25 de agosto de 2018

Personas urbanas (19)


Por Clênio Sierra de Alcântara

Todo amor vale o quanto brilha
E o meu brilhava
E brilha de joia e de fantasia
O que que há com nós dois, amor?
Me responda depois
Me diz por onde você me prende
Por onde foge
E o que pretende de mim.   
                                               Acontecimentos. Marina Lima/Antônio Cícero


Eu aprendi a dizer adeus.  De verdade, honesta e sinceramente e com a maior franqueza do mundo, eu sei que, ainda que considerando a experiência de ter vivido uma situação dessas, isso não nos livra e nem evita uma reincidência, porque, se mesmo em relação a outras coisas bem comezinhas da vida prática tornamos a repetir erros, o que dizer de uma instância sob a qual não temos nenhum controle, que é o coração?

Conversando ainda há pouco com o jovem e determinado e boa cabeça José Ildo, que eu conheci na última segunda-feira num ônibus, quando eu – e também ele – voltava do trabalho, discorremos sobre um pormenor das relações afetivas que é o caso de nos vermos enredados com pessoas que sorrateiramente entram em nossas vidas nos enganando a todo o momento com a oferta maliciosa e bem servida de generosas porções de falso amor. E elas assim agem, porque intentam e por vezes conseguem com facilidade nos envolver a tal ponto que dela fiquemos, por assim dizer, sentimentalmente dependentes. E, uma vez atingido esse ponto e estágio do seu infame joguinho, elas passam a buscar subtrair de nós aquilo que materialmente desejam. Algumas criaturas dessa natureza, é bem verdade, caem fora e nos abandonam tão logo obtenham o que ambicionavam; já outras – e foi justamente uma deste tipo que atentou contra a minha pessoa, desprezando e reduzindo a nada todo o carinho e o melhor dos sentimentos que eu lhe devotava – permanecem como carrapatos e sanguessugas presas a nós e só se afastam quando, por fim, caímos na real, arregalamos muito bem os olhos, nos damos conta de que não passávamos para elas de uma possibilidade de alcance de dinheiro e/ou de algo que ele poderia lhes proporcionar, e arrancamos e as expulsamos e as tangemos para muito longe de nós, a fim de que nem em pensamento consigamos mais reconstruir as figuras de suas pessoas. E o que nos resta, claro, é o fardo de uma tristeza e de uma raiva por, muito mais do que ter sido subtraído de nós algum valor em dinheiro ou outro bem qualquer, como um par de sapatos, uma mochila, uma camiseta ou uma viagem com tudo pago, a pessoa brincou o tempo todo com o nosso sentimento, como se ele fosse uma coisinha qualquer, que alguém pode chegar e fazer com ela o que quiser. E ainda há quem acredite que dinheiro compra até amor verdadeiro.

Afora esse tipo de falso amor, existe outro que é, talvez, tão ou mais corrosivo e dilacerador quanto ele, que é o que se estabelece apenas num coração de duas pessoas que se encontram. Eu disse que talvez ele seja tão ou mais corrosivo e dilacerador quanto aquele, porque nesse, os elos não estão enganando um ao outro, não existe premeditação, planejamento ou algo que o valha, não existe maldade e nem interesse material de qualquer espécie. Existe, isto sim, cumplicidade, companheirismo, confiança, afinidade, afeto, admiração e, claro, amor, mas não necessariamente um amor carnal e afetivo do tipo que une pessoas em namoros e casamentos plenos. Ocorre que, como eu disse, às vezes esse amor carnal e afetivo é sentido apenas por um dos dois corpos que se encontraram; e a pessoa, dada a proximidade, a cumplicidade, o companheirismo, a confiança, o afeto e a admiração que o outro comunga com ela, se recusa a acreditar que a natureza do amor contido na outra pessoa seja diferente do que ela está sentindo.

Eu sei que para muita gente não é nada fácil pôr, desde o início, as cartas sobre a mesa e dizer o que é, o que sente, o que pensa e o que pretende com alguém pelo qual demonstrou algum interesse. É óbvio que aqui eu estou excluindo aquele tipo de pessoa aproveitadora sobre o qual discorri em linhas atrás. Uma coisa é agir de maneira clara e verdadeira dizendo, por exemplo: “Olha, fulano, estamos nos encontrando, mas eu não quero relacionamento sério com você”. Ou: “Entenda bem, o que existe entre nós é uma amizade colorida, nada mais do que isso”. Ou ainda: “Fulano, não fique alimentando coisas e fantasiando um namoro e tal porque eu não estou pensando nisso com você”. E até: “Não, não confunda as coisas. Eu não estou a fim de você”. E ponto.

Pode parecer um comportamento grosseiro esse que eu tenho tido. Mas eu prefiro mil vezes agir assim a enganar e/ou falsear uma situação que, eu bem sei, é dolorosa, é frustrante, é dilacerante. Demorar a perceber que o seu sentimento mais vigoroso não está sendo correspondido, implica a dizer que você não ficou atento, verdadeiramente atento, para ler os sinais que até mesmo os mais habilidosos enganadores deixam aqui e ali enquanto vão traçando suas estratégias e planos de sedução e ludíbrio.

No domingo passado eu vivenciei um desses momentos em que você chega a pensar que está de frente com uma possibilidade de felicidade. Eu fui apresentado a uma pessoa que mexeu muitíssimo comigo. Aqueles olhos muito vivos e curiosos. Aquela boca e aquele sorriso bonitos. Aquele jeito de falar e de me tocar. Aquela simpatia. Aquele entusiasmo com a vida. Aquela determinação. Aquela atenção que me concedeu... Tudo isso me encheu de uma vigorosa energia. Até que. Até que em determinado momento essa pessoa me fez saber que eu não tinha e não tenho a mínima possibilidade de conquistá-la. E, nesse exato instante – e creio que tenha ficado evidente em meu semblante a frustração que me tomou por inteiro quando eu a ouvi dizer isso -, eu pus firmemente os meus pés no chão. E recolhi o meu desejo. E carreguei tristemente o meu desencanto.

É fato, eu também sei, porque mais de uma vez eu instruí uma e outra pessoa, eu esclareci o que é que existia entre eu e elas, que tem gente que não aceita um “eu não quero”, um “não pode ser” e fica insistindo, sabe? Egoísta e cegamente a pessoa se põe a querer manter de pé uma realidade insustentável. E atrapalha a sua vida e a dela, sem querer deixar que você siga em frente. É difícil, é dificílimo para mim eu ter de lidar com pessoas que se recusam terminantemente a aceitar a crueza e o peso da verdade que lhe é apresentada.

