1 de junho de 2019

Personas urbanas (22)

Por Clênio Sierra de Alcântara

Falar a verdade me faz tão bem
Assim, sem maldade, nunca te amei
Você foi mais um caso
Que um dia, por acaso, transei [...]
Agora, dá um tempo!
Foi coisa de momento, não mais.
                            Coisa de momento. Renato Terra/Claudinha/Gastão Lamounier Neto



Tesão, compaixão e alguma indiferença. Eu passei bem pertinho dele. E o que eu vi alegrou os meus olhos como um fogo de artifício, como aquelas centelhas de luz e de cor que enchem a nossa vista de encantamento e nos deixam na ânsia de que elas constantemente se repitam para que o estado de êxtase que nos invadiu se prolongue o máximo de tempo possível. Atravessei a rua, parei na esquina e voltei a olhar para aquela criatura que ignorava completamente a minha existência, de modo que não poderia jamais saber que despertara, que disparara, melhor dizendo, o gatilho do tesão em mim. Parado ali, naquela esquina, eu era quase que todo uma pulsação de desejo, como se a força latejante do meu sexo fosse a minha fonte mais poderosa e vital, e, por ser vital, extremamente necessária.

Naquele dia eu não fui à capital me entregar à flânerie. Não, eu tinha compromissos, eu tinha tarefas a cumprir, eu tinha coisas para resolver. Sendo assim, me afastei daquela esquina da Rua do Riachuelo com a Rua da Soledade e fui cuidar da minha vida.

Devo-lhe confessar, caro leitor, que, habitualmente, ao ser capturado pelo desejo que alguém em mim desperta, de pronto eu me ponho a imaginar como seria um encontro íntimo com a tal pessoa; se os nossos corpos iriam se alinhar bem; se o beijo – essa prática que tanto me anima – seria no mínimo gostoso; se haveria química entre nós; e, claro, se o encontro sexual ocorresse e fosse realmente bom para ambas as partes, ele tornaria a se repetir noutra ocasião. Parece coisa de maníaco, de predador compulsivo, mas é assim que funciona comigo. E eu não fico nem um pouco ruborizado ao contar isso aqui.

Resolvidas todas as obrigações do dia, eu decidi refazer o caminho carregando a esperança de que os meus olhos seriam novamente tomados por aquele ser que os encantara. Atravessei aquelas ruas. Busquei outros recantos. E eis que eu me deparei novamente com a criatura. Inevitavelmente o meu sexo pulsou vigoroso. Ela estava comercializando água mineral. Sentei num banco do Parque 13 de Maio e fiquei a mirar o deslocamento dela oferecendo a um e a outro o seu produto. E ela veio vindo, veio vindo em minha direção para também a mim ofertar uma garrafinha de água. Vi de muito perto uma face que denunciava inconformidade com aquela situação e alguma tristeza. Ensaiei uma puxada de conversa, mas resolvi não ir além. E segui o rumo da minha casa. Há momentos em que a razão é imperiosamente absoluta e conduz os nossos passos sem dar margem para hesitações.

Menos de uma semana depois estava eu de volta ao Recife. Já era noite, quando eu lá cheguei. E eis que, ao buscar um cantinho no Parque 13 de Maio eu onde pudesse ler sossegadamente, eu me vi novamente ao lado daquela criatura. A chama novamente se acendeu. Seu olhar perdido não era nada convidativo para o início de uma conversa, mas, ainda assim, eu resolvi que não custava nada tentar. Iniciamos um bate-papo. Ouvi o relato de uma vida em parte destroçada. Digo em parte porque a mim me pareceu que existia ainda ali algo firme, uma coluna de sustentação que se mantivera de pé e pela qual se poderia recomeçar a reconstrução da morada de si mesmo. Ofereci-lhe abrigo para aquela noite, e ela aceitou.

