12 de maio de 2018

A ciranda alegra a minha alma: entrevista com Noé da Ciranda


Por Clênio Sierra de Alcântara

Fotos: Arquivo do autor        

Nascido Nóe Souto Maior Barbosa na cidade de Surubim, no Agreste pernambucano, em 12 de maio de 1953, o entrevistado de hoje é um verdadeiro entusiasta da cultura popular que esbanja alegria e simpatia por onde passa. Com a segurança e a convicção de quem acredita piamente naquilo que faz, Noé é um batalhador, um artista da cultura popular que arregaça as mangas em defesa da ciranda, que conheceu ainda criança, e que reverencia os grandes mestres desse brinquedo, como Antônio Baracho, João da Guabiraba e Lia de Itamaracá, reconhecendo neles a essência primordial da motivação para que ele, em um determinado momento de sua vida, tenha decidido assumir o nome artístico de Noé da Ciranda e sair por aí animando o povo em ruas, praças, beiras de praia e em qualquer lugar para o qual fosse chamado.

Tive a satisfação de conhecer Noé da Ciranda e de bater um bom papo com ele no último dia 12 de janeiro, na Ilha de Itamaracá, aonde ele foi, convidado pelo Diretor de Cultura Nivaldo Jorge, tomar parte como uma das atrações do Festival de Ciranda organizado pela Municipalidade no Centro Cultural Estrela de Lia, na Praia de Jaguaribe; festival esse que celebrou o Dia da Ciranda e o aniversário da cirandeira Lia de Itamaracá, que completou 74 anos de idade naquela data. Em nossa conversa ele recordou desilusões e alegrias  e até da época em que trabalhou como pedreiro e foi construir casas na Paraíba. Noé é um danado.

Hoje, dia 12 de maio, Noé da Ciranda está completando 65 anos de vida. Na sua ciranda “Convite geral” ele nos diz assim:

Amigos, a festa é nossa
Está marcada, me espere
Maria Alice convida as crianças e as mulheres.

Então vamos para lá, que ele já chegou e está na maior animação, doido para começar a festa. Parabéns, Noé!


Noé, quando começou o seu envolvimento com a ciranda?

Admiração desde infância, 3, 4, 5, 6 anos eu já fazia versos. Agora eu me dediquei totalmente aos 33 anos. Eu era muito tímido. Eu cantava muito, escondido. Eu ia pra roça com meu pai. Aí lá não tinha ninguém, eu cantava. Se tivesse gente eu ficava com vergonha. Depois, eu fui me soltando e hoje eu carrego a bandeira da cultura em Surubim e me orgulho da ciranda, porque é uma brincadeira sadia, o pessoal gosta e é origem de raiz nossa.

Como conheceu a ciranda?

A primeira vez que eu ouvi foi em Surubim, por incrível que pareça, em um disco. Lá existia coco de roda e coco de roda dançando é muito parecido com a ciranda. E eu quando vi a ciranda achei mais bonita. Então a primeira vez que eu vi ao vivo a ciranda foi em Boa Viagem com Baracho de Abreu e Lima. Eu tinha 16 anos e disse pra mim: “Eu vou cantar isso, porque é uma orquestra, uma orquestrazinha”. Eu pensava assim em ser cantador de viola ou embolador, qualquer coisa da poesia pra eu desabrochar poesia, porque era meu desejo e já fazia poesia.

Quais cirandeiros o senhor conheceu?

Eu conheci Baracho, Lia. Eu ouço falar em muitos, mas pessoalmente eu só conheci Baracho, que não existe mais, né? E também conheci João da Guabiraba.

Qual foi o disco que o senhor disse que ouviu lá em Surubim?

O disco que eu escutei na época era de Baracho. Eu lembro de algumas músicas. Eu sei que foi de Baracho porque eu me lembro de todas as letras dele que eu até cantei muito tempo. Depois eu fui vendo em outros discos e disse: “Foi as músicas que eu ouvi lá [em Boa Viagem], onde eu vi a ciranda, foi uma delas".

