupação mais remota daquele centro urbano com prédios muito degradados, de modo que a alegria que me tomara quando lá cheguei, principiou a dar lugar a uma tristeza em conta-gotas e a uma preocupação renitente com o futuro daquelas construções. Difícil acreditar que, àquela altura do campeonato, parte do patrimônio edificado da mais antiga cidade brasileira e da primeira capital do país estivesse naquele estado de deterioração. “Como pode ser isso?”, eu me perguntava. “Será que os órgãos de proteção e salvaguarda do patrimônio não estão sabendo disso?”, ingenuamente eu me dizia. E a cada logradouro percorrido e a cada recanto atravessado eu fui me certificando de que, para além das bonitas imagens que eu vira com frequência na televisão e mesmo nos cenários registrados em cartões-postais, aqui e ali uma parede expunha suas fraturas, aqui e ali escoras faziam o possível para segurar fachadas inteiras de velhos sobrados. Era nítido e cristalino que, no emaranhado das ruas do sítio histórico, e até no colorido e muito procurado Pelourinho, que é vendido ao mundo como um resumo de toda a cidade, Salvador necessitava urgentemente de alguém e/ou algo que a salvasse.





Fiz, em princípio, um roteiro típico de turista, percorrendo os espaços do Pelourinho subindo pelo Elevador Lacerda, vi o Mercado Modelo, o Forte de Santo Antônio. Provei da boa comida baiana. Adentrei em igrejas e museus. Naveguei nas águas da baía mirando a cidade de longe, vendo com que força e vigor construções novas tomaram espaços da antiga urbe. Mas os meus olhos não são olhos de turista que só se contentam e se dão por satisfeitos ao contemplar coisas belas. Meus olhos querem o além disso – e até o que disfarçadamente se busca esconder.

Fui me afastando do sítio histórico percorrendo ruas e ladeiras de dia e de noite, olhando em derredor impressionado com a existência de tantos edifícios de alto padrão erguidos em encostas contrastando com cenários favelizados por construções desordenadamente ocupando morros.

Tomei o rumo da Igreja Basílica de Nosso Senhor do Bonfim. Era uma sexta-feira, “O dia maior”, me disse uma senhorinha que ia chegando, Dona Marina do Rosário. Muita gente muita se juntando para entrar no templo e receber a bênção do Padre João de Deus, como fez Ernani Neves, meu companheiro naquela viagem. O gradil da igreja estava quase todo ele revestido com as famosas fitinhas do Senhor do Bonfim, o Oxalá, o maior dos orixás do candomblé na dupla pertença das religiões de matriz africana: amarre uma fita no pulso e faça um pedido. No adro, de onde se tem uma visão ampla dos morros da cidade, pais de santo e baianas, também ricamente trajadas e empunhando ervas, abordam os passantes querendo ganhar algum trocado oferecendo benzeduras – ouvi dizer que o padre ordenou que eles não tomassem as escadas da basílica para também ali não importunarem os visitantes. Daquele templo, daquele culto e daquele recanto acolhedor de Salvador, Afranio Peixoto assim escreveu em seu Breviário da Bahia: “Não sei me decidir: eu que, infelizmente, não tenho fé, mas que, felizmente, adoro o Senhor do Bonfim”. (27) 







Na manhã de um domingo o meu destino foi o Dique do Tororó, onde imponentes e senhores do lugar, os orixás “flutuam” na água. Tudo arrumadinho no entorno do dique: crianças brincando, pedalinhos, pesca, reunião de famílias. Ali defronte o Estádio da Fonte Nova preparado para receber jogos da Copa do Mundo de Futebol de 2014. Quantos milhões não foram gastos ali, hein?! De um lado o estádio novo de muitos cifrões, do outro lado, construções desordenadas preenchendo um morro, ambos retratos de uma cidade desigual.