Penso que eu não tenho mais idade para perder meu tempo contornando situações dessa natureza. Eu disse adeus a mais uma pessoa noutro dia com um definitivo ponto final, porque em absoluto eu me exauri de tanto dizer a ela que sua insistência e a minha complacência já tinham nos levado longe demais.

18 de agosto de 2018

Cometendo bloqueiocídio de zapdependentes


Por Clênio Sierra de Alcântara 

Já dizia a minha adorada avó que tudo demais faz mal. Muita gente tem feito do celular uma espécie de prolongamento do corpo. E não apenas isso: muitas pessoas fazem das redes sociais o espaço principal de suas existências, querem que todos ao seu redor embarquem na mesma onda e não aceitam ser ignoradas


Não consigo aceitar de todo e nem me submeto a certos tipos de comportamento que julgo inapropriados para mim. “Ah, Sierra, mas a etiqueta manda fazer assim e assado”. Então, que se contrarie e se reveja a etiqueta. Onde já se viu a pessoa se manter refém de algo que lei nenhuma estabeleceu e que uns e outros por convenção e/ou comportamento de manada, se põe a seguir?! Comigo não, violão. É porque não dá mesmo.

Relutei o quanto pude para não adentrar nos domínios dessa entidade multicéfala chamada WhatsApp. Ocorre que, desde que eu resolvi ter um telefone celular, escolhi como fornecedora de serviços a operadora Oi, que, no dizer muito certeiro e apropriado do meu amigo Adelbar Lima, “é a pior empresa de telefonia do mundo”. De modo que, na ilha onde eu moro, o serviço oferecido por essa empresa, de uns tempos para cá, só fez piorar; e piorou de tal maneira que, por vezes, meu celular, mesmo que posto no terraço de minha casa, passava – e passa – dias inteiros sem conseguir captar sinal. Sabe o que eu fiz para não me ver completamente isolado do mundo? Em vez de pesquisar e me tornar cliente de uma operadora de telefonia verdadeiramente eficiente, eu contratei os serviços de uma empresa de internet e instalei wi-fi na minha humilde residência. E para usufruir e fazer uso do telefone para efetuar ligações, comprei um smartphone e, em janeiro passado, iniciei uma jornada no universo do famigerado WhatsApp, que também atende pelo vulgo zap.

Não posso negar que o meu problema de falta de comunicação via telefone se resolveu: eu saí do quase total isolamento. Por outro lado, não demorou para que eu me desse conta de que adentrara em um terreno muito, muito movediço e repleto de pessoas dadas a fazerem e/ou quererem fazer de mim um estúpido, um idiotão do tipo Débi e Lóide, sabem? E o pior não foi a minha quase que inteira inadequação ao danado do zap. O pior mesmo foi ter de aturar – e às vezes me deixar levar pelas sandices – o comportamento bobalhão – constatei que algumas pessoas, em realidade, sérias, ficaram bastante soltinhas e porraloucas no ambiente virtual – de certos indivíduos pelos quais eu nutro alguma estima e carinho.

Pouco adiantou o esforço – ainda que mínimo – que eu fiz para tentar me adequar ao dito ambiente. É uma grande verdade: não adianta tentar se enganar e nem se fingir de morto; as pessoas são o que são e pronto, estejam elas no mundo real e/ou virtual. Bisonho, eu fui tateando com dificuldade naquele lugar, descobrindo ferramentas e seus usos. E logo vieram as cobranças por atenção, as aporrinhações e as encheções de saco acompanhadas por uma miríade de “bom dia!” e “boa noite!”. A coisa principiou assim. E, em seguida, começaram a chegar os vídeos pornográficos, as correntes, as piadas sem graça, as notícias falsas e por aí vai. Depois, meu caro leitor, eu passei a ser alvo de cobranças por não ter comentado o que recebi, por não ter respondido o “bom dia!” e o “boa noite!” e seguem-se os demais.

É claro que o meu ser bronco, a minha impaciência e a minha língua – e escrita – ferina eram e continuam sendo inadequados para lidar e interagir com esse tipo de gente. Mas o que fazer? Como reagir e sobreviver naquele ambiente? Por que essas pessoas agem assim, pensando que a vida é uma futilidade só e que todo e qualquer indivíduo que utiliza o zap tem que estar sempre a fim de bate-papo e de conversa mole, sem ter o que é realmente importante para fazer e como se cada uma delas fosse o nosso único contato naquele espaço? Esses eram – e continuam sendo – alguns dos questionamentos que eu me fazia enquanto transcorria o meu tempo de adaptação àquele território.

Sabem vocês o que uma das criaturas que lá se encontrava me disse pouco depois de eu ter adentrado ali? “Bem-vindo ao inferno das redes sociais!”. Ela escreveu isso depois de eu reclamar – vejam vocês que eu ainda tentei ser gentil e contornar a situação – do fato de todos os dias ela me enviar mensagens perguntando “como vai?” e isso e aquilo. Pelo desaforo eu não pensei duas vezes: acionei o dispositivo e bloqueei o insolente. E desde esse dia em que eu cometi o meu primeiro bloqueiocídio no WhatsApp, não consegui mais parar. Gostei da coisa, entendem? Eu não sei, eu não consigo explicar a sensação de prazer que me toma quando eu saco do meu celular, miro a vítima e ajo para que ela desapareça para sempre da minha tela. É realmente uma sensação in-des-cri-tí-vel. Só quem já cometeu bloqueiocídio pode compreender com exatidão o que eu estou dizendo.

Eis a narrativa que antecedeu a mais recente eliminação, ocorrida na última terça-feira:

João Pedro: - Rapaz, não faça mais isso.
Eu não sabia do que se tratava.
Eu: - Isso o quê?!
João Pedro: - Dias atrás eu perguntei como você estava e você não me respondeu.
Eu: - Foi? Eu não me lembro de ter visto isso, não.
João Pedro: - Viu sim, porque as barras ficaram azuis, indicando que você leu o que eu escrevi.
Li isso estando já de ovo virado, como se diz por aqui. E disparei:
Eu: - Escuta, cara, tu pensas que eu tenho obrigação de responder a tudo o que eu recebo no zap, é?
João Pedro: - Eu perguntei como você estava. Você foi mal-educado.
Eu: - Tá bom. Eu sou mesmo mal-educado.

