20 de abril de 2018

Personas urbanas (17)

Por Clênio Sierra de Alcântara


É, mas eu sou o amargo da língua
A mãe, o pai e o avô
O filho que ainda não veio
O início, o fim e o meio.
                                         Gita. Raul Seixas/Paulo Coelho



Autoridade de existência. Mais de uma vez o mestre de mestres Gilberto Freyre lamentou em seus estudos o fato de que, no Brasil, não fosse comum pessoas de um modo geral deixarem para a posteridade escritos em forma de memórias e menos ainda de diários. A instância mesma que cerca a individualidade de cada um é eivada de singularidades que definem modos de enxergar o mundo e, por conseguinte, de se perceber e de estar nele. Como são inúmeros os posicionamentos de cada indivíduo frente à vida, também são diversas as maneiras de encará-la e de senti-la.

Escrever sobre si próprio é para muitas pessoas algo fora de cogitação porque, em primeiro lugar, creio eu, pensa-se logo em como lidar com certos pudores e com certas verdades e/ou revelações incômodas para si mesmo e para todos aqueles que gravitam na esfera de sua intimidade, de forma a não ferir sensibilidades. Sendo assim, a escrita de si mesmo mais do que um ato de coragem – para mim, na verdade, toda escrita é um ato de coragem – é um exercício de como saber resgatar a memória e manejar por um lado a simples descrição de um fato e de outro lado descrever um entendimento a respeito desse fato, algo que na narrativa por vezes pode vir entrelaçado.

Embora eu tenha principiado o parágrafo anterior tratando especificamente de uma escrita de si mesmo, minha intenção é abordar uma esfera mais abrangente, mais ampla, porque não restrita ao ato de dizer de si apenas através do escrever, mas também da fala, do diálogo, retomando uma expressão que primeiramente eu utilizei num artigo – “Ele também se chamava Rogéria” – que postei justamente no Dia da Independência do Brasil, o que não deixava de, claro, relacioná-la com a independência e a coragem de ser o que era do travesti Rogéria. Trata-se da expressão “autoridade de existência”. Como vai dito ali, denomino “autoridade de existência” como a ação do indivíduo de se impor pelo que ele é – homossexual, deficiente físico, negro, judeu, homem, mulher, transexual, bissexual, etc. – e fazendo disso o leitmotiv de seu existir.

Creio muitíssimo que em todos e em cada um de nós exista uma urgente necessidade de aceitar-se pelo que realmente se é, sem se ver amordaçado, podado, amarrado e preso a ideologias, a teogonias, a regulamentos, a convenções sociais, a, enfim, todo e qualquer meio que busca e/ou intenciona, como se diz, cortar nossas asas, impedindo-nos de dar vazão a escolhas, a sentimentos, a desejos, ao querer e ao não querer, como se, ao nos desgarrarmos da grande manada, estivéssemos, isso sim, praticando necessariamente ações criminosas pelo simples fato de sermos e/ou estarmos fora do padrão, por ultrapassarmos a forma estabelecida, por excedermos o limite permitido, por fugirmos ao entendimento da maioria e por sermos considerados inadequados.

Foi o reverenciado escritor mineiro João Guimarães Rosa quem um dia disse que “viver é muito perigoso”. E é mesmo. Diariamente travamos embate contra os acidentes, contra os assassinos, contra as doenças e até – como acontece com tantos – contra os nossos próprios pensamentos de autodestruição. E não raro esse tipo de pensamento é originado por doses cavalares de um sentimento de inadequação que acomete o indivíduo a ponto de ele, talvez se julgando incapaz de partir par o enfrentamento daquilo que o oprime, escolher e/ou ser levado ao suicídio – às vezes tirando a vida de outros antes disso.

Não precisamos recorrer a estatísticas e afins para termos conhecimento de casos dessa natureza. Eu e você certamente convivemos com alguém que sofre dia após dia com algo que o torna infeliz; e sabemos também que, por vezes, essas pessoas sofrem por razões que avaliamos como sendo coisas tolas e banais, porque elas não nos afetam mais e nem nos metem medo, porque as vemos como algo que já foi superado, como se fossem casas de um jogo de tabuleiro que conseguimos ultrapassar de alguma forma.

É muito certo, digo, é certíssimo, corretíssimo afirmar que cada um é que sabe exatamente de si; e que só calçando o sapato é que se fica sabendo onde o calo aperta. Mas o que acontece com bastante frequência é de nos depararmos com pessoas que não têm um mínimo que seja de “autoridade de existência”; que vivem o tempo todo acreditando no que os outros vão pensar; que não têm coragem de dizer “sim” e nem “não”; que se autossabotam; e que estão sempre e sempre adiando o seu projeto de ser feliz ou, dito de outro modo, de viver em paz consigo mesmo, ainda que esse tal projeto de felicidade consista em algo tão simples como pôr um biquíni e ir à praia sozinha numa manhã de domingo.

Existem pessoas que parecem crer que durarão para todo o sempre e, por isso, ficam aguardando o que consideram ser “o melhor momento” para atravessar a ponte que liga a sua ilha interior ao resto do mundo. Por experiência própria, pelos muitos maus bocados que vivenciei ilhado enquanto eu via a vida propriamente vivida vibrar bem diante de mim, nunca, nunca mais eu hei de pensar , pelo que eu sou e sinto e pelo que eu desejo, quero e tenho vontade, que todos estão certos e que eu é que estou errado.

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