28 de abril de 2018

A cultura popular em um incomum momento de protagonismo

Por Clênio Sierra de Alcântara

Fotos: do autor   
   Discutir a valorização da cultura neste país deveria ser uma obrigação de toda a sociedade a fim de que nossas riquezas culturais não caíssem no esquecimento e nem fossem relegadas ao segundo plano no âmbito das políticas públicas




Muitas vezes exercendo ofícios outros para conseguir manter seus brinquedos sobrevivendo e de algum modo brilhando nem que seja somente para a comunidade onde eles existem, os mestres e brincantes da chamada cultura popular sabem como poucos como é difícil neste país sustentar uma arte que habitualmente não é apresentada nos grandes centros urbanos e que quase sempre fica restrita aos subúrbios e grotões, esquecida pelas mídias dominantes do mercado de entretenimento. Raramente um e outro nome desse segmento conseguem ganhar alguma projeção e então respirar sem a ajuda de aparelhos; porque o mais comum, no universo da cultura popular, é encontrar personalidades e grupos agonizantes e à míngua servindo apenas como objetos de estudos acadêmicos e como meras curiosidades folclóricas.


Lia de Itamaracá foi uma grande parceira de Dona Selma

O povo chegando ao vão do prédio onde fica o auditório...

E, claro, aproveitando o café da manhã

Integrante do Afoxé Omô-Inã



O ministro Sérgio Sá Leitão com o grupo Coco de Selma e Lia de Itamaracá



Isa Melo e Dona Glorinha aproveitando os comes e bebes




O modo precário como a cultura, em sentido macro, é tratada neste país pelo Estado é revelado, por exemplo, pelas dezenas de edificações históricas, protegidas por lei, que estão em avançado processo de desgaste e em vias de desaparecer da paisagem. E o que dizer do Museu do Ipiranga, em São Paulo, que está fechado há anos e a previsão mais otimista nos diz que ele será reaberto em 2022? E o Cine-teatro do Parque, no Recife, que “comemorou” o seu centenário, em 2015, de portas fechadas e que permanece assim até hoje? E o Centro Cultural Estrela de Lia, na Ilha de Itamaracá, que, desde 2014, não consegue efetivamente sair do papel? E a infinidade de documentos – fotografias, mapas, cartas, etc. – de instituições como a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, que a memória da nação está correndo o risco de perder para sempre por falta de verbas que possibilitem a promoção de restauro e acondicionamento adequado? Bem, infelizmente, é essa a realidade que enfrentamos; e ela por si mesma expressa a dificuldade que é tratar da manutenção da cultura em todas as suas dimensões no Brasil.

Raquel Marta dando entrevista

Duas joinhas: Dona Glorinha e Leda Alves




Foto: Marcos Paulo    Eu é que não ia perder a oportunidade de me ver
                            flagrado ao lado delas





Ontem, pela manhã, no Centro Cultural Cais do Sertão – ele próprio um equipamento cultural cujas obras vêm se arrastando há anos e que inclui um museu dedicado à cultura nordestina e à obra de Luiz Gonzaga que já chegou a ficar dias fechado, em 2016, porque teve o fornecimento de energia elétrica cortado por falta de pagamento e também porque os funcionários estavam sem receber os salários -, localizado na Av. Alfredo Lisboa, no Bairro do Recife, na capital pernambucana, ocorreu o lançamento do edital da sexta edição do Prêmio Culturas Populares, do Ministério da Cultura (MinC) que, vejam só, havia cinco anos não era lançado e foi retomado no ano passado, outra evidência de como a cultura popular é relegada para segundo plano pelas políticas públicas até mesmo pelo ministério que, em tese, deveria promovê-la incondicionalmente.






Milton Costa, irmão de Beto Hees e produtor do grupo Coco de Selma

Depois de um regionalíssimo e bom café da manhã – cuscuz, canjica, bolo, tapioca, munguzá, sucos de caju, mangaba e graviola – que foi servido no vão do prédio, todos os participantes do evento subiram até o segundo andar para ocupar os assentos do auditório. E, pouco depois das 11:00 h, a cerimônia do MinC realmente teve início.