João Pedro ainda chegou a escrever que eu o estava agredindo; e que “não sabe o que está acontecendo com as pessoas”. Presumo que pelo menos nesse quesito eu sei “o que está acontecendo com as pessoas”: gente que antes do advento do WhatsApp raramente telefonava para alguém porque não queria gastar e/ou não tinha créditos para tanto, de uma hora para outra, dado o baixo custo do WhatsApp e/ou pegando arrego no wi-fi alheio, passou a se arvorar de ser a pessoa mais simpática e atenciosa do mundo; e a querer ser a sua best friend. Eu aguento um negócio desses? É claro que não. E por isso foi que eu prontamente fui lá e play, apertei o comando e bloqueei o João Pedro, assim como já fizera com mais outros três chatonildos. Foi menos um que não irá mais me atazanar e cobrar de mim bons modos, candura e paciência. Foi mais um que terá de buscar outra pessoa bem diferente de mim a fim de manter a sua zapdependência. Para alguém que, como eu, diz não tetê-à-tête com uma comovente naturalidade, fazer uso de um dispositivo de bloqueio de contatos é um procedimento igualmente indolor e que, pelo menos em mim, não deixa nenhuma cicatriz.

Devo-lhes dizer que eu era feliz no meu tempo de “burro fone” e sabia. O diabo foi que eu resolvi querer escapar da deficiente e precária operadora Oi comprando um smartphone e me lasquei. Perdi o meu sossego. E se eu não me ligar, ele vai acabar é roubando ainda mais o meu precioso tempo. Desconfio que essa gente zapdependente esteja me cercando e conspirando para que eu involua e me emburreça.

11 de agosto de 2018

Feira livre de Água de Meninos: pequena memória de um grande acontecimento econômico e social baiano

Por Clênio Sierra de Alcântara

Durante as pesquisas que realizei com o fito de escrever um artigo sobre a cidade de Salvador, aqui e ali eu fui encontrando informações a respeito de uma feira livre que acontecia em Água de Meninos. Tudo o que eu encontrava me enchia de entusiasmo para ir conhecê-la; e, por vezes, eu repreendia a mim mesmo por ter perdido a oportunidade de vivenciá-la e percorrê-la em outubro de 2013, quando, pela primeira vez, eu estive na capital baiana. Mas qual não foi a minha frustração quando, ao planejar um retorno àquela cidade para ir conhecê-la, fiz outras leituras e tomei conhecimento de que a feira livre de Água de Meninos deixara de existir havia muito tempo, figurando tão somente em imagens e narrativas evocadoras do seu passado de glória, um tempo em que ela era considerada um grande acontecimento econômico e social de toda a Bahia.

O que o leitor encontrará a partir daqui, nesta pequena memória, será um punhado de referências que reuni ao longo dos anos enfocando essa desaparecida e famosa feira livre.

A feira

Encontra-se no Roteiro turístico da cidade do Salvador, publicado pela Prefeitura Municipal, tudo leva a crer que em 1952, porque é esse o ano que aparece – precisamente fevereiro de 1952 – logo abaixo do texto de abertura assinado pelo então prefeito Osvaldo Veloso Gordilho, esta descrição:

Prosseguindo pela Avenida Jequitaia, encontra-se, próximo ao Forte da Lagartixa, a maior feira livre da Bahia, a Feira de Água de Meninos, onde se acha de tudo. Verdadeiro torvelinho. Em meio de suas centenas de barracas de paus, milhares de pessoas se acotovelam durante o dia inteiro, de domingo a domingo adquirindo gêneros, inclusive roupas feitas. A maioria deles, tal como a cerâmica procede do recôncavo transportada em barcos, que ancoram na calma e pequena enseada próxima. Nos sábados e domingos, ela funciona ininterruptamente dia e noite. É dos passeios prediletos da população notívaga, que ali come pratos da culinária bahiana – acarajé, caruru, moqueca de galinha, vatapá, etc. Junto, depara-se a Fonte da Munganga, do outro lado da Avenida Jequitaia. (1)

Vê-se pelo relato contido no mencionado roteiro turístico que a feira livre de Água de Meninos em pelo menos um aspecto se diferenciava do tipo comum das primitivas feiras livres nordestinas: ela não acontecia em determinado dia da semana e sim todos os dias, “de domingo a domingo”, como diz a narrativa, o que por si só revela a importância que ela tinha não só para o público consumidor de Salvador e cidades vizinhas como também era, sem dúvida, o principal ponto de escoamento da larga produção de frutas, legumes e verduras, cerâmica e outros produtos oriundos das férteis terras do Recôncavo Baiano e também de ilhas da Baía de Todos os Santos. Outra peculiaridade dessa feira era que ela era armada à beira-mar, numa pequena enseada; e, com a dimensão que possuía, creio que se tratava de caso único em todo o litoral brasileiro.

Um cartão-postal que aparece no livro Lembranças do Brasil, de João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo, que traz como identificação do registro da imagem “Água de Meninos – Obras do Porto”, (2) exibe a enseada sem que se veja nela a feira, provavelmente porque nessa época ela ainda não existia. É uma pena que o cartão-postal não esteja datado. Nele vemos sobrados defronte à praia, bem como a Igreja da Ordem Terceira da Santíssima Trindade. Sabe-se que as tais “obras do porto” tiveram início – isto é, a sua primeira fase – em novembro de 1906 e que se estenderam até fevereiro de 1913, praticamente reconfigurando a chamada Cidade Baixa, onde ficaram estabelecidos o alto comércio e a principal zona bancária. Sucessivos aterros resultaram na inauguração de 360 metros de cais de 8 m de água, com três armazéns e o calçamento do cais na extensão referida.



Reprodução do cartão-postal contido no livro Lembranças do Brasil

O texto do mencionado roteiro turístico nos diz ainda que as mercadorias chegavam em barcos à feira. Pelo menos até os anos finais da década de 1950 o principal tipo de embarcação empregado não só para o transporte de mercadorias bem como de pessoas interligando Salvador às cidades do Recôncavo era o saveiro. Enquanto a capacidade média de um saveiro era de 20 passageiros por viagem, os que se destinavam ao transporte de carga possuíam capacidade que variava entre 12 e 30 toneladas, de acordo com a natureza da mercadoria. Estimava-se que naquela época existissem 5.500 saveiros em toda a Bahia.

Continuemos examinando informações a respeito da feira livre de Água de Meninos que foram produzidas ainda na década de 1950.

