16 de junho de 2018

Personas urbanas (18)

Por Clênio Sierra de Alcântara

Nós somos medo e desejo
Somos feitos de silêncio e som
Tem certas coisas que eu não sei dizer.
                                          
                                          Certas coisas. Lulu Santos/Nelson Motta




Daquilo que dizemos e daquilo que não conseguimos dizer. Ainda não encontrei em mim uma explicação para o fato de eu ser muito dado a familiaridades imediatas. Dependendo, claro, do meu interlocutor, porque por vezes eu me deparo com pessoas que são como aquelas plantas que, ao ser tocadas, se recolhem e se fecham, eu, em pouquíssimo tempo de conversa, descrevo como que um resumo de toda a minha vida: digo das minhas mancadas, dos meus erros, dos meus fracassos, das minhas inseguranças, das minhas maldades, do meu apego a coisas fúteis, dos meus rancores, dos meus receios, da minha insensibilidade, dos meus nãos, da minha dureza, da minha mesquinhez, da minha brutalidade, do meu egoísmo, da minha ansiedade, da minha falta de paciência; e também digo da minha sensibilidade, do meu apego a coisas essenciais, da minha coragem, do meu companheirismo, das minhas paixões, da minha ternura, do meu comprometimento, da minha franqueza, da minha postura de enfrentamento, da minha solidão, do meu estender a mão, dos meus sins, da minha disposição para ouvir, do meu ser confiável, da minha liberdade.


Não necessariamente agimos – eu digo isso por mim – com má-fé e desonestidade quando, porventura, deixamos de lado e/ou omitimos certas passagens de tudo o que vivemos. Talvez isso seja uma tentativa de algum modo nos resguardar. Ou talvez uma maneira de sustentarmos uma verdade que nos fortalece ao mesmo tempo que superando e/ou tentando superar, sufocar e manter bem distante de nós algum mal que nos infligiram.

Sinceramente eu não acredito que sessões e mais sessões de terapia e de análise consigam extrair tudo de nós e fazer com que aplaquemos algumas dores e/ou esclareçamos, a fim de diluí-las, certas incompreensões que em cada um de nós habita de forma permanente. Acredito que, até mesmo de modo inconsciente e com a maior naturalidade, possamos dizer algo como “eu espero nunca encontrar o meu pai”, que eu já disse a inúmeras pessoas com as quais conversei, e, lá no meu mais profundo íntimo o que, talvez, esteja pulsando vivo e forte seja justamente o contrário disso, que eu falei para os meus interlocutores. É como se o que pensamos estar afirmando com a mais plena segurança e convicção fosse tão somente uma maneira de negarmos e/ou nos rebelarmos contra o imperativo de uma verdade que é maior do que nós e sobre a qual, em realidade, não dispomos de uma força que seja capaz de domá-la e sufocá-la inteiramente. De minha parte continuo dizendo que eu espero nunca encontrar o meu pai, seja em que circunstância for.

Dias atrás um amigo me disse de sua desolação, de sua tristeza por ter se deparado com uma situação bastante desagradável e que foi para ele por demais perturbadora. Ele, que está beirando os sessenta anos de idade, julgava e tinha absoluto entendimento de que a sua natureza homossexual era um fato superado no sentido de que essa condição, digamos, existencial era por ele plenamente aceita sem nenhuma neura e sem nenhum complexo. Mas eis que um acontecimento em família o abalou profundamente – e não era para menos. Num ambiente no qual se encontravam outras pessoas além deles, acompanhando de muito perto o que estava sendo dito, o pai dele começou dizendo que o filho, por ser homossexual, era a grande vergonha da família e por aí vai. “Poxa, embora eu tenha me segurado na hora e dito a ele uma porção de coisas, tudo o que ele disse mexeu muito comigo, cara. E eu que pensava que essa coisa de ser gay estava bem resolvida dentro de mim”, ele me confidenciou em um tom que não deixava esconder certa perplexidade e desapontamento. Eu ainda tentei animá-lo dizendo que, talvez, o abalo tenha ocorrido não necessariamente pelo fato das invectivas contra a sua homossexualidade e sim porque elas partiram de alguém a quem ele estava estendendo a mão e oferecendo ajuda, porque, acredito, caso tivesse partido de qualquer outra pessoa e em outra circunstância, isso iria passar sem marcas nem abalos, iria sair na urina, como se diz por aí.

Ainda há pouco, conversando com outro amigo, que é negro, ouvi dele uma confissão muito forte: “Sierra, eu já passei por várias situações de discriminação por ser negro. E mesmo com o bom emprego que eu alcancei e com a posição de enfrentamento que eu mantenho sem baixar a cabeça para situações desse tipo, algumas coisas me machucaram demais. E eu não consigo expressar, eu não sei exprimir e encontrar palavras pra dizer o que eu sinto com relação a vários acontecimentos que vivi”, ele me disse.

Na medida do possível eu tendo a enxergar todas as instâncias da minha vida, primeiro, mirando-as pelo viés da praticidade, porque eu sou um homem essencialmente pragmático, eu não me deixo ser tomado – nem sempre consigo efetivamente, mas não desisto – pela emoção infrene. Eu avalio até mesmo em termos práticos meus relacionamentos afetivos, porque para mim não dá para fazer de conta que a realidade é diferente do que ela é.

Em todas as esferas da vida nos deparamos com situações de rejeição. Eu sei que sempre corro o risco de ser incompreendido e rejeitado pelo o que eu sou, penso e sinto e pelo modo como eu encaro e guio a minha vida. Vários indivíduos já se afastaram de mim depois que me ouviram discorrer sobre uma e outra coisa. Eles não fazem ideia do quanto eu sou indiferente à rejeição, ao desprezo e ao abandono.

A maioria das pessoas, creio eu, tem uma dificuldade absurda de suportar o peso da verdade e de reconhecer e aceitar fundamentalmente o que elas realmente são.

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