13 de abril de 2019

De corpo inteiro nas ruas, recantos e praças de Serra Talhada

Por Clênio Sierra de Alcântara

Fotos: Arquivo do Autor
Igreja de Nossa Senhora da Penha: a matriz olha para o centro da cidade abençoando Serra Talhada

No indispensável Dicionário corográfico, histórico e estatístico de Pernambuco, do diligente Sebastião de Vasconcellos Galvão, quem buscar o verbete sobre Serra Talhada, cidade que dista a cerca de 381 km do Recife, deve recorrer ao antigo nome do lugar, Vila Bela, visto que a referida obra veio a lume pela primeira vez em 1927, ou seja, onze anos antes de o município passar a ser chamado de Serra Talhada. Propriamente no verbete “Talhada”, ele escreveu assim:  “Serra – situada no municipio de Villa Bella a 3 kilometros ao norte da séde; é curiosa pela forma esquisita, talhada de cima a baixo, caprichosamente, de modo a formar uma verdadeira curiosidade da natureza"(Sebastião de Vasconcellos Galvão. Dicionário corográfico, histórico e estatístico de Pernambuco. 2ª ed. Recife: CEPE, 2006, p. 143). 




Da varanda do Hotel Cactus uma visão privilegiada da serra que é um dos cartões-postais da cidade e que, inclusive, lhe dá nome



Conta-nos esse incansável pesquisador que a localidade começou a florescer em 1700 a partir de uma fazenda de criar – possivelmente de criação de gado bovino e caprino, creio – que pertencia a um português chamado Agostinho Nunes de Magalhães. A propriedade tinha por nome Serra Talhada, “pela forma da montanha próxima, cortada a prumo” (Op. cit. ,p. 214); e na fazenda, contando com o auxílio popular, ergueu uma igreja em louvor a Nossa Senhora da Penha. Não há indicação de como e nem quando os primeiros habitantes chegaram a essas terras. Sabe-se, contudo, que o local era um centro de grande número de estradas que se cruzavam: a da ribeira do Rio Pajeú, à margem do Rio São Francisco, a do Rio Cariri Novo, no Ceará, e a do Rio Piancó, na Paraíba, entre outras. Não se pode esquecer de que, como bem destacou Sebastião Galvão, a facilidade de acesso à água e a própria construção do prédio eclesiástico, eram um enorme atrativo para um povo profundamente religioso, de modo que “tudo favoreceu naquele sittio, a formação de um nucleo que se fez povoado e cresceu, gradativamente” Op. cit., p. 215).



Coreto na Praça Sérgio Magalhães


Fachadas antigas ainda resistem à fúria modernizante em Serra Talhada






Foi a Lei provincial nº 52, de 18 de abril de 1838, que desmembrou-a do território de Flores, dando-lhe a categoria de freguesia – a freguesia de Nossa Senhora da Penha da Serra Talhada -, tendo sido provida canonicamente e instalada pelo 1º Vigário, o Padre Felix Marques Bacalhau.

Dez anos depois, quando eclodiu na então província de Pernambuco a chamada Revolução Praieira, que se alastrou pelo interior, organizou-se no município de Flores, do qual Serra Talhada era distrito, uma reação contra os insurretos. E, de acordo com o verbete da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, foi em decorrência de tal episódio que se estabeleceu o município de Serra Talhada sob a denominação de Vila Bela, concretizado pela Lei provincial nº 280, de 6 de maio de 1851, que transferiu para o povoado daquele nome a sede do município de Flores, tendo sua instalação sido verificada em 9 de setembro do mesmo ano. A sede municipal obteve foros de cidade em virtude da Lei estadual nº 991, de 1º de julho de 1909.









Nesta e na foto seguinte outros aspectos da Praça Sérgio Magalhães





Conforme vai dito na Divisão administrativa de 1911 e o quadro de Divisão administrativa concernente a 1933, contido no Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, Vila Bela possuía três distritos: o da sede; e os de São Francisco e São João do Barro Vermelho – este último, em 1911, era denominado apenas de Barro Vermelho. Nos quadros de divisão territorial datados de 31 de dezembro de 1936 e 31 de dezembro de 1937, bem como o anexo ao Decreto-lei estadual nº 235, de 9 de dezembro de 1938, àquele quadro foi acrescentado o distrito de Sítios Novos.