Contendo 27 desenhos saídos das mãos mágicas do argentino baianizado Carybé e com texto de Vasconcelos Maia, o volume nº 4 da Coleção Recôncavo, publicado em 1955 pela Livraria Progresso Editora, foi intitulado Feira de Água de Meninos. Maia inicia sua narrativa dizendo que “Quem vier à Bahia não pode deixar de visitar suas feiras, as feiras do povo”, como o Mercado Modelo, Largo 2 de Julho, Cortume, Sete Portas, Porto da Lenha e, claro, Água de Meninos que, entre todas, “é a mais típica” e “esparrama-se à beira mar, ao pé da Igreja do Pilar, debaixo de várias ladeiras baianas”. Leiamos com atenção o que o nobre Vasconcelos Maia nos legou a respeito daquela feira:

De longe, é um só ajuntamento de barco, barraca, mercadoria e gente, é um cheiro agudo de mangue e maresia. Então, nem precisa perguntar: é só descer, a feira é de quem chega, uma vila pitoresca e também, triste é confessar, uma vila suja de chão batido, lamacenta se chove, poeirenta se faz verão, detritos apodrecendo pelos cantos. Uma variedade sem conta de tipos humanos, comprando ou vendendo, navega diariamente nas ruelas estreitas, entre as barraquinhas feitas de taboa, cobertas de lona desbotada. Brancos, pretos, amarelos mulatos, sararás, caboclos, gazos e cabos-verdes, de todos os sexos e idades, de classe média e proletária, encontram-se, falam, pechincham, discutem, numa algazarra de várias línguas onde impera um português bem brasileiro, vibrante de gíria local. (3)

E prossegue o danado do Maia nos dizendo dos “saveiristas de músculos tatuados”, dos “estivadores taludos” e de toda uma fauna que ali se misturava com outras tantas criaturas que desciam do morro para fazer a feira, como as “gordas e lustrosas pretas nativas”. E tudo isso nos revelando o espírito da feira. E tudo isso compondo um quadro de efervescentes trocas comerciais e interação social.

E tão numerosos quanto as gentes eram os saveiros que aportavam ali que, mesmo sem ser gente como aquelas gentes que zanzavam naquela enseada, eram igualmente batizados e tinham nomes como “Deus te guie”, “O maior é Deus”, “Filho do Sol”, “Filho das Aves”, “Flor do Porto”, “Sombra da Lua”, “Moeda Nova” e “Novo Oriente”. Tudo era descarregado para alimentar a freguesia. Toda a sorte de mercadoria cruzava, singrava a Baía de Todos os Santos para ser desembarcada naquela feira, como a cerâmica oriunda de lugares tão diversos quanto Cachoeira, Santo Amaro, Maragogipe, Nazaré, Feira de Santana, Juazeiro e até do vizinho estado de Sergipe, ocupando “metros e metros do chão, numa exposição interessantíssima de formas, desenhos e cores”. (4) Cerâmica utilitária e também decorativa: moringas, quartinhas, potes, panelas e esculturas de personagens populares e de bichos.

Sendo uma feira na qual de quase tudo se encontrava, na de Água de Meninos, segundo ainda Vasconcelos Maia, havia barracas de fazendas e de artigos de armarinho e couro, de ervas medicinais e ferragens, de gaiolas para passarinhos e papagaios, de cachaça de vários tipos. E não só em barracas os produtos eram expostos. Diz-nos ele:

E espalham pelo chão, sobre folhas de papel ou em vitrines volantes, frascos de cheiro barato, caixas de misse, espelho para bolsa, cartões postais, naftalina, sabonetes e pastas-dentais, carriteis de linha, agulha e fitas, lenços, cintos, meias, cadernos colegiais e brilhantina Buquê de Amor. (5)

Adoro este pormenor: brilhantina Buquê de Amor.

E as comidas prontinhas só esperando o freguês chegar tinha? Tinha sim. E oferecidas por baianas vestidas em roupas comuns, “às vezes em trajes de festa, nunca à la Hollywod”. (6) Entendi. E o que é que as baianas levavam para vender na feira? Ora, só gostosura: mingau de tapioca, acarajé e abará, pamonha de puba, acaçá, cocada-puxa, doce de tamarindo, milho assado.

Agora me diga: nessa feira aparecia gente se apresentando como artista? E então. Apareciam homens que mastigavam gilete e comiam cacos de garrafa; e domadores de cobras e macacos. E ainda se viam por lá propagandistas de remédios milagrosos, vendedores de poemas populares e folhetos de cordel e ceguinhos com seus violões e banjos acompanhados por guias, geralmente negrinhos e magros.

Tudo pulsava na fervilhante feira livre de Água de Meninos, nome esse tão bonito como a própria Bahia.

Como e quando surgiu a feira?

Já vimos, até agora, que, além de acontecer à beira-mar, abrigada numa enseada, a feira livre de Água de Meninos não apresentava o característico primitivo das feiras livres nordestinas – hoje em dia, poucas ainda são assim – de montagem e desmontagem dos bancos de madeira a fim de que, ao término da feira, o espaço que ela ocupara fosse liberado para outros eventos; ela era fixa e permanente. Mas, quando foi que essa feira livre teve início? Como foi que ela surgiu? E por que o nome Água de Meninos?

Vasculhando sítios da internet encontrei no blog História de Salvador – Cidades Baixa e Alta, mantido por Eduardo Gantois, artigos que têm como assunto a tal feira livre sobre a qual estou aqui a construir uma pequena memória. Num deles, intitulado “Feira de Água de Meninos”, que foi postado no dia 16 de novembro de 2009, seu mantenedor nos informa que essa feira livre se originou de uma que era móvel e que se montava na altura do sétimo armazém das Docas da Bahia e que, certamente por isso, se chamava Feira do Sete; e que acabou sendo proibida de acontecer, tempos depois, porque tanto a Prefeitura Municipal quanto as Docas da Bahia não viam com bons olhos essa pequena feira, uma vez que “Todos os dias a rua tinha que ser lavada” (esta informação aparece no artigo “História da feira de Água de Meninos”, postado no dia 19 de maio de 2014). (7) Segundo Eduardo Gantois, os comerciantes reclamavam da mobilidade dessa feira porque queriam trabalhar num local fixo. O resultado foi que – e isso deve ter ocorrido na década de 1930, não se sabe exatamente – eles começaram a se estabelecer de modo permanente num outro terreno sem que a Municipalidade ou quem quer que fosse interferisse nesse movimento que originou a feira livre de Água de Meninos. Destacou Eduardo Gantois:

O local era o melhor possível. De um lado a avenida que ali passava e do outro um magnífico cais que dava ao local uma profundidade de 10 metros. Os saveiros do Recôncavo e das Ilhas que abasteciam Salvador pelos lados de Itapagipe – Porto da Lenha – agora podiam chegar tranquilamente mais próximos da “cidade”. Aquela área tinha sido aterrada para a construção do Porto de Salvador. As praias e os recifes existentes na área tinham ficado embaixo da terra. Estava livre o caminho do mar! (8)

Ainda segundo esse nosso informante as pessoas que foram se estabelecendo no lugar montavam não somente barracas para o comércio, mas também barracos para neles morar, ainda que sem contar com qualquer mínima infraestrutura, o que, claro, provocou paulatinamente a degradação do terreno, imperando a imundície e o mau cheiro. A única – talvez a única e/ou principal – divergência que havia entre os feirantes era que uns queriam se instalar mais próximos ao mar, por causa dos saveiros, enquanto outros entendiam que a proximidade com a avenida lhes seria mais proveitosa. Bom, em que pese as divergências, o fato foi que a feira livre de Água de Meninos ganhou corpo, cresceu e se consolidou como a principal que até então existia em Salvador, atraindo toda semana centenas de pessoas – fossem moradores, fossem gentes de fora – que  para ela afluíam para comprar algo em meio a um sem-número de coisas.

