30 de junho de 2018

Made in favela: estética, vanguarda, lugar-comum e obsessão nacional

Por Clênio Sierra de Alcântara

Alvorada lá no morro
Que beleza
Ninguém chora
Não há tristeza
Ninguém sente dissabor
O sol colorindo é tão lindo
É tão lindo.
                             Alvorada. Cartola/Carlos Cachaça/Hermínio Bello de Carvalho

Chega no morro com carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assalto está um horror.
                                                                O meu guri. Chico Buarque

Eu penso no homem
Que dorme nas ruas do Rio
E agora flutua nos rios da rua
Os barracos à beira do abismo
Deslizam no cinismo da Vieira Souto
Meus sonhos são outros.
                                                       Tempestade. Zélia Duncan/Chrstiaan Oyens



     Imagem: Internet 
Espécie de ícone carioca e nacional, as favelas da Cidade Maravilhosa, não é de hoje, se tornaram matéria-prima para a elaboração das mais diversas manifestações culturais

Eu desconheço, mas certamente deve existir por aí, até mesmo vagando no buraco negro da rede mundial de computadores, algum tratado, ensaio ou artigo de fundo enfocando uma chamada “estética da favela”, à maneira do que tanto já se escreveu sobre o brega e o kitsch, por exemplo. Desde que surgiu no cenário urbano e cultural brasileiro com esse nome – acredita-se que foi mesmo no Rio de Janeiro do final do século XIX que ela surgiu, durante os tumultuosos anos da Belle Époque “civilizadora” que aportou nas terras fluminenses, e que foi contemporânea em seus começos de gente do quilate de um Machado de Assis, de um Lima Barreto e de um João do Rio, só para ficarmos com três das mais importantes figuras das letras nacionais daqueles tempos -, a favela nunca mais saiu de cena. E se entranhou de tal modo na cultura nacional que, imaginem vocês, alcançou certo, digamos, glamour, adquirindo status de artigo de primeira necessidade na pauta de alguns artistas que se apresentam como, vá lá, vanguarda politizada.

Grosso modo, a bem da verdade, o Brasil é em grande parte constituído por um aglomerado de favelas. Ou alguém aí ainda pensa que para ser chamada de favela uma aglomeração urbana desordenada e com infraestrutura precária tem que estar cravada em um morro? Eu, por exemplo, moro numa localidade da Região Metropolitana do Recife na qual minha morada está situada numa rua sem pavimentação onde o esgoto corre a céu aberto, construções surgem desobedecendo aos preceitos do Plano Diretor, postes apresentam lâmpadas queimadas e o lixo se acumula como se fosse elemento constituinte da paisagem natural. Então, que nome dar a isso?

Assim como a baiana estilizada da Carmen Miranda, as sandálias Havaianas, as mulatas do Osvaldo Sargentelli, a soja, os jogadores de futebol e o próprio Carnaval ganharam o mundo como artigos de exportação que têm a “cara do Brasil”, também a imagem da favela, principalmente da favela carioca, adquiriu, se não reconhecimento internacional, pelo menos se tornou por assim dizer, objeto de curiosidade de um enorme contingente de estrangeiros que continua enxergando este país sob as lentes do exotismo. Deste modo é que se vendem pacotes de viagens com roteiros nos quais são incluídas visitas guiadas à Rocinha, ao Vidigal e por aí vai, para que os gringos vejam in loco, ao vivo e em cores, os cenários de filmes como Orfeu Negro (1959), do Marcel Camus – possuo uma fotografia autografada pelo ator Breno Mello, que fez o Orfeu, na qual ele aparece encarnando o personagem -, Cidade de Deus (2002), do Fernando Meirelles e da Kátia Lund, baseado no livro homônimo do Paulo Lins  que eu ainda não li, Tropa de elite (2007), do José Padilha, Última parada 174 (2008), do Bruno Barreto, que nos é apresentado como “baseado em uma história real”, história essa amplamente acompanhada pela imprensa na época, da animação Rio (2011), do Carlos Saldanha, de uma telenovela como A força do querer (2017), da Glória Perez, e mesmo do videoclipe Vai malandra (2017), da cantora Anitta. É o Rio de Janeiro favelizado e marginal vendido com charme, pompa e circunstância em produtos que seus idealizadores, acredito, juram estar, seja bem dito, promovendo denúncia da desigualdade social, da violência urbana e outras coisas do gênero marginádlia. Bailes funk onde mulheres sofrem abusos sexuais figuram como destaque cultural da periferia. Tráfico de drogas e de armas é necessidade de sobrevivência. Casas erguidas em locais de risco de desabamento são exemplos de curiosa engenharia. E no discurso de uns e outros as favelas continuam a ser apresentadas como lugares bons para se viver, como diziam as pessoas que frequentavam os palcos dos programas da madrinha de todas as favelas do Rio de Janeiro e do Brasil inteiro, Regina Casé. Daí por que, apesar de permanecerem conflagradas, violentas e esquecidas pelo Estado, as favelas cariocas – assim como o próprio Rio de Janeiro, como insiste em cantar Gilberto Gil que, não esqueçamos, lançou um disco chamado Refavela, em 1977, cuja música-título diz assim: “A refavela/Revela o salto/Que o preto pobre tenta dar/Quando se arranca/Do seu barraco/Prum bloco do BNH”. BNH era o Banco Nacional da Habitação, que foi criado em 1964 e extinto em 1986 – continuam lindas e inspiradoras – e auferindo lucros e conferindo fama a uns e outros.