Tanta coisa que eu vi em Salvador naquele outubro de 2013 – o que não pude ver por dentro foi o Forte de São Marcelo, que estava fechado para visitação -: a estação ferroviária; casarões deteriorados no Largo do Bonfim; a Igreja de São Joaquim que, segundo me informou o porteiro, que disse que não gostava de dizer o seu nome, abrigava o colégio militar desde o ano anterior; a Praça Visconde do Cayru; o prédio modernoso da Prefeitura fazendo feia figura no conjunto arquitetônico de outro tempo; a Praça da Sé onde uma Subway exibia sua logomarca encobrindo parte da fachada de um sobrado; o casario antigo vivo, ocupado por lojas, restaurantes e casas lotéricas; obras de calçamento na Rua das Portas do Carmo e reordenamento no entorno do Forte de Santo Antônio; roda de capoeira na Praça da Sé; prédio abandonado na esquina da Av. Sete de Setembro com o Largo de São Bento; a serena Lagoa do Abaeté; o magnífico Gabinete Português de Leitura; a belíssima fachada da igreja da Ordem Terceira de São Francisco... Poxa, como eu andei!

Entrei no sebo Porto dos Livros na tardinha de um sábado. E me demorei um bocado ali garimpando livros e discos e trocando figurinhas com sua proprietária Cristina Fonseca que, na ocasião, estava em companhia de sua amiga Luana Monteiro. Coisa boa tê-las conhecido. E para ser preciso, o Porto dos Livros é mais do que um sebo, é um espaço de agito cultural.

Da janela do quarto do hotel, em Amaralina, eu mirava o mar pensando em cada pequena coisa com que me ocupara naquela viagem e me dizendo que era só uma questão de tempo para que eu voltasse a pisar naquele chão.







Desde que eu regressei da viagem feita em 2013, me mantive com a ideia fixa de voltar para lá. Não me perguntem por que, afinal, tantas coisas na vida não têm explicação, não é mesmo? Mas eu vou me arriscar a dar um esclarecimento. Fui à capital baiana pela primeira vez carregando na bagagem um punhado de referências lítero-musicais alinhavadas pelo meu ofício de pesquisador. E quando eu vivenciei a cidade por alguns dias, arregalando os olhos tanto para os seus encantos como para os seus desencantos, para as suas coisas belas como para as suas coisas sujas e feias, me vi tomado por um sentimento de pertencimento àquela terra que eu jamais poderia imaginar que sentiria. “Por que isso?”, eu ainda hoje me pergunto. Talvez a condição talássica da cidade seja a responsável por essa atração. Talvez o passado detido em seu presente também. Talvez as gentes que vi por lá tenham me deixado preso às suas peculiaridades. De modo que uns versos da canção “Na Baixa do Sapateiro”, do Ary Barroso – justamente os que dizem assim: “Ô Bahia, Bahia que não me sai do pensamento” – ficaram ecoando em meus ouvidos como que me dizendo que eu precisava e deveria voltar para lá. E assim foi que, quatro anos depois da primeira incursão, eu voltei à capital baiana - desta vez sozinho - sequioso de rever paisagens e sobretudo de percorrer outros caminhos.

Cheguei a Salvador no comecinho da tarde do dia 8 de dezembro, em pleno feriado dedicado à Nossa Senhora da Conceição. Havia uma agitação tremenda na Cidade Baixa porque na Bahia vigora uma propensão para tudo carnavalizar, inclusive o lado profano das festas religiosas.


 


Almocei um pouco afastado da muvuca. Em seguida, entrei no Elevador Lacerda – nesse dia não estavam cobrando os R$ 0,15 do acesso – querendo encontrar hospedagem no Pelourinho, o que não demorou a acontecer: em pleno Largo da Sé eu consegui um quarto individual no Hostel Pelourinho. Sem perda de tempo eu acomodei os meus troços no quarto e voltei para a rua a fim de começar a me esbaldar na cidade no primeiro dos três dias que eu passaria ali.

Retornei à Cidade Baixa sem acessar o elevador. A caminho da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, onde ainda ocorriam missas pelo dia festivo, observei que várias das ruínas que eu vira em 2013 permaneciam por ali enfeiando o cartão-postal. Ao lado esquerdo dessa igreja uma obra de restauração estava em andamento com o fito de recuperar os dois edifícios bastante deteriorados que se encontravam em vias de desaparecer da paisagem soteropolitana. Pertinho dali, nos arredores do muito procurado Mercado Modelo, como a Rua Portugal, prédios em ruínas – não por acaso ladeados por estacionamentos para automóveis, porque poucas coisas são tão lucrativas neste nosso tempo do que esses empreendimentos – marcavam horrivelmente o cenário e davam um tom melancólico ao meu passeio.