Água de Meninos... Por quê?!

E o nome Água de Meninos? Bem, eis aí mais uma indagação cujas respostas não primam pela inteira clareza. Ou melhor, por um amplo consenso.

Continuemos em companhia de Eduardo Gantois. Ele nos diz nos seu artigo “Feira de Água de Meninos” – e repete a informação no texto intitulado “Igreja de Santo Antônio e a feira de São Joaquim”, que ele postou no blog no dia 27 de fevereiro de 2011 (9) – que envidou esforços em suas pesquisas e “nada foi encontrado” a respeito da origem do nome dessa feira, mas levantou uma hipótese:

Há uma hipótese que agora levantamos de que a referida expressão teria tido origem no fato de que, antes da aterragem da área existia uma praia denominada Praia da Jequitaia. A referida praia, como todas as outras existentes nas proximidades até Monte Serrat, possuía uma barreira de recifes. Muito provavelmente, essas barreiras formavam bacias tranquilas nas marés vazias. Uma delas seria a “Água de Meninos”. Segurança de todos. Pura garantia! Também uma expressão bem baianês.

O conhecido costume dos meninos do Barbalho e Santo Antônio descerem para tomarem banho no cais de 10 metros, como acontecia na década de 1940, poderia ter advindo do uso da Praia da Jequitaia para os banhos em suas bacias.

A hipótese de que a expressão “Água de Meninos” teria surgido porque os padres costumavam batizar os meninos na Praia da Jequitaia, não se sustenta. O batismo católico é feito no interior de igrejas. Sempre foi assim.

Note-se que, apesar de ter, em princípio, dito ao seu leitor que fizera pesquisas e “nada foi encontrado” a propósito do nome Água de Meninos, ele se contradiz ao mencionar, além de sua própria hipótese, a outra que se refere ao batismo de crianças na praia e sobre a qual não diz onde colheu a informação.

No já mencionado artigo “Igreja de Santo Antônio e a feira de São Joaquim”, apesar de discordar da narrativa explicativa alegando que “Todas as pessoas têm o direito de se expressar da forma que quiserem”, Eduardo Gantois nos diz que:

Já a igreja teria sido erguida por volta de 1642. Curiosamente, entretanto, há citações que já em 1594 existia no local uma capelinha que se diz construída por um senhor de engenho de Água de Meninos chamado Cristóvão de Aguiar Daltro e que o mesmo teria recebido de Tomé de Souza em 1549 uma doação de terras na parte norte da cidade onde existia uma nascente de água e que esta água formava lá embaixo um verdadeiro lago onde os meninos da região costumavam se divertir, originando-se daí o nome “Água de Meninos”!

Em minhas diligências, catando informações no acervo de minha biblioteca, encontrei no Breviário da Bahia, do Afranio Peixoto, uma narrativa denominada “Água de Meninos”, na qual esse escritor baiano faz alguns esclarecimentos a respeito do sítio que adquiriu esse nome Água de Meninos. Afranio inicia seu texto nos dizendo que “Os meninos eram, na catequese dos jesuítas, elemento de ensino, e de autoensino, da infância”; (10) e que, logo chegados ao Brasil, os jesuítas trataram de mandar vir órfãos do reino que seriam “chama”, para as desta terra, abandonadas ou não, filhos de reinóis ou de índios: estes aprenderiam com os outros, e os padres, e ensinariam aos pais. Tal iniciativa, conforme o planejamento, traria, os missionários supunham, duas consequências: o asseio físico e moral dessas crianças, vestidas todas de branco, afastaria os curumins da barbaria; e desse “viveiro”, que seria o colégio, recrutariam os padres “a vocação sacerdotal da terra, os primeiros jesuítas brasileiros”. (11)

Recorrendo à História da Companhia de Jesus, de Serafim Leite, Afranio segue nos dizendo que o provincial português Simão Rodrigues, que mandara Manuel da Nóbrega em seu lugar, recomendou-lhe expressamente a criação de meninos. Em 1550 chegaram a Salvador sete órfãos vindos de Lisboa. Apelando a Tomé de Souza, então Governador-geral do Brasil, Nóbrega conseguiu dele, em 21 de outubro do mesmo ano, a primeira sesmaria que a Companhia de Jesus possuiu neste país; ela era denominada Água de Meninos “por ser para o sustento deles”. E como era o lugar?  “Era um local, na baixa da praia, ao norte da enseada, provido de boa e abundante água, preciosa na Bahia”. (12) Água essa que, muito depois, captada e canalizada, apareceria em fonte pública de bica no ano de 1752. Vale dizer ainda que em algum momento os padres arrendaram as terras da sesmaria e nelas se estabeleceu um engenho de cana-de-açúcar. Afrânio Peixoto nos ensina, ainda recorrendo a Serafim Leite, que primeiro o colégio dos padres se chamou Colégio dos Meninos de Jesus; só depois foi Colégio de Jesus.

Ainda segundo o diligente Afranio, a interpretação dada por Álvares do Amaral que diz que, de uma nascente de copiosa água, que corria até a baixa, quase à beira-mar, formando ali um grande lago para o qual diariamente acorriam meninos vindos muito até de longe para nele banhar-se, tomando por isso o lago o nome de Água de Meninos, não passa de pura interpretação, adaptativa, desconhecida a razão mesma, que está nas Cartas do Padre Nóbrega, datadas de 1550, porque “Nem havia crianças, ao tempo, para isso, nesses matos”. (13)

Avaliando imagens

Recorrer a acervos de imagens sobre determinados objetos de estudo é um modo bastante apropriado e pertinente para que ampliemos nosso entendimento a respeito daquilo que estamos a investigar. Não sou partidário da expressão tão batida que diz que “uma imagem vale mais do que mil palavras” porque, tanto quanto narrativas, imagens também são construções conscientes de seus fazedores. Ou seja, imagens também podem ser feitas, por exemplo, para alinhar-se com determinadas ideologias que são pregadas e revelar vieses que interessam àqueles que as produzem ou para as pessoas, órgãos, instituições, publicações e Governos para os quais elas foram produzidas.