Foto: Zo Guimarães   Apresentado como "o novo fenômeno literário brasileiro", Geovani Martins escreveu uma série de contos nos quais discorreu sobre o cotidiano das favelas cariocas, uma realidade que ele conhece bem de perto 


Agora mesmo apareceu mais um produto cultural que tem a favela como seu principal substrato. Trata-se do livro O sol na cabeça, do estreante e jovem escritor Geovani Martins, lançado com estardalhaço e ampla divulgação pela Companhia das Letras há poucas semanas. Não tenho o costume de adquirir livros de ficção à época do seu lançamento, mas eis que o do Geovani chegou às minhas mãos como presente e eu resolvi lê-lo de um só bocado enquanto ia para o trabalho e voltava para casa nos ônibus da vida, a fim de ver se ele era mesmo tudo aquilo que andavam dizendo por aí.
Como eu não sou um cultor de estilo e nem possuo cabedais de estudioso e crítico de literatura, a mim me interessa, sobretudo, a estória que me é narrada e não propriamente a forma e a maneira com que ela é contada. Então, seguindo esse meu, digamos, posicionamento como leitor, eu percorri as páginas do livro do Geovani Martins e não encontrei nelas nada além do que o de mais comum e trivial e do que tanto já se disse, exibiu e cantou sobre o cotidiano das favelas do Rio de Janeiro, onde pessoas vivem à mercê das imposições de criminosos de diferentes linhagens – não esqueçamos que por vezes os milicianos se portam como o estabelecimento e a chegada da ordem às áreas antes dominadas por traficantes – e não raro se veem seduzidas pelo prazer viciante das drogas enquanto tentam encarar a dureza de suas existências em confronto com a vigilância e a truculência policial, o preconceito e, por que não dizer , a tirania e a indiferença dos endinheirados do Leblon, de Copacabana e adjacências.


A etiqueta “Made in favela” – e ainda por cima de favela carioca – junto com o apadrinhamento do escritor Antonio Prata certamente contribuíram para que o livro do Geovani Martins ganhasse a repercussão que ganhou. Duvido que, caso não retratasse o Rio de Janeiro, que é o principal destino turístico brasileiro, o Rio de Janeiro dos constantes embates entre bandidos e policiais que não sai do noticiário, e se não contasse com o apadrinhamento que o fez chegar a uma das maiores casas editoriais deste país, O sol na cabeça dificilmente reverbaria com a intensidade que vem reverberando porque, vistos de perto, os treze contos que constituem a obra têm muito de déjà vu e de lugar-comum para alguém que, como eu, tanto leu, assistiu, ouviu e acompanhou – e acompanha – o que é dito a respeito do Rio de Janeiro. Sim, não há dúvida de que, como literatura de testemunho, o livro do Geovani tem um peso relevante porque, amiúde, é sob o olhar do observador de fora que nos chegam os produtos culturais com a marca “Made in favela”; e Geovani, como se sabe, é personagem real e habita os cenários que descreve; e isso, talvez, seja o ponto mais importante do seu trabalho. Narrativas como “Rolézim”, “A história do Periquito e do Macaco” e “Estação Padre Miguel” a mim me soaram como mais do mesmo, com os confrontos do morro com o asfalto, da ordem com a desordem e do permitido com o ilegal se repetindo num círculo, numa sequência que parece não ter fim. Para o bem da verdade, a prosa repleta de gírias do Geovani Martins até me enfastiou. E eu nem vou entrar aqui no mérito, como tantas resenhas fizeram, pondo a baixa escolaridade do autor em destaque porque, além de eu conhecer artistas talentosos que fazem bom uso da palavra sendo analfabetos e/ou semianalfabetos, até onde eu sei, Geovani chegou até a 8ª série e frequentou oficinas de criação literária. Talento não está necessariamente ligado à formação escolar.

O Rio de Janeiro do Geovani Martins, com suas traficâncias, desigualdades sociais, vielas, gírias e arbitrariedades policiais, é o mesmo Rio de Janeiro que estamos tão acostumados a ver por aí circulando no noticiário e em tudo quanto é suporte artístico, porque miséria, para uns, é condição de existência que gera sofrimento, tristeza e revolta – como nos fez ver Carolina Maria de Jesus em seu muito cru relato Quarto de despejo, lançado em 1960 – e, para outros, é matéria-prima necessária para angariar votos e gerar dividendos.

Para além de uma suposta estética que a elas se busca atrelar, as favelas permanecem sendo uma das chagas a evidenciar o alto grau de desigualdade social e de má distribuição de renda que, não é de hoje, constituem a mais verdadeira e precisa marca definidora deste país em que milhões de indivíduos carregam todos os dias um ardente sol na cabeça a desnorteá-los em suas precárias existências, em suas vidas de rumo incerto.

Um comentário:

  1. A desocupação desordenada e falta de planejamento habitacional é e sempre será um câncer na sociedade carioca, além de um problema regional do brasil. Tratar de forma diferente esta realidade, é passar um pincel, na origem estrutural das cidade. Como se não bastasse, a marginalização de uma parcela significativa, este ainda terem de conviver, com o saqueamento de milícias que impõem sem nenhuma caridade seu "lampianismo" espalhando terror por onde passam. Portanto, o escaldante "sol na cabeça", é de fato sentir-se em um inferno, sem regras e sem lei.

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