Nessa minha segunda viagem a Salvador eu me permiti experienciar alguns passeios que não fizera anos antes. Eu percorri a pé, por exemplo, de uma ponta a outra, a Av. Sete de Setembro, a Av. José Joaquim Seabra e todo o trajeto do Pelourinho até a feira livre de São Joaquim, o que me possibilitou dar de cara não só com outras ruínas e flagrantes outros de deterioração e deformação da estrutura predial e paisagística da cidade antiga, mas também certos encantos que os meus olhos não encontraram anos atrás, como os planos inclinados – eu até embarquei no Plano Inclinado Gonçalves. Não encontrei o Porto dos Livros aberto. No mesmo dia em que eu busquei esse sebo, eu prestigiei a feira de antiguidades e artes montada na Praça 2 de Julho, no bairro do Campo Grande; também vi que o entorno da Igreja e Mosteiro de São Bento permanece degradado, com construções abandonadas; e ainda sacolejei o esqueleto no evento Coro na Rua, na Rua do Couro, que reuniu uma galera animadíssima.

Tomei parte em algumas das atividades apresentadas pelo projeto Pelourinho Dia e Noite, promovido pela Prefeitura Municipal de Salvador com o intuito de fazer a população em geral e não apenas os turistas vivenciar com mais intensidade a área do Pelourinho, com toda a riqueza histórica, artística e cultural que ele encerra: vi o desfile da Banda Didá; acompanhei eufórico o musical de rua Circuito Jorge Amado, uma experiência, poxa, incrível; e assisti à palestra “Afrodescendência: religião e poder” ministrada pela bonita, bem articulada e muito simpática professora Lúcia Góes numa tenda montada no Terreiro de Jesus como parte da Maratona Clic, um concurso-relâmpago de fotografias por celular para jovens de 14 a 24 anos de idade que, após as palestras, têm o desafio de, em uma hora, divididos em grupos, fazer um registro fotográfico sobre um dado tema.



















Abordei a professora Lúcia Góes parabenizando-a pela palestra e por apoiar a iniciativa do projeto. Ela me apresentou à Eliana Pedroso, diretora de Gestão do Centro Histórico, que na noite do dia anterior, ao término da apresentação do musical de rua, no restaurante Cantina da Lua, fez um breve discurso convocando as pessoas a não deixarem de aproveitar as atividades do projeto destacando: “O Pelourinho é seguro, é iluminado e tem estacionamento”. Lúcia e Eliana eram um entusiasmo só.

Entre a Salvador antiga e a Salvador dos prédios e empreendimentos luxuosos – o Fasano está finalizando as obras do hotel que abrirá com vistas para a Praça Castro Alves num prédio da década de 1930 onde funcionou o jornal A Tarde – a pobreza continua sendo vista na quantidade enorme dos moradores de rua que estão espalhados por vários espaços da cidade, como na Praça da Piedade.












Nos dias que passei em Salvador em dezembro passado, o assunto do momento, com direito a capas de jornais e reportagens na TV, era o caso envolvendo Mãe Stela de Oxóssi e a sua companheira Graziela Domini que, para alguns era a responsável pelo fato de a ialorixá ter abandonado o Terreiro Ilê Opô Afonxá.

No final da tarde do sábado 9 de dezembro o céu ficou cinzentamente escuro no Pelourinho. Parecia que era um tufão que estava se formando ali. Alguém falou até em Armagedon. E não eram poucas as pessoas que filmavam o fenômeno climático com celulares. E choveu sobre a capital baiana, dispersando a multidão que enchia aquelas ruas seculares.

Noite fria aquela. E no dia seguinte pela primeira vez eu vi Salvador amanhecer sem a luz máscula do sol a intensificar seu colorido. Manhã cinzenta. E a Baía de Todos os Santos como que em dia de luto, monocromática. Da varanda do hostel vi uma “baiana” – pelo menos pela fantasia ela era baiana – feliz da vida recebendo dinheiro de um grupo de turistas idosos e estrangeiros que pareciam ser alemães, pela fala que ouvi do guia diante da estátua do bispo Dom Pedro Fernandes Sardinha.

