A literatura, a música e a
pintura figurativa - nesta ordem - compõem a tríplice corrente da arte que
enchem a minha vida de uma satisfação plena. Dentro do universo da história da
arte eu sou extremamente fascinado pelos estudos de exegese de pinturas
figurativas que nos lançam em interpretações, decifrações e também especulações
a respeito de uma dada obra. Por que o céu em quadros do Franz Post, apesar de
retratarem paisagens tropicais, não contém a luminosidade solar das terras
deste nosso Novo Mundo? Será que algum dia iremos nos deparar com a elucidação
do enigma da Mona Lisa, do Leonardo Da Vinci? Curioso é que nessa jornada de
reconhecimento de pinturas cada um de nós, amantes dessa arte,
independentemente do lastro livresco que tenha ou não nesse quesito, põe-se a
também especular sobre aquilo que está vendo num quadro com um furor
interpretativo que não cessa nunca.
Na tarde do último dia 15 de
março, dia esse em que Pernambuco celebrava o nascimento de um dos seus filhos
mais ilustres e gloriosos, o mestre de mestres e sociólogo e historiador e
antropólogo e escritor e pintor Gilberto Freyre, a quem eu fui reverenciar num
evento ocorrido na manhã daquela sexta-feira na Fundação Joaquim Nabuco, no bairro
de Casa Forte, eu estava a flanar pelo Recife – e naquele momento específico na
Rua da Aurora – quando, examinando os títulos disponíveis no sebo do meu
camarada Paulo Pereira, me deparei, entre os livros, com um pequeno retrato do
Carlos Drummond de Andrade e fiquei encantado com o misto de singeleza e
alegria que aquela pintura irradiava.
Estando com a tela em mãos
perguntei ao Paulo Pereira como eu poderia entrar em contato com o artista; e
ele de pronto me repassou o cartão de visita do Eziel Batista dos Anjos; e eu,
também sem demora, procurei me comunicar com o tal sujeito primeiro falando ao
telefone e, depois, via WhatsApp.
Conversa vai, conversa vem eu lhe encomendei quatro telas na mesma dimensão da
do retrato do poeta mineiro e igual técnica nele utilizada, acrílica sobre tela.
Para ficarem ao lado do autor de “E agora, José?” eu pedi ao Eziel dos Anjos
que retratasse alguns dos autores que fazem parte do meu oratório literário:
Lima Barreto, Clarice Lispector, Manuel Bandeira e Augusto dos Anjos.
É muito interessante notar
nos trabalhos que o Eziel dos Anjos desenvolveu até agora, tanto nas pinceladas
com tinta acrílica quanto nas com tinta a óleo, que, em que pese, digamos
assim, a sua “formação” através de um grande fascínio pelos gibis de
super-heróis e pelas revistas em quadrinhos em si – fascínio esse surgido na
adolescência -, esse gosto e essa trajetória formativa autodidata não
conseguiram enrijecer o traço dele; não se enxerga em suas produções a rigidez
de formas humanas que se vê comumente nos desenhos de super-heróis que, por
serem sobre-humanos, sempre ou quase sempre nos são apresentados em formas vigorosas e
musculosas. Ao contrário das formas rígidas o que se vê nas produções desse artista
recifense são uma suavidade e uma delicadeza que beiram o lirismo. A pintura
figurativa do Eziel dos Anjos encerra em si, por vezes, o encontro da forma com
a cor numa atmosfera de sonho, ainda que ele se empenhe em ser fiel ao real ao
concebê-la.
Acredito que os artistas,
quando não fazemos concessões de nenhuma ordem em nossa arte, ainda que sejam
apenas para nós mesmos, deixamos de conhecer possibilidades outras de nós, uma
vez que nos prendemos a esquemas, digamos, consagrados e/ou consolidados e nos
afastamos da possibilidade de adentrar no outro lado de algo ou no avesso do
avesso do pequeno ou grande mundo particular que porventura criamos para nele
habitarmos.
Foi numa morna tarde outonal
recifense que eu conheci pessoalmente o Eziel dos Anjos. Sob as sombras das
árvores do Parque 13 de Maio, no bairro da Boa Vista, área central da capital
pernambucana, esse artista que, no último dia 23 de maio, completou 45 anos de
vida, entregou as minhas encomendas e me concedeu a entrevista que vocês lerão
a seguir.
No artigo “Sociologia,
literatura e arte”, publicado pela revista O
Cruzeiro em 12 de maio de 1951, o autor de Região e tradição perguntou ao seu público leitor: “Que é então que
dá permanência ao clássico em literatura como em pintura, escultura ou
arquitetura ou música?”. E foi ele mesmo quem respondeu: “Sua capacidade de
resistir a influências simplesmente de época. A modas ou caprichos de momento”.