Como a edição deste ano do Prêmio Culturas Populares homenageia a saudosa coquista Dona Selma do Coco, que atravessou as fronteiras brasileiras cantando “A rolinha” e que faleceu em maio de 2015, a cerimônia foi aberta com a apresentação do grupo Coco de Selma, do qual fazem parte netas daquela artista, e que contou com a participação luxuosa de outras três grandes representantes da cultura popular pernambucana: Lia de Itamaracá, Dona Glorinha do Coco e Aurinha do Coco. Em seguida, subiram ao palco o grupo Papanguarte, da cidade de Bezerros, que pôs o ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão para frevar, e o respeitadíssimo produtor musical Robertinho do Recife que, acompanhado pelo cordelista e rabequeiro Beto Brito, tocou o clássico “Asa branca”, composição de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.

Esta e a foto seguinte são de Marcos Paulo



Eu, o ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão e a rainha da ciranda Lia de Itamaracá

De posse do microfone o ministro Sérgio Sá Leitão, sem nenhum floreio e se atendo ao que era pertinente e necessário esclarecer, apresentou as diretrizes do edital destacando a importância da iniciativa; o aumento do valor da premiação, que passou de R$ 10.000,00 para R$ 20.000,00, para cada uma das quinhentas propostas que forem contempladas; e reconhecendo a necessidade de promoção das expressões culturais, em geral, que, segundo ele, contribuem imensamente para a elevação do Produto Interno Bruto do país, porque estão atreladas a uma cadeia enorme de produção. Com uma sinceridade pouco comum, o ministro disse que o MinC está empenhado não em promover novos projetos e, sim, em concluir obras e em pagar a quem foi contemplado há tempos em editais e vinha aguardando o dinheiro sem nenhuma perspectiva. E, como não poderia deixar de ser, ele exibiu um breve histórico da homenageada e um vídeo com depoimentos que foi gravado no Alto da Sé, em Olinda, na última terça-feira, local esse onde Dona Selma, durante certo período, ganhava a vida vendendo tapioca. Sérgio Sá Leitão destacou ainda que “Aquilo que a política tem separado, a cultura une”, sem que ninguém que estava ali presente tenha gritado “Fora Temer!” nem “Lula livre!”, o que corroborou a sua fala, que foi bastante aplaudida.



O grupo Papanguarte








Robertinho do Recife e Beto Brito

Antes que a secretária de Cultura da cidade do Recife, Leda Alves, se dirigisse ao microfone para, entre outras coisas, dizer do seu desconforto com o fato de o Carnaval recifense ter perdido a espontaneidade das folias de rua e ter se transformado em “Carnaval de palco”, o Maracatu Estrela Brilhante, de Igaraçu, pôs o batuque dos seus tambores para fazer vibrar as paredes do auditório.

E ainda teve mais: em forma de cortejo, fomos deixando aquele espaço ao som do Afoxé Omô-Inã, seguindo para o vão, onde a quadrilha junina mirim Fusão, do Morro da Conceição, zona norte do Recife, fez uma apresentação insossa e sem graça – quem quer ver quadrilha junina que não se apresenta devidamente paramentada? – encerrando o evento.







Beto Hees, produtor de Lia de Itamaracá, foi uma das pessoas que gravaram depoimento sobre Dona Selma, artista com a qual também trabalhou

Maracatu Estrela Brilhante






Robertinho do Recife, um dos grandes nomes da produção musical deste país

O Afoxé Omô-Inã





Às vezes, em conversas com mestres e brincantes da cultura popular, eu ouço deles palavras de desânimo e de desesperança com relação ao futuro de suas práticas artísticas. E não é só por causa de um pequeno cachê que, não raro, eles demoram meses para receber; e não é só pela falta de espaço e oportunidade para eles mostrarem com mais frequência os seus brinquedos. É muito mais do que isso; é, fundamentalmente, de dignidade que eles me falam, porque, convenhamos, que dignidade pode ter alguém que, às vezes, não tem necessidades sociais mínimas atendidas, como a garantia da alimentação diária e que sobrevive sem amparo algum? Que dignidade pode ter alguém que tem de ir inúmeras vezes bater na porta de uma secretaria para cobrar o que estão lhe devendo? Que dignidade, enfim, tem um artista cuja arte é “valorizada” e considerada “coisa importante” nos discursos oficiais e nas elucubrações teóricas de teses e dissertações acadêmicas se, na realidade da vida prática, na labuta do cotidiano, lhe falta o mínimo e o básico para ele sobreviver?

Na calmaria daquele já começo de tarde, eu deixei o Cais do Sertão acompanhando Lia de Itamaracá e sentindo a voz de Luiz Gonzaga ecoar nos meus ouvidos ateus: “Eu perguntei a Deus do céu, ai/ Por que tamanha judiação?”.

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