Ocorreu que, ainda em 1938, por força do Decreto-lei estadual nº 235, de 9 de dezembro, que estabeleceu a divisão territorial para vigorar no quinquênio 1939-1943, o município de Vila Bela passou a denominar-se Serra Talhada, composto pelos distritos de Serra Talhada, Bernardo Vieira, Pajeú e Tauapiranga, nomes dados, respectivamente, aos antigos distritos de Vila Bela, Sítios Novos, São Francisco e São João do Barro Vermelho. Deve ser dito ainda que a cidade de Vila Bela sofreu também alteração toponímica para Serra Talhada em virtude do Decreto-estadual nº 336, de 15 de junho de 1939.





Ruas limpas foram um dado marcante que eu observei ali














A Divisão territorial judiciário-administrativa do Estado de Pernambuco estabelecida pelo Decreto-lei estadual nº 952, de 31 de dezembro de 1943, que vigorou no quinquênio 1944-1948, conservou o município com a mesma composição distrital fixada para o quinquênio anterior.

A Lei municipal nº 24, de 2 de dezembro de 1948 criou o distrito Caiçarinha da Penha. Segundo a Lei nº 1819, que dispôs sobre a Divisão administrativa e judiciária do Estado, o município aparece composto pelos distritos de Serra Talhada, Bernardo Vieira, Caiçarinha da Penha, Luanda, Pajeú e Tauapiranga. A comarca foi criada pela Lei provincial nº 1057, de 7 de junho de 1872. Nos quadros de divisão territorial datados de 31 de dezembro de 1936 e 31 de dezembro de 1937, bem como no anexo ao Decreto-lei estadual nº 92, de 31 de março de 1938, o município de Vila Bela aparece como termo judiciário da comarca do mesmo nome, a qual era formada pelos termos de Vila Bela e Belmonte. Essa mesma situação é verificada na Divisão territorial fixada pelo Decreto-lei estadual nº 235, de 9 de dezembro de 1938, para o quinquênio 1939-1943. De acordo com o Decreto-lei estadual nº 952, de 31 de dezembro de 1943, que fixou a Divisão territorial judiciário-administrativa do Estado, em vigência no quinquênio 1944-1948, a comarca de Serra Talhada perdeu o termo de São José do Belmonte, que foi desanexado para constituir a comarca de mesmo nome. Deste modo, no referido quadro, Serra Talhada passou a abranger apenas o termo-sede.

Acompanhando a descrição de todos esses decretos e leis, verificamos quão dinâmicas eram as divisões territoriais e administrativas, ora expandindo, ora apequenando os espaços que compunham os municípios.




















O crescimento urbano de Serra Talhada seguiu a dinâmica de uma economia que era quase toda ela baseada na agropecuária. O surto de “modernização” e “progresso” da cidade propriamente dita, verificado, ao que parece, a partir da década de 1940, quando inúmeros imóveis foram demolidos para abrir ruas - em 1953, por exemplo, algumas edificações foram postas abaixo para que fosse aberta a Rua Agostinho Nunes Magalhães, ligando a Praça Sérgio Magalhães à Rua Enock Ignácio de Oliveira - será o marco de um, digamos, início da perda de sua memória urbana, porque, afora essas demolições, se verificara um acentuado processo de descaracterização de inúmeros prédios, sepultando características arquitetônicas do passado.


















Nesta e nas duas fotos seguintes vemos o Mercado Público da cidade






Segundo um levantamento concebido para ser publicado na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, aparecida em 1958, Serra Talhada que, por esse tempo, era servida pela Rede Ferroviária do Nordeste, que a ligava à capital, dispunha de 31 logradouros, sendo oito pavimentados, um arborizado, um ajardinado e um arborizado e ajardinado. Havia setecentas casas dispondo de energia elétrica; e era uma realidade a iluminação pública. Existiam uma agência dos Correios e Telégrafos e uma do Banco do Brasil. Registrados na repartição competente contavam-se vinte e dois automóveis, oito jipes, seis camionetas e setenta e três caminhões. O comércio varejista contava com vinte e quatro estabelecimentos; e existia uma cooperativa de crédito. Eram duas as unidades de saúde: o Hospital Regional Agamenon Magalhães; e o Posto de Puericultura Ageu Magalhães. A cidade dispunha também de uma biblioteca cujo acervo não chegava a mil volumes, um cinema – o Cine Arte -, doze hotéis e uma pensão. No ano de 1956 foram elencadas uma unidade de ensino pré-primário, trinta e cinco de ensino primário fundamental comum, com 1889 alunos matriculados, vinte do ensino supletivo e duas de ensino secundário (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, vol. XVIII, p. 278. As informações  referentes a decretos e divisões administrativas também foram colhidas nessa obra).