Eis aí uma lição do meu mestre Gilberto Freyre que eu espero que acompanhe o
fazer artístico do Eziel dos Anjos ao longo do seu vital exercício pictórico,
de modo que, em algum momento, surja nele uma identidade que seja absolutamente
própria e só dele, essa aura que reveste a criação artística e faz com que ao
mirarmos um dado objeto, uma dada expressão de arte, reconheçamos de imediato a
sua autoria e sem hesitar dizemos: “Isto é um Vicente do Rego Monteiro!”, “Isto
é um João Câmara!”.
Vamos à entrevista.
Eziel
quando foi que você começou a desenhar e a pintar?
Olha, eu comecei já na
adolescência, influenciado por gibis e revistas em quadrinhos. Como lá em casa não
tinha televisão, meus pais eram evangélicos bem radicais, eu passava as minhas
horas de ócio desenhando, né? Comprava aquelas revistas em quadrinhos. E aí fui
pegando toda a história dos desenhos; toda uma anatomia dos super-heróis. Pra mim
foi uma escola e é uma escola até hoje, como eu sou autodidata. Aí tem sido
essa a grande influência. É claro que hoje em dia eu já estudo algumas
técnicas, já vejo umas coisas, mas o meu princípio foi esse.
Você
então não tem formação na área?
Não, eu sou autodidata, não
tenho formação. Tudo é intuitivo. Através das coisas que eu via na infância e
na adolescência. Não fiz nenhum curso. É tudo natural mesmo.
Do
universo dos quadrinhos quais são os seus personagens e desenhistas favoritos?
Tem o Stan Lee. Pra mim ele
é o principal desenhista. Eu gostava muito de desenhar as figuras que ele
produzia, que na época eram o Homem-aranha, o Batman. E eu admirava aqueles
movimentos e tentava acompanhar tudinho no caderno, inclusive, eu criava até
estórias com minha autoria. E isso foi muito bom. É uma recordação boa.
Tem
algum tema do qual você mais gosta de desenhar e pintar?
Olha, o tema que eu mais
gosto é paisagismo. Monumentos, casarios antigos. O paisagismo é uma área que
eu gosto de brincar com a paisagem. Eu vejo uma paisagem assim que me encanta,
eu já penso logo em chegar em casa e retratar aquilo, e transferir pra tela. É o
meu tema favorito.
Sei
que você também faz trabalhos por encomenda. Você vive desse trabalho?
Não, não. Até agora não. Queria
eu. Meu sonho é viver só dependendo disso. Mas eu tenho outras coisas. Eu sou
músico também. Trabalho em pintura predial. Toda a pintura predial,
emassamento, que é a minha profissão mesmo, pintor predial. E trabalhei na área
de música bastante tempo, ainda sou músico. Mas tô começando a tomar gosto
agora, tentar ver se consigo dar os meus primeiros passos na área da pintura em
tela. A gente no Brasil tem que ser muito versátil, tem que navegar em vários
mares diferentes.
Há
algum nome da história da arte que você admira?
Olha, tem muitos, tanto os
pintores antigos, tipo [Paul] Cézanne, o próprio Leonardo Da Vinci. Tem um que
eu tava pesquisando ele ultimamente chamado Thomas Cole, que é um inglês
naturalizado americano, que ele tem uma pintura muito boa, muito expressiva
assim; e os quadros dele retratam uma história, toda uma história, do começo ao
fim, do ser humano. Fora isso, dos pintores contemporâneos tem muitos; tem o
Kevin Hill, que é um pintor de fora; tem o Michael James, que retrata
paisagismo. E por aí vai. Fora os grandes, tipo [Pablo] Picasso. Daqui, tem o
Cândido Portinari, Tarsila do Amaral. É uma gama de várias referências boas que
eu pesquiso.
Como
você faz para promover e divulgar o seu trabalho?
Eu estou divulgando muito
através de redes sociais, através do Instagram.
Eu tenho o meu Instagram, tem o Facebook. Tem a coisa do boca a boca
também (risos). E os contatos via amigos. E tentando agora através de
exposições; tô acabando uma exposição agora, aqui no Recife, num espaço chamado
Caldo de Boteco [na Rua da Soledade, nº 58, na Boa Vista], é um
bar-restaurante. A gente tá terminando a exposição agora, dia 11. Vou tentar
outras exposições. Isso tudo é meio de divulgação.
Você
está participando de uma exposição neste momento. Já pensou em participar de
concursos de desenhos e pinturas?
De concurso eu nunca participei
e, talvez, nem participe, porque eu tenho aversão a disputas. Eu não entro em
disputas. Acho que as coisas têm que acontecer naturalmente. Essa coisa de quem
ganha e quem perde, entendesse?, é uma coisa muito relativa. Eu acho que às
vezes o camarada que perde tem um nível até melhor do que muitos que ganham. Eu
já vi isso com os meus próprios olhos. Aí eu sou assim meio, não tenho muita
afinidade com concurso, com disputa e tal. Mas pra quem gosta é legal, porque é
uma oportunidade a mais, né? Mas eu quero que as coisas, pra mim, pelo menos,
aconteçam naturalmente, que alguém veja o meu trabalho e reconheça que ali
existe um artista, existe uma pessoa que tá na luta também.
