24 de março de 2018

Solidariedade seletiva e destilação de ódio nas redes (anti) sociais em tempos de feminicídio exacerbado


Por Clênio Sierra de Alcântara


              Protestar é preciso: o crime de feminicídio é a confirmação de uma lógica               de dominação perversa e cruel que vitima centenas de mulheres todos os dias por esse mundo afora 



Fortaleza, 3 de março de 2018. Apontadas como integrantes de uma das facções criminosas que estão tocando o terror na capital cearense e adjacências, três mulheres foram sequestradas, torturadas e decapitadas – isso mesmo, de-ca-pi-ta-das – e tiveram seus corpos jogados num rio. Seus nomes: Darcyelle Ancelmo (31 anos), Ingrid Texeira (22 anos) e Nara Aline ( 23 anos).

Rio de Janeiro, 14 de março de 2018. Homens armados – presume-se que tenham sido homens – seguiram o carro onde se encontrava a vereadora Marielle Franco (PSOL) e efetuaram vários disparos que acabaram tirando a vida não apenas dela como também a do motorista Anderson Gomes, que a acompanhava.

Os crimes de assassinato brutal resumidamente narrados acima são mais dois entre as centenas e os milhares que diariamente pontuam a crônica policial brasileira – neste momento em que escrevo, as estatísticas informam que somente em janeiro e fevereiro deste ano, o estado de Pernambuco contabilizou quase novecentos assassinatos de homens e mulheres – e que revelam quão mergulhados na barbárie estamos todos nós. Ocorreu que, sabe-se lá por que razão, o assassinato da vereadora Marielle Franco causou uma comoção de tamanha magnitude que atravessou as fronteiras do país: por dias seguidos a imprensa abordou e repisou o caso havido no Rio de Janeiro, enquanto que o triplo e bárbaro homicídio ocorrido no Ceará quase que não figurou no noticiário; autoridades se pronunciaram dizendo-se empenhadas em prender o ou os assassinos da vereadora, parecendo até que, prendê-los, significasse a redenção de um combalido serviço de segurança pública; milhares de pessoas saíram em passeata protestando contra o crime que vitimou a parlamentar, mas não se viu – eu pelo menos não vi – sequer um cartaz clamando por justiça com relação às três mulheres degoladas.

Por que pensar que certas vidas têm mais valor que outras? A violência, em geral, e os casos de feminicídio, em particular, não são questões que devem ser atacadas de maneira ampla e irrestrita sem que se olhe se o indivíduo mora numa viela da Rocinha ou num casarão do Morumbi? Por que tomar somente Marielle Franco como símbolo de uma insatisfação generalizada com a precariedade da segurança pública deste país? Por que ela era negra? Por que era lésbica? Por que denunciava abusos cometidos por policiais militares? Por que tinha nível superior? Por que foi assassinada no Rio de Janeiro que é alvo de uma intervenção federal justamente na segurança pública? Ou foi por tudo isso junto?