Em seu livro Fotografia & História, Boris Kossoy a certa altura nos diz que “É a fotografia um intrigante documento visual cujo conteúdo é a um só tempo revelador de informações e detonador de emoções”.  (14) Na mesma página comenta ele que “as múltiplas informações de seus conteúdos enquanto meios de conhecimento têm sido timidamente empregadas no trabalho histórico”. Então, para não desapontar esse meu mestre e deixar claro que, não é de hoje, eu aprendi bem a lição, farei aqui uso da fotografia como suporte de enriquecimento e complemento deste artigo, para que a feira livre de Água de Meninos chegue, logo depois do próximo parágrafo, também aos nossos olhos.

Muito embora não teça detidamente sobre ela nem sequer um comentário – ela simplesmente é incluída no item “Atrações turísticas” de forma generalizada -, o longo verbete sobre Salvador presente no volume XXI da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros lançada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1958, (15) exibe, entretanto, nada menos do que oito fotografias em preto e branco, cujo fotógrafo (ou fotógrafos) não é mencionado, que retratam a feira livre de Água de Meninos. E essas imagens nos dão uma visão ampla de vários aspectos do que foi essa feira tão famosa e peculiar, montada que era à beira-mar, ocupando uma vasta área, recebendo mercadorias diversas oriundas principalmente da região do Recôncavo Baiano. E alguns desses registros fotográficos revelam quão volumosas eram as cargas de certos produtos como frutas e objetos de cerâmica, sugerindo, entre outras coisas, que esses eram produtos bastante procurados e comercializados tanto no atacado como no varejo.

Por ordem de aparição dessas fotografias na referida enciclopédia, na página 213 vê-se, em primeiro plano, mais de uma dezena de saveiros ancorados na beira da praia, na frente dos quais aparecem algumas pessoas na areia; ao fundo, várias barracas; e, se destacando em meio a um terreno ainda coberto de vegetação, a Igreja da Ordem Terceira da Santíssima Trindade.


Ainda que apareça sem muita nitidez em seu primeiro plano, a imagem da página 216 nos revela uma visão mais ampla do cenário ocupado por comerciantes e frequentadores da feira; são muitas, muitas barracas, saveiros e pessoas que vemos no registro, além do marzão atrás, engrandecendo a composição do olhar certeiro do fotógrafo.




O terceiro registro, que aparece na página 238, é um plano que enfoca detidamente a presença de pessoas na feira: um homem de camiseta regata é visto, à direita, carregando um cesto na cabeça; no primeiro plano vemos garrafas sobre um tabuleiro, e é bem possível que elas contivessem mel, cachaça ou as chamadas garrafadas; mulheres são vistas trajando vestidos e saias e blusas, enquanto, entre elas, alguns homens surgem metidos até em paletó; lá no alto, de perfil, avista-se um homem que aparenta ser um guarda ou policial pelo traje e o chapéu que enverga; há muitos montes de bananas nessa fotografia e também o que eu presumo que seja coco seco; e um rapazote – talvez um menino ainda – aparece de costas para o observador vestindo calça e camisa bem no centro dessa que é uma bela fotografia.




A imagem publicada na página 251 nos mostra bem de perto um saveiro repleto de mercadorias – o que mais ele traz é banana – sendo descarregadas por dois homens: o que está na embarcação, ao que parece mirando a lente do fotógrafo, traja um calção curto, exibe o torso desnudo e um chapéu – creio que de palha – na cabeça; já o homem que se encontra em terra firme, veste camiseta regata e uma bermuda, e carrega na cabeça uma saca que provavelmente estava cheia de farinha de mandioca. No canto esquerdo dessa foto vemos ainda um homem trajando calça e camisa de manga comprida se dirigindo, é bem certo, a outro saveiro.




A grande fotografia que se vê na página 252 é, de todas as que eu vi até hoje da feira livre de Água de Meninos, a que mais me impressionou, porque, ainda mais do que aquela da página 216, ela nos mostra, do alto de um morro, um panorama do mundo que era a feira que existia naquele lugar. São impressionantes não só a quantidade de barracas que ocupava o terreno, mas também todo o conjunto; a bem da verdade, aos meus olhos aquilo mais se assemelhava a um ajuntamento de moradias e não de barracas de feira. Um edifício de vários pavimentos e os navios no porto, ao fundo, contrastam com o aspecto um tanto quanto primitivo das barracas dos feirantes.




Tirada de outro ângulo e também do alto de um morro, como a fotografia anterior, a que se encontra na página 265 flagrou um trecho do terreno ocupado pela feira, exibindo, no primeiro plano, casas e ao fundo um panorama ampliado da chamada Cidade Baixa de Salvador, com seus prédios modernos e seu porto em pleno funcionamento. 





Por fim, tanto a imagem vista na página 270 como a da página 271, mostram, em grande quantidade, diversos tipos de objetos feitos com cerâmica. Algumas das peças apresentam pinturas; são cerâmicas utilitárias e decorativas; e, pelo volume da carga, é de se imaginar que elas eram bastante procuradas na feira.





Outras imagens da feira livre de Água de Meninos eu encontrei no álbum Isto é a Bahia, organizado pelo alemão baianizado Karl Heinz Hansen e lançado pela Edições Melhoramentos, de São Paulo – o exemplar que eu possuo, cujas páginas não são numeradas, se trata da segunda edição e não informa o ano de publicação. São duas fotografias em preto e branco oriundas de acervos distintos. (16) A primeira delas nos mostra um emaranhado de mastros de saveiros dominando a composição; e, mais perto do nosso olhar, aparece um cavalo – ou será um jumento? – sobre o qual foi posta uma carga que eu não consegui identificar, e, próximo ao animal, vemos quatro homens. Na segunda fotografia, que é dominada por pessoas, aparecem muitos homens – só há três mulheres entre eles, uma das quais olhando para o fotógrafo, presumo – de chapéu na cabeça, balaios de cipó e objetos de palha que parecem ser esteiras; também são vistas várias sacas e homens pesando que acredito ser feijão.






Ôxe, por que a feira acabou?!

