25 de agosto de 2018

Personas urbanas (19)


Por Clênio Sierra de Alcântara

Todo amor vale o quanto brilha
E o meu brilhava
E brilha de joia e de fantasia
O que que há com nós dois, amor?
Me responda depois
Me diz por onde você me prende
Por onde foge
E o que pretende de mim.   
                                               Acontecimentos. Marina Lima/Antônio Cícero


Eu aprendi a dizer adeus.  De verdade, honesta e sinceramente e com a maior franqueza do mundo, eu sei que, ainda que considerando a experiência de ter vivido uma situação dessas, isso não nos livra e nem evita uma reincidência, porque, se mesmo em relação a outras coisas bem comezinhas da vida prática tornamos a repetir erros, o que dizer de uma instância sob a qual não temos nenhum controle, que é o coração?

Conversando ainda há pouco com o jovem e determinado e boa cabeça José Ildo, que eu conheci na última segunda-feira num ônibus, quando eu – e também ele – voltava do trabalho, discorremos sobre um pormenor das relações afetivas que é o caso de nos vermos enredados com pessoas que sorrateiramente entram em nossas vidas nos enganando a todo o momento com a oferta maliciosa e bem servida de generosas porções de falso amor. E elas assim agem, porque intentam e por vezes conseguem com facilidade nos envolver a tal ponto que dela fiquemos, por assim dizer, sentimentalmente dependentes. E, uma vez atingido esse ponto e estágio do seu infame joguinho, elas passam a buscar subtrair de nós aquilo que materialmente desejam. Algumas criaturas dessa natureza, é bem verdade, caem fora e nos abandonam tão logo obtenham o que ambicionavam; já outras – e foi justamente uma deste tipo que atentou contra a minha pessoa, desprezando e reduzindo a nada todo o carinho e o melhor dos sentimentos que eu lhe devotava – permanecem como carrapatos e sanguessugas presas a nós e só se afastam quando, por fim, caímos na real, arregalamos muito bem os olhos, nos damos conta de que não passávamos para elas de uma possibilidade de alcance de dinheiro e/ou de algo que ele poderia lhes proporcionar, e arrancamos e as expulsamos e as tangemos para muito longe de nós, a fim de que nem em pensamento consigamos mais reconstruir as figuras de suas pessoas. E o que nos resta, claro, é o fardo de uma tristeza e de uma raiva por, muito mais do que ter sido subtraído de nós algum valor em dinheiro ou outro bem qualquer, como um par de sapatos, uma mochila, uma camiseta ou uma viagem com tudo pago, a pessoa brincou o tempo todo com o nosso sentimento, como se ele fosse uma coisinha qualquer, que alguém pode chegar e fazer com ela o que quiser. E ainda há quem acredite que dinheiro compra até amor verdadeiro.

Afora esse tipo de falso amor, existe outro que é, talvez, tão ou mais corrosivo e dilacerador quanto ele, que é o que se estabelece apenas num coração de duas pessoas que se encontram. Eu disse que talvez ele seja tão ou mais corrosivo e dilacerador quanto aquele, porque nesse, os elos não estão enganando um ao outro, não existe premeditação, planejamento ou algo que o valha, não existe maldade e nem interesse material de qualquer espécie. Existe, isto sim, cumplicidade, companheirismo, confiança, afinidade, afeto, admiração e, claro, amor, mas não necessariamente um amor carnal e afetivo do tipo que une pessoas em namoros e casamentos plenos. Ocorre que, como eu disse, às vezes esse amor carnal e afetivo é sentido apenas por um dos dois corpos que se encontraram; e a pessoa, dada a proximidade, a cumplicidade, o companheirismo, a confiança, o afeto e a admiração que o outro comunga com ela, se recusa a acreditar que a natureza do amor contido na outra pessoa seja diferente do que ela está sentindo.

Eu sei que para muita gente não é nada fácil pôr, desde o início, as cartas sobre a mesa e dizer o que é, o que sente, o que pensa e o que pretende com alguém pelo qual demonstrou algum interesse. É óbvio que aqui eu estou excluindo aquele tipo de pessoa aproveitadora sobre o qual discorri em linhas atrás. Uma coisa é agir de maneira clara e verdadeira dizendo, por exemplo: “Olha, fulano, estamos nos encontrando, mas eu não quero relacionamento sério com você”. Ou: “Entenda bem, o que existe entre nós é uma amizade colorida, nada mais do que isso”. Ou ainda: “Fulano, não fique alimentando coisas e fantasiando um namoro e tal porque eu não estou pensando nisso com você”. E até: “Não, não confunda as coisas. Eu não estou a fim de você”. E ponto.

Pode parecer um comportamento grosseiro esse que eu tenho tido. Mas eu prefiro mil vezes agir assim a enganar e/ou falsear uma situação que, eu bem sei, é dolorosa, é frustrante, é dilacerante. Demorar a perceber que o seu sentimento mais vigoroso não está sendo correspondido, implica a dizer que você não ficou atento, verdadeiramente atento, para ler os sinais que até mesmo os mais habilidosos enganadores deixam aqui e ali enquanto vão traçando suas estratégias e planos de sedução e ludíbrio.

No domingo passado eu vivenciei um desses momentos em que você chega a pensar que está de frente com uma possibilidade de felicidade. Eu fui apresentado a uma pessoa que mexeu muitíssimo comigo. Aqueles olhos muito vivos e curiosos. Aquela boca e aquele sorriso bonitos. Aquele jeito de falar e de me tocar. Aquela simpatia. Aquele entusiasmo com a vida. Aquela determinação. Aquela atenção que me concedeu... Tudo isso me encheu de uma vigorosa energia. Até que. Até que em determinado momento essa pessoa me fez saber que eu não tinha e não tenho a mínima possibilidade de conquistá-la. E, nesse exato instante – e creio que tenha ficado evidente em meu semblante a frustração que me tomou por inteiro quando eu a ouvi dizer isso -, eu pus firmemente os meus pés no chão. E recolhi o meu desejo. E carreguei tristemente o meu desencanto.

É fato, eu também sei, porque mais de uma vez eu instruí uma e outra pessoa, eu esclareci o que é que existia entre eu e elas, que tem gente que não aceita um “eu não quero”, um “não pode ser” e fica insistindo, sabe? Egoísta e cegamente a pessoa se põe a querer manter de pé uma realidade insustentável. E atrapalha a sua vida e a dela, sem querer deixar que você siga em frente. É difícil, é dificílimo para mim eu ter de lidar com pessoas que se recusam terminantemente a aceitar a crueza e o peso da verdade que lhe é apresentada.

Penso que eu não tenho mais idade para perder meu tempo contornando situações dessa natureza. Eu disse adeus a mais uma pessoa noutro dia com um definitivo ponto final, porque em absoluto eu me exauri de tanto dizer a ela que sua insistência e a minha complacência já tinham nos levado longe demais.

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