Quem vem acompanhando o caso, o terrível caso do assassinato da vereadora Marielle Franco, certamente se deparou com a ferocidade de pessoas que, em contraponto à rede de solidariedade que se formou em apoio às investigações e em repúdio ao crime, se puseram a fazer de Marielle uma espécie de Geni, da música de Chico Buarque, desqualificando-a e justificando, ou melhor, querendo justificar a sua morte, como fez o deputado federal Alberto Fraga (DEM), que reproduziu um texto em que Marielle era associada ao Comando Vermelho. E, em meio a isso, viu-se claramente o quanto que mulheres podem ser tão perversas e cruéis para com as suas iguais, repetindo a sanha, a vileza, a brutalidade, a covardia e a crueldade que os homens destinam a todas elas. Que o diga a desembargadora Marilia Castro Neves, uma alta autoridade que já tem no currículo comentários odiosos contra uma esforçada e vitoriosa professora chamada Débora Seabra, de Natal (RN), portadora de Síndrome de Down, e que, com relação à Marielle, escreveu em uma rede (anti) social que a vereadora “estava engajada com bandidos!”. Pelo histórico da senhora Marilia Castro Neves tudo leva a crer que ela age inteiramente segura de que não sofrerá punições pelo que vem publicando por aí. Alguém por acaso sabe qual foi a punição que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) destinou àquela juíza Clarice Maria de Andrade que, em 2007, autorizou o recolhimento de uma garota de 15 anos de idade numa cela coletiva masculina no Pará, onde a adolescente foi continuamente torturada e violentada? Dada a severidade das penalidades aplicadas pelo CNJ, que corriqueiramente aposenta juízes flagrados em atos de corrupção, chego a pensar que a tal desembargadora Marilia Castro Neves será punida com cinco dias de estada em Fernando de Noronha com todas as despesas pagas por nós contribuintes. No tempo de minha avó costumava-se ironicamente dizer que, querendo alguém aparecer, bastava que pintasse a bunda de branco e saísse para a rua. Hoje em dia, quem quer aparecer, causar, lacrar, enfim, basta postar coisinhas estúpidas, preconceituosas e falsas nas redes (anti) sociais da internet.

O livro do feminicídio que está sendo escrito no Brasil tem páginas repletas das mais absurdas atrocidades, como a da degola das três mulheres ocorrida no Ceará; e expõe com riquezas de detalhes quão imperiosa e massacrante é para as mulheres viver/conviver sob a lógica da dominação masculina. A mulher é humilhada, violentada, abusada e assassinada independentemente de sua cor, origem e classe social, porque, assim como “miséria é miséria em qualquer canto”, mulheres são sempre vistas como seres inferiores em um mundo machista e falocêntrico, não importa quão escolarizadas elas sejam, qual comportamento social mantenham e nem que beleza exibam. E a objetificação da mulher nos discursos da lógica da dominação é por si mesmo o fundamento maior de todos esses acontecimentos terríveis que as vitimam por esse mundo afora. Objetifica-se sempre as mulheres para que elas se apequenem e se acovardem um pouco mais a cada dia e interiorizem essa, por assim dizer, “verdade” imposta pela lógica da dominação masculina.

Olhando bem, é perfeitamente compreensível que Marielle Franco seja tomada como símbolo de um descontentamento e principalmente de uma luta com vistas ao rompimento de certos grilhões que insistem em querer manter as mulheres “na linha”, como deseja a maioria absoluta dos homens, porque ela tinha voz ativa em defesa de suas iguais. O que não pode ser aceitável é a postura de um feminismo que, por exemplo, prega algo do tipo “meu corpo, minhas regras”, mas que, por outro lado, condena uma mulher por certas liberalidades e posturas sexuais que ela porventura assuma, tachando-a de vadia. Verdade seja dita, mulheres, em geral, em grande medida agem como algozes delas mesmas; e isso em parte talvez explique por que a lógica da dominação masculina só recrudesce.

A antropóloga Mirian Goldenberg, que há décadas pesquisa a relação do mundo masculino com o universo feminino, escreveu em um artigo recentemente publicado pela revista Veja (Mirian Goldenberg. “O inferno são as outras”. Veja, São Paulo, 7 de março de 2018, edição 2572, nº 10, p. 70-71) que num estudo que realizou envolvendo 5.000 homens e mulheres de 18 a 96 anos, observou, entre outras tantas coisas – leiam o artigo, por favor – que o que elas mais invejam neles é a liberdade e a capacidade de fazer xixi em pé. A mesma pergunta foi feita aos homens: o que mais eles invejam nelas? E eles categoricamente responderam: absolutamente nada. Eu não pertenço a esse grupo porque continuo, como já escrevi noutra ocasião, invejando a resistência que elas têm para suportar uma realidade que lhes é tão desfavorável e ameaçadora, porque os homens somos covardes, cruéis, impiedosos e brutais demais para com elas.


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