Como foi que o senhor desenvolveu a sua ciranda em Surubim e como formou o seu grupo?

Meu grupo se formou em 86. Eu disse a um grupo político – foi até na eleição de Miguel Arraes, governador – que se me desse um trompete, uma bateria, um surdo, um caixa eu ia fazer uma letra com eles e ia cantar nos comícios. Eles me deram e eu comecei a chamar meus colegas. Comprei um disco de João da Guabiraba pro pessoal ver o ritmo lá em Surubim. Aí a turma pegaram a percussão. Aí o menino lá no trompete – todo mundo queria tocar no trompete, que era novo. E assim foi formando o grupo em 86. Meus filhos hoje tocam comigo, tocam percussão. Eu tenho um filho que toca trompete também. Os três filhos que eu tenho tocam, tocam netos. Agora eu só tenho dois que gostam mais, que me acompanham. O rapaz do sax é de Bom Jardim.




Quando começou a compor cirandas?

Como eu lhe disse, eu comecei a compor já com 7, 8 anos, certo? Ciranda, coco de roda, versos de cantor de viola. Eu não sabia o que queria. Eu queria ser cantador, queria ser cirandeiro, queria ser embolador, eu queria ser aboiador. Já gravei, fiz trabalhos de aboiador também, mas eu não conheço muito da vida do gado; e eu admirei muito a ciranda. Ela é muito populosa: chega o idoso participa, chega a criança participa. Não precisa perguntar se vai entrar. Se tiver descalço ou do jeito que tiver. Não tem hora. Entra quando quer e sai quando dá vontade. Eu achava bonito isso. Eu gosto de coisa que tenha participação, que não tenha limite, que seja muito natural e simples, por isso eu me apaixonei pela ciranda. Qualquer coisa eu escrevia. Se a enxada batesse numa pedra e desse um pulinho e pegasse no meu pé, com dor mesmo daqui a pouco eu já tava fazendo um verso. Eu gostava, sabe? Eu gostava de me testar, saber se eu conseguia a rima e sempre eu conseguia. Eu sempre gostei de brincar com rima.

A produção dos discos acontece de que maneira? O senhor consegue patrocínios?

Eu consigo na minha cidade, entre amigos. Agora mesmo eu lancei o sétimo volume e sempre, em todos os volumes que eu lanço, eu tenho alguns amigos. Tem as pessoas que eu dou o trabalho, tem outros que me compram assim, em quantidade, pra distribuir entre seus amigos. Outras pessoas que me ajudam com R$ 50,00, R$ 100,00, R$ 200,00. Eu tenho umas amizades que me ajudam. A Prefeitura de Surubim tem me apoiado.

E apoia como?

A Prefeitura me dá eventos. Eu fiz na base de uns doze eventos no ano que passou. Segunda-feira tem um evento pra mim lá, que é o primeiro do ano, onde eu vou fazer o meu terceiro DVD, na Festa de São Sebastião. A gente conta com o apoio da prefeita [Ana Júlia, do PSB], ela participa.

O senhor teve apoio de outras gestões?

Eu tive, mas esta, assim, é de 80%, as outras eram 20%.




O senhor vive disso? O senhor é aposentado por alguma coisa?

Eu tenho uma pensão como viúvo. Me aposento em maio, por idade, 65 anos. E a ciranda eu pego um cachê – assim, você sabe como é a cultura -, pago os músicos, sobra algum pra mim e me ajuda também na vida.

De que maneira o senhor divulga seu trabalho?

Nas rádios da minha cidade. Eu vou lá dou uma entrevista. Já dei entrevista em Nazaré da Mata também. Hoje o pessoal, a família mesmo, e o pessoal divulga na internet, né? E é assim.

O senhor tem discos específicos de ciranda?

Meus discos são só de ciranda. Às vezes, quando o pessoal pede a mim, eu canto um coco, uma mazurca. Mas eu sou muito dedicado à ciranda. E agora lancei um cd com mais dezesseis faixas.

