23 de junho de 2018

Centro Cultural Solar Ferrão

Por Clênio Sierra de Alcântara

Fotos: Ernani Neves


O elegante imóvel de número 45, situado na Rua Gregório de Matos, no bairro do Pelourinho, em Salvador, conhecido como Solar Ferrão, abriga duas instituições culturais: a Galeria Solar Ferrão e o Museu Abelardo Rodrigues.

Alguns museus, é verdade, valem a visita mesmo que seja somente para percorrer sem demora as dependências do prédio que o abriga. E o sobrado, o Solar Ferrão, estava – pelo menos eu o enxerguei assim – com sua estrutura física impecável, demonstrando como ações concretas e eficientes de preservação e conservação de edificações antigas conseguem fazer com que elas resistam e sobrevivam ao transcurso do tempo. O prédio foi construído entre o fim do século XVII e início do século XVIII. foi ocupado por jesuítas, pertenceu a Pedro Gomes Ferrão Castelo Branco no final do período Setecentista, sediou o Centro Operário da Bahia e serviu de moradia para várias famílias ao longo de sua história. Adquirido pelo Governo do Estado em 1978, foi alvo de um amplo trabalho de restauro e passou a sediar a Galeria Solar Ferrão no andar térreo e o Museu Abelardo Rodrigues no andar nobre em 1981.




Esta e as próximas seis fotos são da exposição de Jorge Amado e Carybé

Jorge Amado e Carybé














No dia em que eu visitei o Solar Ferrão – dia 18 de outubro de 2013 – encontrei na atenciosa e gentil monitora Andrea Martinez uma guia bastante atenta às minhas perguntas e inquietações; ela falou-me do problema de acessibilidade – o tema veio à baila porque, naquele exato momento em que nós conversávamos, várias pessoas auxiliavam alguns cadeirantes a vencer um lance de escada – que a instituição enfrentava e também do fato de que parte do acervo permanente da casa estava precisando urgentemente ser restaurado.

Na área da Galeria Solar Ferrão eu prestigiei a exposição de objetos de origem africana que constituem a Coleção Claudio Masella. À instituição pertencem ainda as coleções de Arte Popular e a de Instrumentos Musicais Tradicionais Emília Biancardi. Na ocasião de minha visita o espaço também abrigava a mostra 100X100 – Carybé ilustra Jorge Amado, que levou ao público parte da produção que uniu o artista argentino ao ilustre escritor baiano, uma das parcerias mais acertadas que existiu no panorama artístico nacional.

Esta e as próximas cinco fotos exibem objetos da Coleção Claudio Masella










Com certa ânsia e algum despeito eu me pus a começar a conhecer parte do acervo do Museu Abelardo Rodrigues – e foi particularmente sobre ele que a monitora Andrea Martinez me falara da necessidade de ser restaurado.

Abelardo Rodrigues, pernambucano da cidade do Recife, constituiu ao longo de muitos anos uma respeitável coleção de objetos de arte sacra que ele intencionava que ficasse em Pernambuco, muito embora viesse recebendo propostas de compra de outros estados. José Valladares, seu amigo baiano e um dos maiores conhecedores de arte sacra que este país já teve, escreveu na edição do dia 1º de agosto de 1954 do Diário de Notícias de Salvador, que  Abelardo Rodrigues era um "colecionador de raça", filho de um pai que era um "colecionador apaixonado". E, sobre a coleção em si, que ele jamais poderia imaginar que algum dia deixaria para sempre as terras pernambucanas, disse assim: "Não sei de quando data o interesse de nosso amigo pelas imagens antigas. O que posso assegurar, porque vi com os próprios olhos, porque manuseei e meditei, é que, não obstante a dispersão de nossos velhos santos, ele ainda conseguiu reunir em sua casa uma representação considerável da corte celeste brasileira. Sobretudo da corte celeste nordestina" (José Valladares. "A corte celeste de Abelardo Rodrigues". In Artes maiores e menores. Seleção de crônicas de arte [1951-1956]. Bahia: Livraria Progresso Editora, 1957, p. 56).