Vimos até aqui que não se sabe – eu pelo menos não encontrei uma fonte que me desse essa informação – quando foi que a feira livre de Água de Meninos teve início mas que, enquanto ela existia, figurava como a maior e mais conhecida de toda a Bahia. No entanto, já em meados da década de 1950 as mudanças que se processavam na área da feira eram bastante visíveis. Acompanhemos com que tom Vasconcelos Maia encerrou aquele seu texto para a publicação do referido volume da Coleção Recôncavo:

Antigamente, todavia, a feira de Água de Meninos era mais bonita. Era suja da mesma maneira, o mangue fedia quando a maré baixava, os capitães-de-areia rondavam as barracas, as barracas eram as mesmas, os tipos também. A mudança está na paisagem. O diacho do progresso não metera seus pés no fundo da feira, não erguera no areial (sic) que era o leito dos amantes sem teto e o velhacouto (sic) dos meninos fugidos, esses hediondos depósitos de petróleo da Standard Oil? Antigamente a feira de Água de Meninos era mais bonita. Que será no futuro? (17)

Bem, embora não se saiba precisamente quando a feira de Água de Meninos começou; por outro lado, é sabido como e quando ela teve fim e qual foi o seu futuro.

No mais de uma vez por mim mencionado Roteiro turístico da cidade do Salvador nos é dito que a atual Praça Tomé de Souza, localizada no Pelourinho, teve como nome primitivo Praça da Feira, por ter sido o local da primeira feira da cidade: “Com o tempo, na voz correntia, ela era a Praça da Cidade, a Praça do Mercado, ainda por força da feira, Praça do Conselho, pois que, no edifício do Paço Municipal, se reunia o antigo Conselho da Câmara, Praça da Parada e Praça Rio Branco. Praça da Parada porque ali, se realizavam touradas”. (18) Curioso, não?

Consultando a Recopilação de noticias soteropolitanas e brasilicas de Luiz dos Santos Vilhena, que ele escreveu no último quartel do século XVIII, tomei conhecimento de que, por essa época, Salvador, segundo ele, não dispunha de praças de mercado. Leiamos o que ele registrou:

Não ha nesta cidade huma só Praça de mercado, mas sim huns lugares a que chamão quitandas, nas quaes se juntão muitas negras a vender tudo o que trazem, como seja Peixe, carne meya assada, a que dão o nome de moqueada, toucinho, Ballea no tempo da pesca, hortaliças, etc.

Destas quitandas ha tres em toda a cidade; huma na Praya, outra que indecentemente estava na praça ou Terreiro de Jesus, se acha hoje em huma rua chamada nova, onde ha poucas cazas e onde o Senado mandou fazer humas cazinhas para alugar ás quitandeiras, com a desgraça porem de serem tão pequenas que nenhuma as quer alugar; hé a terceira quitanda nas portas de S. Bento, onde o Senado havia mandado fazer outras cabanas que por mais espaçozas, quazi nunca ficão por alugar.

Depois que se julgou inutil a Fortaleza das Portas de S. Bento, por ficar entranhada na cidade, fez S. Magestade mercê ao Senado daquelle largo para que nelle se fizesse huma Praça de Mercado; o certo porem he que a cidade athé o prezente caresse dela. (19)

Será que por esse tempo em que escreveu o arguto Luiz dos Santos Vilhena não existia na capital baiana nem sequer uma feira livre? E para onde é que seguiam as mercadorias todas vindas do Recôncavo? Será que, além das ditas quitandas e de um possível comércio feito diariamente pelos tripulantes das embarcações quando elas atracavam no porto, existiam vendedores que saíam pelas ruas anunciando a plenos pulmões a dúzia de ovos, o quilo de farinha e a palma de banana em seus pregões ouvidos ao longe? É bem provável que sim, porque essa prática era muito comum em várias cidades brasileiras desse tempo e mesmo de depois.

Retomemos o fio de nossa meada, para que não nos prendamos a indagações e suposições.

Tendo em vista que, ainda que atrapalhasse de alguma maneira as obras de ampliação do Porto de Salvador, a antiga Feira do Sete era removível, quer dizer, as suas barracas e os seus bancos eram armados e desarmados, deixando livre o local. Agora o mesmo não se via no terreno – e ele também era um destino das obras de transformação da zona portuária – onde comerciantes da finda Feira do Sete se estabeleceram dando origem à Feira de Água de Meninos, porque não demorou para que eles, como foi visto, começassem a ocupar a área da enseada de modo fixo, montando barracas que serviam tanto para o comércio como para moradia. E isso, com o decorrer do tempo, configurou-se como um grande problema para as autoridades empenhadas em dar prosseguimento àquelas obras. Deste modo, ressalta Eduardo Gantois, a feira livre de Água de Meninos se tornou um “problema político” porque social “já era há muito”. (20)

De acordo com Eduardo Gantois a Prefeitura Municipal começou a negociar com os feirantes ainda na década de 1950:

Há registros que em 1959 houve um acordo entre as Docas, Prefeitura, sindicato dos Feirantes e Capitania dos Portos para uma possível transferência da feira para outro local, provavelmente na Enseada de São Joaquim.

O acordo não teve sucesso [...] Em 1960, novo ataque dos poderes constituídos. “Fica proibida a construção de novas barracas”. O que foi feito, está feito. Agora, parem! (21)

Diz-se que a transferência da feira livre para São Joaquim não era um ponto pacífico nesse litígio: o então presidente da Companhia Docas, George Humbert, apoiava a transferência da feira, mas o prefeito Heitor Dias não, tendo ele chegado mesmo a declarar que se as barracas fossem instaladas em São Joaquim, não hesitaria em mandar demoli-las.

Mas eis que, no dia 5 de setembro de 1964, um sábado de lua cheia, quando o país já se encontrava sob a vigência de uma ditadura militar, um incêndio consumiu a famosa feira livre de Água de Meninos, encerrando, desse modo, todas as tratativas e debates em torno de sua remoção da área pela qual passavam tubulações das multinacionais Esso, Texaco e Shell. Passo novamente a palavra ao Eduardo Gantois:

Alguém afirmou laconicamente: “a lua estava cheia, porque estava sendo iluminada aqui de baixo pelas chamas de Água de Meninos”. As labaredas alcançavam a altura da Igreja de Santo Antônio Além do Carmo, no alto da colina. De todos os cantos da cidade, da própria Ilha de Itaparica, o incêndio era visto. Era um espetáculo dantesco e insólito. Vontade dos deuses ou de outras vontades? (22)