E esse material está registrado?

Olhe, alguma coisa eu registrei. Eu vou falar a verdade: eu tenho música nesse trabalho que é pé-de-serra. Eu tenho música é até do tipo brega, que não cabia, mas eu botei já. Em casa eu tenho assim até samba. Eu tenho samba escrito, tenho bolero. Mas eu registrei algumas músicas. Cirandeiro não escapa. Eu tô cantando de repente eu crio uma música na hora, eu sou assim. O cara grava e amanhã tá rolando. Eu fico às vezes assim meio comovido. Mas Deus me deu o dom. Eu digo: “O cara pegou uma música minha, eu vou fazer muito mais de cem”.

Por que não registra?

Olhe, eu registrei só a letra, lá em Surubim. Gasta e não tem retorno. E eu me desinteressei de estar registrando.

Alguém pode fazer isso, Noé. A pessoa tem habilidade de compor, tem dom, como o senhor diz, e alguém se aproveita.

É, eu sei. Eu vou ver isso.

Noé, em seu repertório entram composições de outros autores?

Entra. A gente não pode fazer um show e deixar de cantar – às vezes o povo até pede – “A rosa vermelha” [“Ciranda da rosa vermelha”], a ciranda da Lia [“Quem me deu foi Lia”]. Eu até gravei no segundo volume uma ciranda dela. A música “Janaína”, de João da Guabiraba, eu também regravei nos meus cd’s. Tem que cantar o que o povo gosta.

Como o senhor enxerga o futuro da ciranda em Pernambuco?

Olhe, eu vejo assim: uma coisa de muitos anos que é como se fosse um barco perdido na água. No meu ponto de vista eu não acredito muito mais na valorização. Mas a gente ama o que faz e vai levando e dançando de acordo com a música. De vez em quando encontra uma oportunidade, como esta de eu vir me apresentar hoje aqui em Itamaracá. A minha prefeita tá me dando hoje um apoio de 80%, mas os outros me davam de 10%. E a gente, pra não deixar de morrer a cultura, fica sofrendo, mas carregando a bandeira, empurrando. Eu não tenho muita esperança que melhore tanto, não. Agora, torço pra que aconteça a melhora.

Noé o que é ser artista para o senhor?

Eu acho que é uma realização do espírito da gente. A gente desde a infância gosta e tem essa visão; e, sendo artista, a gente tá se realizando, sabe? Embora que a gente se sinta sem apoio ou até seja criticado, mas o que interessa é fazer uma coisa que a gente gosta e a gente sabe que tá fazendo uma coisa bonita. Não é importante eu fazer o que eu gosto? Quando eu faço uma coisa errada, me deixa triste. Mas a ciranda, não, ela me alegra, alegra a minha alma. Eu me afastei da ciranda uns sete ou oito anos. Eu tenho umas fotos em casa. Eu fiquei muito mais velho do que agora. Por falta de apoio, por tudo. Meus filhos não queriam mais tocar porque os colegas mangavam: “Não tem valor de nada. Ninguém liga”. Os filhos adolescentes botaram besteira na cabeça. Eu, com raiva, não ia forçar eles. Me afastei, mas eu fiquei doente. Aí eu resolvi: “Vou aprender a tocar violão pra eu cantar com meu violão pra mim em casa”, porque eu sofri demais. Com o violão não me preencheu, não. Eu pegava um violãozinho e cantava e gostava, mas ficava faltando uma coisa. Aí meus colegas: “Mas rapaz, tu aprendesse a tocar violão depois de velho. E tuas ciranda, Noé, que sai de dentro de tu, Noé, que tu cria como tu queres?!”. Eu canto como eu quero mesmo. Às vezes brinco com minhas poesias; às vezes mudo a letra na hora. “É melhor tu resgatar tuas cirandas. Tu não soi obrigado a cantar de graça, mas é tua ciranda”. Eu disse: “É mesmo”. Aí resgatei ela.