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Foi na tarde do dia 26 de novembro de 2015 que eu pus os pés pela primeira vez na tão falada e quente terra do cangaceiro Virgulino Ferreira, o Lampião, e ali passei quase quarenta e oito horas.



















Hospedei-me no Hotel Cactus, na principal praça do lugar, a Praça Sérgio Magalhães. E, como é costumeiro nas andanças que eu faço nessas viagens de conhecimento de sítios urbanos, viagens essas que eu digo que são muito mais de formação do que de puro e mero prazer e desfrute, aproveitei para andar de um lado para outro daquela cidade, buscando ver suas formas, seus recantos, suas ruas, seus prédios, seus espaços vazios e sua gente.






Bem pertinho do centro da cidade o esgoto correndo a céu aberto. O mundo rural está bem próximo do espaço urbano










A tal estátua do Cristo






Da varanda do hotel eu tinha uma visão privilegiada da tal Serra Talhada, de granito, origem do nome da cidade, e que é uma ramificação do sistema de montanhas da Borborema. A serra domina de modo soberano a paisagem do lugar; e é algo bonito de se ver. Eu queria ter tido a oportunidade de poder avistar a cidade lá do alto daquele monte majestoso.

A mim me pareceu não muito convidativa e nem acolhedora a Praça Sérgio Magalhães para passeio e nem para permanência. Na ocasião de minha visita – e lá se vão quase cinco anos – eu vi um mobiliário acanhado, um coreto que resistiu às investidas modernizantes e um paisagismo pobrezinho. Mas uma coisa merece ser ressaltada: tanto essa praça como outras que eu conheci na cidade estavam bem lipas e cuidadas. Limpas, aliás, como também encontrei a maioria das ruas pelas quais eu andei.

Em tempos idos o entorno da Praça Sérgio Magalhães concentrava um expressivo casario remanescente em grande parte dos anos iniciais do século passado e que foi pouco a pouco sendo transformado completamente; atualmente podemos encontrar poucas construções que conservam fachadas antigas, porque, também em Serra Talhada, a modernização urbana consistiu em pôr abaixo prédios e construções que remontavam a outras épocas, como se eles nada dissessem da memória e da história da cidade, o que é lamentável.






Os trilhos dos trens que um dia percorreram Serra Talhada em direção ao Recife: abandono total




Fui até a Igreja de Nossa Senhora da Penha, que não é a primitiva que um dia existiu; a outra foi demolida para dar lugar a que hoje existe. Esse prédio eclesiástico é um dos mais significativos de toda a urbe; e, ao seu redor, se encontram casas e construções outras que são exemplares que resistiram à fúria demolidora/renovadora que chegou à cidade décadas atrás.

Na manhã do meu segundo dia de estada em solo serra-talhadense, eu deixei o hotel às 09:30 h para continuar flanando pelo território urbano tendo até ido um pouco para fora dele.
















Andei por ruas dominadas por estabelecimentos comerciais e também por outras onde predominavam residências. Aqui e ali o antigo nome do município, Vila Bela, que hoje dá nome a um dos bairros da cidade, aparece em fachadas de empreendimentos do comércio.
À medida que eu caminhava por entre um e outro logradouro a triste percepção de perda de identidade arquitetônica que marcara o meu pensamento na avaliação do entorno da Praça Sérgio Magalhães não se estendeu para outros espaços da cidade. Pelo contrário, eu vi que existe ali um grande número de imóveis que são, por assim dizer, testemunhos de parte do passado distante  da cidade.








Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos









Andei, andei, andei... Aos meus olhos era tão feio aquele monumento Bom Jesus Ressuscitado que eu tratei logo de desviar a vista dele. Passeei pelo bairro Alto do Bom Jesus. A precariedade dos subúrbios fica bastante evidente assim que se deixa o centro da cidade. Os trilhos do trem ali abandonados eram/são também eles marcos e símbolos de outra época. Casinhas humildes. Esgoto correndo a céu aberto. A miséria querendo impor a sua vontade sobre a vida das pessoas...













No calor intenso do dia e na fria noite de Serra Talhada, onde uma lua deslumbrante encheu de boniteza o céu daquele lugar, eu outra vez tive a oportunidade de conhecer mais um pedaço de chão, de caminhar por ruas e espaços outros nos quais eu certamente pouco de mim deixei e dos quais comigo eu trouxe tanto em pequenas partes talhadas para guardá-las na lembrança e no meu corpo inteiro.



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