Na reunião do Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco, ocorrida no dia 23 de janeiro de 1969, Abelardo Rodrigues compareceu como convidado e falou sobre a situação precária de alguns museus pernambucanos. Na ocasião o colecionador informou aos conselheiros que o jornalista Assis Chateaubriandera o procurou querendo saber o preço de sua coleção, porque o então prefeito de São Paulo Faria Lima estava interessado em criar um museu. Vale dizer que ele sabia que o conselheiro Paulo Fernando Craveiro ventilara a ideia de criação de um Museu de Arte Sacra, aprovada unanimemente pelo Conselho; e na mesma reunião ficou-se sabendo que Abelardo “admite negociar a referida coleção com o Estado, em troca de um terreno onde possa cultivar uma sementeira de plantas tropicais” (Revista do Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco. Nº 2. Recife: Secretaria de Estado de Educação e Cultura, 1970, p. 157. A ata da reunião figura nas páginas 153, 154, 155, 156 e 157).

O incansável Abelardo Rodrigues que criou o Museu de Arte Popular de Pernambuco, fundou e presidiu a Escolinha de Arte do Recife e foi um dos idealizadores do Museu de Arte Popular de Caruaru,  ainda compareceu à reunião do dia 30 de janeiro para continuar falando da situação dos museus (Revista do Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco, p. 158). Mas o assunto da venda da sua coleção, que o poeta Mauro Mota, também membro daquele Conselho, bem pernambucanamente classificara como “a maior coleção de arte religiosa do continente” na sua coluna Agenda, publicada pelo Diario de Pernambuco (Mauro Mota. “Os desordenados”. Diario de Pernambuco, Recife, 17 de dezembro de 1967. In Mauro Mota. 100 crônicas escolhidas. Recife: CEPE, p. 77), só voltou a ser tratado na reunião havida no dia 20 de novembro, a penúltima do ano de 1969. Nesse dia o conselheiro Cussy de Almeida declarou que tinha uma notícia triste a apresentar: “achava-se em vias de ir para São Paulo um tesouro de arte, a coleção de objetos e imagens de Abelardo Rodrigues, que recebeu uma mensagem do Governo daquele Estado indagando o preço da coleção” (Revista do Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco, p. 257). O então presidente do Conselho, sociólogo Gilberto Freyre, sugeriu que fosse dirigido um ofício ao secretário de Educação e Cultura de Pernambuco Roberto Magalhães Melo “expondo a situação e, considerando que essa evasão dos objetos para São Paulo constitui um empobrecimento para Pernambuco”.

Cabe aqui um raciocínio bem simples: nas duas reuniões às quais compareceu no Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco, Abelardo Rodrigues, como já foi dito, tratou justamente da precariedade de alguns museus, como o Museu de Arte Contemporânea de Olinda. Por que acreditar que a criação de um outro museu com o seu acervo iria mudar a situação? Não era ser ingênuo demais apostar que um Estado que não conseguia nem cuidar bem do que já tinha iria se dispor a comprar a sua coleção?

A partir daqui vemos uma parte do riquíssimo acervo que constitui a Coleção Abelardo Rodrigues






Abelardo Rodrigues

Nenhuma estratégia deu resultado positivo. Após o falecimento do colecionador, ocorrido em dezembro de 1971, a coleção continuou em posse de sua família. Dois anos depois a viúva de Abelardo vendeu-a ao Governo da Bahia. Isso resultou numa disputa judicial envolvendo os governos baiano e pernambucano que chegou ao Supremo Tribunal Federal.

Flagrantes de problema de acessibilidade



Ainda em novembro de 1973 Mauro Mota, recorrendo novamente às páginas do Diario de Pernambuco, escreveu assim: “A coleção é essencialmente pernambucana. Tirá-la daqui seria igual a tirar a Igreja de São Pedro, a fortaleza do Brum, até os ares e as cores, uma parte de tudo o que forma o corpo, o espírito e o tempo do Recife” (Mauro Mota. “A bela guerra”. Diario de Pernambuco, Recife, 1º de novembro de 1973. Op. cit. p. 169).

A coleção foi pela primeira vez exposta na Bahia em 1976; e constitui uma das grandes riquezas que integram o Centro Cultural Solar Ferrão que todos os apreciadores da arte, em geral, e da arte sacra, em particular, deveriam conhecer.

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