Sabe todo aquele quadro de fantasia que eu descrevi em linhas atrás? Quase nada daquilo se concretizou ao meu contento: nossos corpos mal se encontraram; e não rolou sequer um beijo, porque, segundo ela me disse, “nunca gostou disso”. Tudo bem, cada um tem seus gostos. Contrariando ainda o que eu pensara, vieram outros encontros após o daquela segunda-feira - às vezes eu também aposto na mudança para melhor. E, embora o sexo continuasse insatisfatório e tudo o mais entre nós dois configurasse tão somente – como é que eu posso dizer? – como uma necessidade de ter com quem dialogar intimamente a respeito de frustrações, precariedades e pisadas na bola, o despertar dos meus sentidos me fez perceber que o que estava me prendendo àquele ser era verdadeiramente não amor, paixão, tesão ou algo que os valesse; era, isso sim, um sentimento de compaixão o que estava me ligando a ele; e o pior de tudo nessa história era que a criatura estava se aproveitando disso e do meu espírito de solidariedade para querer arrancar de mim auxílios materiais e financeiros, dizendo, imagine, que gostava de mim e que me queria bem, e sempre e sempre me pedindo uma coisa e outra, enquanto fazia comigo um sexo protocolar, insosso e sem entusiasmo, típico de quem se prostitui.

Eu não tenho nada contra garotas e garotos de programa. Muito pelo contrário. Adoro o senso prático das coisas de uma maneira geral, o que inclui sexo, claro; e penso que, da mesma forma que entramos numa loja de conveniência para atender necessidades urgentes e imediatas, quem o quiser e puder se satisfaz com um ou com uma profissional do sexo. Simples assim; simples e muito prático. Ora, se nós pagamos para ter comida na mesa, para ter acesso à água que bebemos, para ter fornecimento de energia e tudo o mais, então por que não pagar para transar com alguém? Que problema há nisso? Eu já paguei a pessoas de ambos os sexos para desfrutar de momentos de grande intimidade com elas. Nem sempre esses encontros foram plenamente prazerosos para mim. Mas desde quando os encontros íntimos são sempre e sempre prazerosos? Agora, algo muito diferente, é a pessoa não esclarecer que ela cobra para fazer sexo logo no instante em que é cortejada e deixa que o envolvimento avance, avance e você se apegue e quebre a cara. Ainda bem que eu não me apeguei àquela criatura. Ai, ai... Tem gente que não vale nada mesmo.

Eu não sou de negar sentimentos. Além de uma capacidade ímpar de me recompor e de ser resiliente - resiliente, entenda bem, caro leitor; resiliente e não resignado -, eu sei como poucos me transmutar de um momento para o outro passando de um torrão de açúcar para uma pedra de sal. Creio que foi a minha natureza sexualmente fluida que me fez ser cheio de vontades. E assim foi que, do alto da minha parca sabedoria, eu me dirigi àquela pessoa com palavras duras, incisivas mesmo, dizendo quão estúpida e infeliz ela estava sendo em querer me usar como um balão de gás para de algum modo se elevar e sair do buraco em que se lançara. Disse-lhe umas poucas e boas ainda pelo telefone; e, numa noite de outra segunda-feira, naquele mesmo lugar em que eu havia lhe estendido a mão pela primeira vez, eu me despedi dela.

Saí dali carregando alguma tristeza comigo; tristeza essa que foi paulatinamente se dissolvendo; e, nesse, dissolver, eu me recompus inteiramente. Não olhei para trás. Não vacilei. Não me puni. E nem me disse que eu jamais tornaria a ser solidário com alguém, porque foi também por conta da mão que alguém me estendeu um dia e por alguns atos de solidariedade que algumas pessoas me destinaram que eu pude ultrapassar vários obstáculos de uma existência precária e me firmar na vida.

Dias depois, como se nada de mau tivesse acontecido entre nós, a criatura me procurou querendo novamente obter abrigo e algo mais. Fui outra vez tomado por um sentimento de comunhão. Mas esse sentimento paulatinamente se esvaiu. E eu pus um ponto realmente final naquela situação que era para mim em quase tudo ruim. E lhe dei um adeus afetivamente definitivo. 

Há pessoas que se valem de nossa solidariedade e de nossa compaixão para subtraírem o que puder de nós e nos arruinar material e sentimentalmente. Aquela criatura me perdeu no justo instante em que me fez destinar a ela uma dose substancial de indiferença. Há pessoas que não querem carinho, proteção, afeto, cumplicidade, amor, nada disso; o que elas querem simplesmente é se aproveitar e tirar vantagem de uma situação, só isso.

Eu disse ao meu confessor que nunca antes - pelo menos que eu recordasse - sentira por alguém o que eu senti e ainda sinto por aquela pessoa. Não sei explicar exatamente o que sinto por ela. Não é paixão e nem é amor; é algo que entra pelos meus olhos e passeia pela minha cabeça, mas que não chega ao meu coração, mesmo estando ele com as suas portas e as suas janelas escancaradamente abertas.

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