O senhor tem um acervo de fotos dessas apresentações? O senhor guardou material de sua carreira?

Eu tenho algumas coisas guardadas. Eu tenho uma placa de homenagem – fui homenageado na minha cidade já. Eu tirei fotos de Pitimbu em 89, 91. Cantei muito naquela praia. Cantei noite toda ali. Sabe o que é o cara cantar de oito horas da noite até às seis horas da manhã? Eu cantei ali. Eu e o meu grupo tocamos muitas vezes ali de oito da noite até três e meia da manhã sem parar um intervalo.

E como o senhor foi parar lá?

Empeletei umas casas de uns veranistas de Surubim. Naquele tempo eu gravava em uma fita. Aí ficava trabalhando e o gravador rolando a ciranda direto. O pessoal; “Oh, cirandeiro!”, “Quem é esse cirandeiro?”. “Rapaz, sou eu”. Os trabalhadores disseram: “É Noé. Ele gosta de ciranda. Ele canta muito”. “Ah, vou dizer ao prefeito daqui de Pitimbu”. O prefeito na época era Fernando Cunha; e a secretária era Dona Alice. Em 89, 90. Aí, meu amigo, eu cantei muito em Pitimbu. Esses caras que tocam comigo hoje tinha 12, 13 anos e tocava a noite toda. E nesse tempo os instrumentos era pendurados no pescoço. Algumas vezes era na beira da praia, às vezes numa pracinha. Outras vezes o prefeito mandava a gente pra Taquara. Ali, uma véspera de Ano Novo, tocamos ali, noite de Ano Novo até seis horas e doze minutos da manhã. Quando eu parei reclamaram, mas eu não aguentava mais. Cantei em Caaporã, em Alhandra, em Ponta de Pedras, em Santa Cecília.

Em que momento o senhor decidiu: eu quero a ciranda como a linha mestra da minha vida?

Foi de 2006 pra cá. Ela me completa. Se eu deixar ela, aí eu tô perdendo uma banda de mim. E ela hoje tá bem divulgada, tá bem aceita em Surubim. Hoje mesmo em Surubim eu fui muito bem parabenizado por estar participando deste aniversário de Lia, dividindo o palco com ela. Eu estou muito feliz com isso. É uma honra, uma gratificação grande. Isso já é fruto do trabalho, né? Dos MP3 que eu fiz, dos cd’s que eu fiz.








O senhor me falou que ficou um tempo afastado da ciranda. E o que foi que lhe fez voltar para junto dela?

O que fez eu voltar foi o coração, meu filho, cobrando. O coração cobrava, cobrava, me corroía por dentro. Eu disse: “Peraí, eu tô sendo covarde comigo mesmo”.

E o senhor manteve os instrumentos guardados, foi?

Não, eu doei os instrumentos pra uma banda de pífanos; e, quando voltei, comprei tudinho. E graças a Deus eu tô feliz com a ciranda. O povo de Surubim já vê ela por outros olhos. Eu tô sentindo uma coisa na ciranda – em Surubim pelo menos. Aquela questão de muitas bandas cantar músicas muito depravadas, as mães com as crianças, depois de uma missa, de uma festa religiosa, tão caindo na ciranda. Porque na ciranda você fica com seu filho, com sua filha, com sua esposa, com sua mãe. Você nunca vê um cirandeiro dizer: “Bota bunda pra cima, balança não sei o quê”. Você nunca viu. Cirandeiro canta a cultura, canta coisa bonita. Se chegasse um empresário agora e dissesse: “Oh, Noé, faça uma música com a depravação que você quiser. Eu te levo pra Bahia e te garanto que tu vai ficar rico”. Eu já sou rico. Eu gosto de cantar coisa que me alegre.

Noé, muito obrigado pela entrevista. Boa apresentação.

Por nada. Foi um prazer imenso. Vou ver que tamanho vai ser esse show, porque a emoção é grande.


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