5 de maio de 2018

Leda Alves e Dona Selma do Coco ou Da casa-grande dá para ver claramente a senzala lá embaixo

Por Clênio Sierra de Alcântara

Foto: Priscilla Buhr       Coquista talentosa, Dona Selma do Coco correu mundos e                                 fundos divulgando a cultura pernambucana

Depois que eu publiquei o artigo “A cultura popular em um incomum momento de protagonismo”, algumas vozes de bastidores se puseram a me dizer coisas que me escaparam durante a escrita daquela narrativa, seja por falta de percepção e de feeling mesmo de minha parte, seja porque eu não tenha procurado me abastecer, na ocasião, de outros elementos que dessem mais substância ao que eu propunha escrever. E nada como transitar pelos bastidores para que consigamos mirar com maior alcance e clareza os acontecimentos.

Quem leu aquele meu artigo viu que, ao me referir à fala da secretária de Cultura do Recife Leda Alves, eu me limitei a informar que, “entre outras coisas”, ela mencionou o seu desconforto com o fato de o Carnaval recifense ter se convertido num “Carnaval de palco”, tendo, por isso, perdido a espontaneidade das folias que invadiam as ruas. Acontece que, apesar do fato de a fala de Leda Alves ter sido interrompida pela intervenção do apresentador da cerimônia promovida pelo Ministério da Cultura (MinC) para o lançamento do edital da sexta edição do Prêmio Culturas Populares, que neste ano homenageia a coquista Dona Selma do Coco, falecida em 2015, porque ela estava indo além dos minutos estabelecidos - todo mundo sabe como esses eventos cronometram o tempo das falas -, ela, durante o pouco tempo que falou foi, em um determinado instante, a meu ver, de uma crueldade imensa para com a memória da “homenageada” que me espantou e que fez com que eu dissesse a mim mesmo: “Eu nunca soube que ela tivesse tido um contato tão próximo com Dona Selma para poder se achar na condição de afirmar isso e justo num momento de celebração de sua carreira”.

E sabem o que, “entre outras coisas”, a senhora Leda Alves disse naquela cerimônia ocorrida no auditório do Centro Cultural Cais do Sertão, no Bairro do Recife, na manhã da sexta-feira 27 de abril? Ela fez, em princípio, uma exaltação aos chamados artistas da cultura popular para, logo em seguida, atacar o que denominou de “intermediários” – certamente ela queria dizer produtores – desses artistas, dando a entender que esses “intermediários” atrapalham a já precária existência dessa gente. E Leda Alves não parou por aí. Com sua voz mansa e serena de senhora já octogenária, ela, como se tivesse sido uma confidente, uma amiga íntima de Dona Selma, disse a todos nós que acompanhávamos a sua explanação, que a famosa intérprete do coco “A rolinha” não morreu só de velhice, não – imaginem, meus leitores, que ela arrogou-se no direito de se comparar, como mulher, à coquista, como se elas tivessem tido as mesmas condições de existência, sendo Dona Selma uma mulher pobre, negra, analfabeta, suburbana que veio de Vitória de Santo Antão ainda criança tentar ganhar a vida na capital e que comeu o pão que o diabo amassou; e ela, Leda, uma senhora de vida remediada, branca, letrada, atriz e metida sempre com a fina-flor da intelectualidade pernambucana porque, além de ser uma artista de brilho próprio, foi casada com o renomado escritor e dramaturgo Hermilo Borba Filho gozando, mesmo na viuvez, dos louros dessa união, basta ver os cargos que ela vem ocupando há anos nas esferas dos governos estaduais e municipais -, porque “Eu tenho 86 anos e estou aqui ainda”. E completou sua fala indelicada, imprópria e descabida dizendo que Dona Selma morreu acometida por várias doenças e também devido “à desnutrição e aos maus tratos”.

Bem, se a mim a fala de Leda Alves causou certo incômodo e espanto, imaginem que sentimentos as suas afirmações despertaram nos parentes de Dona Selma e em outras pessoas que conviveram de verdade com ela e que foram até aquele auditório participar do evento seja como uma das atrações principais da cerimônia, como foi o caso do grupo Coco de Selma, formado basicamente por netas da coquista, seja como integrantes da plateia.

