9 de fevereiro de 2019

Silvero Pereira e a plena consciência de existir sendo o que se é


Por Clênio Sierra de Alcântara

Foto: Divulgação

Silvero Pereira em ação: um ator cujo talento não cabe apenas num formato e se expande, engrandecendo de forma admirável o ofício que ele tomou como fundamento de sua vida

Montada num indefectível e provocante vestido vermelho, Gisele Almodóvar, a femme fatale serelepe que só ela, saracoteia incansável no centro do palco enquanto os convidados da noite vão tomando seus lugares nas poltronas do teatro.

Os objetos que compõem o cenário formam um universo em miniatura, um microcosmo para que se contem histórias e estórias de indivíduos marginalizados. E ali, no canto direito, Rodrigo Apolinário vai de modo preciso musicalmente regendo o background das tantas vidas que vão aparecendo naquele lugar. Gisele Almodóvar se desmonta; e, a partir desse instante, como se a borboleta voltasse à condição de lagarta e assim nos revelasse sua outra face, a sua voz passa a ser uma versão amplificada de várias vozes que foram brutalmente silenciadas e de outras tantas que conseguiram de alguma maneira suportar o peso descomunal do preconceito e da intolerância e se firmar existencialmente como pessoas ou como algum tipo de ser vivente.

Não é com meias palavras e com sutilezas e insinuações de que é feito o espetáculo BR-Trans, protagonizado pelo formidável ator cearense da cidade de Mombaça, Silvero Pereira. Não há espaço para sutilezas porque não há sutileza na brutalidade, não há sutileza na covardia, não há sutileza na rejeição e não há sutileza em assassinatos, como os das cenas projetadas no cenário nas quais vemos travestis mortos e outros sendo atacados nas ruas de grandes cidades brasileiras, porque as cidades não são lugares apenas do progresso e da civilidade; nelas também habita a selvageria. E que selvageria.

Travestis, transexuais e transformistas são o alicerce temático do texto de autoria do próprio ator. Gisele, Dani, Babi, Dandara, Tina... São inúmeras as criaturas evocadas em pouco mais de uma hora de espetáculo. Silvero Pereira aparece aqui e ali nos trazendo algum gracejo como que para quebrar o clima soturno e tremendamente pesado que a montagem estabelece.

Eu falei aqui de rejeição; e no monólogo  BR-Trans é deixado bem claro que ela é revelada na escola, na faculdade, no ambiente de trabalho, na rua e até mesmo no seio familiar desses “seres diferentes”. Homossexuais, sobretudo os efeminados, são tidos como seres diferentes pelo resto da sociedade, como objetos fora de lugar, como corpos estranhos, como coisas erradas que não podem ser vistas como pessoas exatamente e sim como algo impróprio, aberrante, imoral, inadequado, feio, inconveniente, desprezível, abjeto e digno de toda sorte de humilhações e ataques.

Luzes são acesas e apagadas ao longo da encenação como que demarcando a sutil fronteira entre a razão e a loucura, entre o bem e o mal e entre a ordem e o caos nos quais todos nós estamos inseridos. E Silvero Pereira, que não é só um excelente ator, é um verdadeiro performer, atravessa toda a apresentação de maneira muito intensa e convincente, como se,  mais do que com a arte, essa grande dádiva de nossa existência, ele estivesse tratando com a sua própria vida, com as suas próprias emoções, com os seus próprios medos, com as suas próprias fantasias, com os seus próprios delírios, com os seus próprios fios de uma esperança com a qual ele acredita poder tramar uma espécie de rede que lhe confira um mínimo de proteção. Silvero Pereira é, por isso, tão verdadeiro que a sua atuação no palco se investe de uma grandeza realmente merecedora dos mais entusiasmados aplausos.

Foi em 2017 que esse cearense de tão boa cepa começou a ser captado pelo meu radar e entrou no meu campo de interesses. Naquele ano eu o vi pela primeira vez exercendo o seu ofício de ator, atuando na novela A força do querer, de Glória Perez, exibida no horário nobre da Rede Globo, com o personagem Raimundo Nonato, que de dia era um engravatado funcionário de uma empresa e, à noite, assumia a persona do transformista Elis Miranda, cantando e fazendo caras e bocas com uma feminilidade que era para mim muito sedutora. Depois dessa sua estreia na TV, no ano seguinte ele participou do quadro Show dos Famosos, do programa Domingão do Faustão, da mesma emissora, e nele ficou ainda mais evidenciado para os meus olhos como esse rapaz tem um brilho incomum e uma presença de palco impressionante.

Na sexta-feira 1º de fevereiro, eu fui ao teatro da Caixa Cultural, no Recife, ver o Silvero Pereira. Vi-o de perto para me certificar de que ele era de verdade. Ele é de verdade. Ele é verdadeiro. E intenso. E marcante. E é sobremaneira talentoso.

Ao término da apresentação do espetáculo BR-Trans, que é um tapa na cara da hipocrisia e também um ato político e um libelo contra os assassinatos de homossexuais e toda forma de violência e de desrespeito e de humilhações que lhes são destinados por eles serem o que são e, tanto quanto isso, um clamor para que tenhamos liberdade de ser o que somos sem mascarar ou negar a nossa natureza, eu me postei ali fora para me encontrar pessoalmente com o Silvero Pereira, guardá-lo no aconchego de um abraço, beijar o seu rosto e dizer ao pé do seu ouvido da minha enorme admiração por sua pessoa, desejando-lhe um sucesso longo e duradouro.

Foto: Beto Hees

Abraço é abrigo, eu já disse uma vez; e eu abracei Silvero Pereira como mais do que um abrigo, como um agradecimento

Silvero Pereira é, seguramente, um dos atores mais completos e talentosos de sua geração.

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