Quando, na segunda-feira, pela manhã, eu comecei a deixar Salvador rumando para outras paragens de uma longa viagem, senti que parte da cidade iria continuar dentro de mim sempre me dizendo que eu poderia voltar a qualquer tempo para rever a outra, que ficara por lá. É que algumas cidades que conhecemos ficam todo tempo a nos chamar para que a elas voltemos. E é exatamente isso que Salvador faz comigo.

Ah, mestre Dorival Caymmi, eu não tenho razão nenhuma para negar isso: eu já estou morrendo de saudade da Bahia.                                       
                                                                                                    


Notas:



1-   Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Vol. XXI, p. 185.

2-   Id. Ibid. p. 186.

3-   Gaspar Barleaus. História dos feitos recentemente praticados, p. 79.

4-   Nestor Goulart Reis. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial, p. 43.

5-  Luiz dos Santos Vilhena. Recopilação de noticias soteropolitanas e brasilicas. Livro I.   
       Carta primeira, p. 34-35.

6-  Johann Moritz Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil, p. 75.

7-  Maria Grahan. Diário de uma viagem ao Brasil. Citações por ordem de aparição: p. 164, 165, 165, 168 e 170.

8- George Gardner. Viagem ao interior do Brasil, principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841, p. 47.

9- Daniel Parish Kidder. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil: compreendendo notícias históricas e geográficas do Império e das diversas províncias, p. 23.

10-  Id. Ibid. p. 25.

11-  Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Vol. XXI, p. 208 e 209.

12- Robert Avé-Lallemant. Viagens pelas províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe: 1859, p. 22.

13-  Dom Pedro II. Viagens pelo Brasil: Bahia, Sergipe, Alagoas, 1859/1860, p. 53.

14-  Mario Augusto da Silva Santos. “Habitação em Salvador: fatos e mitos”. In Stella Bresciani (org.). Imagens da cidade – séculos XIX e XX, p. 103.

15-  Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Vol. XXI, p. 223-224.

16-  Altamirando Requião. “Bahia de ontem e de hoje” (apresentação). In Bahia de ontem e de hoje, p. 1, 2 e 3.

17-  Oswaldo Veloso Gordilho. In Roteiro turístico da cidade do Salvador, p. 10.

18-  Albano Frederico Marinho de Oliveira. In Roteiro turístico da cidade do Salvador, p. 10.

19-  Gabriel Soares de Souza. Tratado descritivo do Brasil em 1587, p. 133.

20- Gilberto Freyre. “Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados”. In Bahia e baianos, p. 15.

21-  Gilberto Freyre. “Agradecimento aos baianos”. In Bahia e baianos, p. 133.

22-  Jorge de Lima. “Bahia de todos os santos”. In Poesia completa. Vol. I, p. 79.

23-  Gilberto Freyre. “Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados”. Op. cit. p. 18.

24-  Angela Ramalho Viana. “Estratégias de sobrevivência num bairro pobre de Salvador”. In Guaraci Adeodato Alves de Souza e Vilmar Faria (orgs.). Bahia de todos os pobres, p. 189. A autora nos informa que o seu trabalho de campo foi realizado no período de julho e agosto de 1976.

25-  Hansen Bahia. Flor de São Miguel. p.. 18.

26-  Jorge Amado. Bahia colorida, p. 10.

27-  Afranio Peixoto. “Senhor do Bonfim”. In Breviário da Bahia, p. 129.



Fontes e referências bibliográficas:


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Um comentário:

  1. O descaso em face ao patrimônio histórico, parece ser de caráter geral, haja visto, que em são luis do Maranhão, casarões que deveriam estarem sendo restaurados pelo IPHAN, continuam em pleno abandono, caindo aos pedaços. Recentemente, MP Federal entrou com uma ação civil publica, para impedir e punir estado e seus responsáveis por estarem utilizando este casarões como estacionamentos privados. é um descaso a historia de cada cidade e do Brasil.

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