Aceitando falar comigo sob a condição de não ter o seu nome revelado, uma pesquisadora da cultura popular que trabalhou na Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) na época em que Leda Alves figurava como presidente da instituição, foi taxativa na sua avaliação de parte do discurso feito pela atual secretária de Cultura do Recife naquela manhã de sexta-feira: “Ela veio com esse discurso de mulher branca e burguesa da casa-grande, querendo equiparar-se à Selma, uma negra, uma representante da senzala que teve uma vida de muita precariedade. E ela falou essas coisas parecendo não se dar conta de que estava constrangendo as netas de Selma que estavam lá. Só faltou ela dizer que as meninas, que, segundo ela, não cuidaram da avó, estavam agora se aproveitando da fama dela pra ganhar dinheiro. Pra mim, ela, Leda, já deu o que tinha de dar. Há tempos ela não passa de um bibelô nos cargos que ocupa porque, acredito, ela não tem mais voz ativa e decisória a respeito de nada nas áreas em que atua. Minha opinião - e eu pessoalmente não tenho nada contra ela e até a admiro um pouco - é de que Leda já deveria ter saído da Prefeitura do Recife. Não compreendo esse apego ao poder que ela tem. Ela deveria sair da secretaria de Cultura e dar lugar a alguém que seja realmente atuante e que não exista somente como nome pomposo e de enfeite de secretaria", finalizou a pesquisadora.

Beto Hees, produtor de Lia de Itamaracá desde 1998, que trabalhou com Dona Selma na Alemanha, na ocasião da gravação de um disco, não conseguiu de maneira alguma disfarçar seu desconforto e sua indignação ante o que fora dito por Leda Alves, particularmente, quando ela se referiu ao que denominou de "intermediários" dos artistas populares. Avaliando o acontecido, Beto Hees me disse o seguinte: “Ela participou da cerimônia sem saber, por exemplo, que, mesmo sendo uma festa do Ministério da Cultura, o ministério não nos deu nenhuma ajuda financeira; e que a festa só aconteceu com a participação das netas de Dona Selma e com Dona Glorinha, Aurinha e Lia de Itamaracá porque os produtores – os “intermediários”, como ela os chamou – tiveram que se virar pra providenciar condução e alimentação pro pessoal, como aconteceu até na terça-feira, dia 24, quando a gente ficou um tempão no Alto da Sé fazendo filmagens com o pessoal do Ministério da Cultura. Ou seja, se a gente não tivesse posto dinheiro do nosso bolso e nos mobilizado, aquilo não teria acontecido do jeito que aconteceu”, ele completou.

Também bastante contrariada com o episódio, Andreza Karla, uma das netas de Dona Selma que integra o grupo Coco de Selma, me falou que ficou muito chateada com o que Leda Alves disse sobre a sua avó, afinal, a cerimônia era uma homenagem à artista e ela atacou, na verdade, todos os parentes da coquista que foram até ali prestigiar a escolha dela pelo Ministério da Cultura como homenageada do Prêmio Culturas Populares. E categórica Andreza Karla afirmou: “Eu ia rebater na hora, mas não fiz isso”.

Eu presumo que todos aqueles que são do métier sabem que em Pernambuco as coisas da cultura, de um modo geral, estão e/ou ficaram muito atreladas a panelinhas e a escolhas deste e daquele nome em virtude de simpatias e filiações partidárias. Quem pode negar, por exemplo, que, em que pese o reconhecido talento e valor artístico – e quantos talentos e valores artísticos existem por aí que estão abandonados à própria sorte? – do saudoso Mestre Salustiano e dos seus, ele ganhou uma projeção enorme devido à sua aproximação com Ariano Suassuna que, por sua vez, era atrelado desde sempre a Miguel Arraes e, por conseguinte, a Eduardo Campos? Esse tipo de apadrinhamento e essa costura de relações políticas, partidárias e ideológicas explicam não só porque alguém como Leda Alves se mantém quase nonagenária gravitando nas esferas do poder - e, por favor, não vejam aqui preconceito contra os mais velhos, porque de modo algum se trata disso, e ainda mais partindo de um estudioso e pesquisador da História, como eu sou - e, também, por outro lado, porque certas nulidades e mediocridades artísticas – e eu não vou citar nomes aqui não por covardia, mas simplesmente para não lhes dar um destaque que eles não merecem – estão sempre presentes nas grades dos eventos promovidos pelo Governo do Estado e pela Prefeitura do Recife.

Leda Alves, do alto de toda a sua vivência no meio cultural criticou os “intermediários” dos artistas da cultura popular parecendo ignorar que, se não fosse pela atuação honesta e destemida da maioria deles, quase todos esses artistas, por mais talentosos que fossem, permaneceriam sendo ludibriados por aproveitadores de todo tipo e jamais conseguiriam sair de suas senzalas para ousarem se apresentar – ainda que sem previsão quanto ao pagamento dos seus cachês – nas iluminadas salas de algumas casas-grandes.

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