O
que é que inspira o artista Eziel dos Anjos?
O que me inspira é a vida, né? É a visão (disse isso alteando a voz, enfatizando). É feito Jesus disse: “Os
olhos é a candeia do corpo”. E tudo o que entra, que os olhos, que a sua visão
capta do exterior pra mim é uma inspiração. O colorido do dia, as árvores, um
pássaro no céu voando, o mar e a vida em geral. Tudo isso aí é uma base muito
forte na minha inspiração, a natureza em geral.
O
Recife é uma cidade inspiradora para você?
Com certeza. Eu tenho o
maior orgulho de morar no Recife, de ter nascido aqui. Apesar de muitas vezes o
artista aqui ser incompreendido, eu tenho muito orgulho da minha cidade. Inclusive,
eu já tive até oportunidade e convites de amigos pra ir pra fora. Uns amigos
chamam: “Vem te embora”. Nos Estados Unidos tem um amigo, na Noruega, no Canadá
também tem um amigo. Um sobrinho meu tá na Irlanda. Mas, assim, eu não me vejo
morando fora. Acho que se eu morasse fora, se eu visse uma imagem do Recife, do
Brasil, eu acho que eu chorava na hora. Apesar dos pesares, que a gente luta
pra caramba aqui, é tudo difícil, mas eu amo a minha cidade, é uma cidade muito
linda, inspiradora; e eu me orgulho dessa inspiração que eu tenho aqui no
Recife.
Você
convive com outros artistas, seja pessoalmente, seja através das redes sociais?
Eu estou começando a minha
divulgação. Eu convivo com poucos artistas. Tô começando a caminhar agora. Teve
essa exposição que eu tô em parceria com a minha esposa e com outro artista
plástico, Givaldo Ferreira, que é um pintor bem interessante. Rosângela Araújo,
minha esposa, e Givaldo. Tem outro rapaz, também de Olinda, que foi da minha
época, Alberto. Tenho poucos contatos. Espero, assim, me infiltrar melhor,
fazer um intercâmbio. Tem o Zé Som, um artista já conhecido em Olinda, também. É
muito intercâmbio com a arte, com pessoas que falam a mesma linguagem.
Como
você se enxerga como artista?
Eu me enxergo como um ser
humano que tá tentando cada vez mais evoluir. Tentando evoluir na minha arte e
como ser humano também. E cada dia mais galgando um espaço, tentando ocupar um
espaço e evoluindo, né? Evoluindo no dia a dia, na arte, na técnica. E eu vejo
assim, a minha vida como uma evolução: cada dia aprendendo coisas diferentes.
Aqui o Drummond que eu encontrei entre os livros do Paulo Pereira; e, logo abaixo, as telas que eu encomendei: Clarice Lispector, Lima Barreto, Manuel Bandeira e Augusto dos Anjos |
O
que é fazer arte para você?
Fazer arte é você
transferir... Tem uma frase muito interessante que eu guardo no meu coração que
Eric Clapton, guitarrista de blues, falou que ele como um branco, ele tocava
tão bem um blues, que era resumido a negros, e ele simplesmente falou assim;
que ele simplesmente coloca o coração na ponta dos dedos para tocar, né? Quer
dizer, a gente que é artista, em tudo o que a gente fizer tem que colocar o
coração. Você coloca o coração, coloca a sua alma naquilo e as coisas vão
fluir; com certeza vai sair coisas boas.
Além
do valor comercial você atribui algum outro à sua arte?
Não, acho que a arte, além
do valor comercial, eu acho que o artista ele deve fazer o que gosta. Agora se
surgir o lado das vendas, da ascensão, acho que vai acontecer naturalmente. Mas
eu não vejo, assim, eu não entendo o artista que ele começa a fazer uma
arte pensando em bens monetários, em vender. Eu acho assim: o verdadeiro
artista não pensa primeiro no dinheiro, porque aí eu acho que a arte não flui,
entendesse? Eu acho que o artista ele deve pensar primeiramente na arte, no que
ele vai produzir ali. Agora, se surgir algum lucro ali, através disso, vai
surgir depois, pelo trabalho esboçado por ele, pelo bom trabalho. Acho que é
isso aí, a partir disso.
Um artista da atualidade!!! Amei todos!!! Certamente é uma viagem neste mundo fantástico sobre tela.
ResponderExcluirEsse é meu tio, minha inspiração na arte. Parabéns pela matéria e muito sucesso a esse artista tão humano.
ResponderExcluirA humildade é marca registrada desse homem "humano-falho" que se chama Eziel. O destino foi muito bom por ter me feito vizinho desse cara. Vitória na guerra!
ResponderExcluirGrande ser humano acima de tudo, sempre combinei de forma inconsciente da forma de pensar de Eziel, realmente é um brinde a arte de hoje ter pessoas como ele no front.
ResponderExcluirAdmiro seu olhar Eziel,a arte está dentro de nós. E você sabe muito bem transferir isto com excelência.
ResponderExcluirQuero uma tela."Pássaro"