Por mais religioso e cristão que era e é, o povo baiano, pelo menos em grande parte, não acreditou que o incêndio da feira livre de Água de Meninos fora obra de um infortúnio e muito menos da providência divina. Dado o confronto de interesses que havia envolvendo a área que era ocupada pela feira, a crença quase que geral era de que o incêndio fora premeditado, criminoso. Transcorridos quase doze anos do evento incendiário, a pesquisadora Angela Ramalho Vianna apurou que, “segundo a versão mais comum, [a feira de Água de Meninos] foi incendiada por ordem da própria Prefeitura, que queria negociar o terreno onde se localizava a feira”. (23)

Epílogo

Desaparecida a feira livre de Água de Meninos, logo, como veremos em outro momento, os baianos acompanharam o surgimento da de São Joaquim, que ainda hoje existe. Aquela feira livre de Água de Meninos desapareceu apenas fisicamente, porque na memória urbana da cidade de Salvador, ela figura de modo permanente, uma vez que, como bem disse o ilustre Afranio Peixoto, “Os nomes ficam, quando as coisas se vão”. (24)



Notas

1-  Roteiro turístico da cidade do Salvador, p. 42 e 44 (na verdade, a publicação não apresenta as páginas numeradas; fui eu que as numerei).
2-  João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo. Lembranças do Brasil, p. 151. O cartão-postal foi lançado pela Litho. – Typ.  Joaquim Ribeiro & Comp.
3-  Vasconcelos Maia. “Água de Meninos”. In Feira de Água de Meninos, p. 3 (também aqui a numeração das páginas ficou por minha conta).
4-  Id. ibid. p. 4.
5-  Id. ibid. p. 5.
6-  Id. ibid. p. 6.
7-  Eduardo Gantois. “Feira de Água de Meninos” (16 de novembro de 2009) e “História da feira de Água de Meninos” (19 de maio de 2014). In www.salvadorhistoriacidadebaixa.blogspot.com.br.
8- Eduardo Gantois. “Feira de Água de Meninos” (16 de novembro de 2009). In www.salvadorhistoriacidadebaixa.blogspot.com.br.
9-  Eduardo Gantois. “Igreja de Santo Antônio e a feira de São Joaquim” (27 de fevereiro de 2011). In www.salvadorhistoriacidadebaixa.blogspot.com.br.
10-  Afrânio Peixoto. “Água de Meninos”. In Breviário da Bahia, p. 35.
11-  Id. ibid. p. 35.
12-  Id. ibid. p. 36.
13-  Id. ibid. p. 36.
14-  Boris Kossoy. Fotografia & História, p. 32.
15-  Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, vol. XXI, p. 270.
16-  Karl Heinz Hansen (org.). Isto é a Bahia!, p. 69 e 70 (numeradas por mim). Não ficou claro para mim, nessa publicação, quando, no verso da folha de rosto, mencionam-se nomes de pessoas que “contribuíram” com as fotografias que nela aparecem; fiquei sem saber se as tais pessoas são autoras dos registros ou se as guardavam e/ou colecionavam. Bom, em todo caso fica aqui dito o que vai registrado ali: a foto da p. 69 foi uma colaboração de Sascha Harnisch; e a da p. 70 de Erich Hess. Desconfio que, embora a legenda não mencione, a exemplo das dessas duas que eu publiquei aqui, a informação de que se trata da feira de Água de Meninos e sim a legenda “Feira livre – Escolhendo quinquilharias”, a fotografia que aparece na p. 94, colaboração também de Erich Hess, seja mais um flagrante da feira livre de Água de Meninos.




  Outra coisa: o alemão Karl Heinz Hansen ficou tão entranhado na terra baiana que, como artista plástico, muito talentoso, aliás, passou a assinar as suas obras simplesmente como Hansen Bahia. Querem maior prova do apego de alguém a um lugar do que esse?!
17- Vasconcelos Maia. Op. cit. p. 6.
18-  Roteiro turístico da cidade do Salvador, p. 13.
19- Luiz dos Santos Vilhena. Recopilação de noticias soteropolitanas e brasílicas, carta segunda, p. 93.
20- Eduardo Gantois. “Feira de Água de Meninos” (16 de novembro de 2009). In www.salvadorhistoriacidadebaixa.blogspot.com.br.
21-  Id. ibid.
22-  Id. ibid.
23-  Angela Ramalho Vianna. “Estratégias de sobrevivência num bairro pobre de Salvador”. In Guaraci Adeodato Alves de Souza e Vilmar Faria (orgs.). Bahia de todos os pobres, p. 192.
24-  Afrânio Peixoto. Op. cit. p. 37.


Fontes e referências

- Livros, opúsculos, etc.

Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Volume XXI. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1958.

GERODETTI, João Emilio e CORNEJO, Carlos. Lembranças do Brasil: as capitais brasileiras nos cartões-postais e álbuns de lembranças. São Paulo: Solaris Edições Culturais, 2004.

HANSEN, Karl Heinz (org.). Isto é a Bahia!. 2ª ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, s. d.

KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 5ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.

MAIA, Vasconcelos. “Água de Meninos”. In Feira de Água de Meninos. Coleção Recôncavo. Nº 14. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1955.

PEIXOTO, Afranio. Breviário da Bahia. Rio de Janeiro. Livraria Agir Editora, 1945.

Roteiro turístico da cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal do Salvador/Organização Brasileira de Edições Culturais/Liceu de Artes e Ofícios, s. d.

SOUZA, Guaraci Adeodato Alves e FARIA, Vilmar (orgs.). Bahia de todos os pobres. (Caderno CEBRAP nº 34). Petrópolis: Editora Vozes/CEBRAP, 1980.

VIANNA, Angela Ramalho. “Estratégias de sobrevivência num bairro pobre de Salvador”. In SOUZA, Guaraci Adeodato Alves e FARIA, Vilmar (orgs.). Bahia de todos os pobres. (Caderno CEBRAP nº 34). Petrópolis: Editora Vozes/CEBRAP, 1980. pp. 185-214.

VILHENA, Luiz dos Santos. Recopilação de noticias soteropolitanas e brasílicas. 1º volume. Bahia: Imprensa Official do Estado, 1922.


- Sites e blogs, etc.

GANTOIS, Eduardo. “Feira de Água de Meninos” (16 de novembro de 2009). In www.salvadorhistoriacidadebaixa.blogspot.com.br. Acesso: 09 de abril de 2018.

____. “História da feira de Água de Meninos” (19 de maio de 2014) in www.salvadorhistoriacidadebaixa.blogspot.com.br. Acesso 09 de abril de 2018.

____. “Igreja de Santo Antônio e a feira de São Joaquim” (27 de fevereiro de 2011). In www.salvadorhistoriacidadebaixa.blogspot.com.br. Acesso 09 de abril de 2018.