21 de setembro de 2019

Cinema nacional em questão

Por Clênio Sierra de Alcântara

Foto: Reprodução da internet
Salas vazias: talvez não seja apenas a baixa qualidade de muitos dos filmes nacionais que não consiga atrair gente para os cinemas, mas também uma falta considerável de nível de instrução e de formação cultural do público brasileiro que, em sua maioria, enxerga qualidade apenas em enlatados norte-americanos, mesmo quando se trata de lixo da indústria cinematográfica hollywoodiana

Com a chegada do senhor Jair Bolsonaro, o arauto da moral e dos bons costumes, à Presidência da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil, algo de muito rasteiro, obscuro e com cheiro de mofo e enxofre se instalou no centro de comando deste país, ditando – é precisamente esta a palavra – o que deve ser norma para a gente de bem desta nação, no que diz respeito ao consumo de várias coisas, entre elas livros, revistas e, principalmente, filmes nacionais, sobretudo aqueles que receberem patrocínio estatal.

Embora tenha recomendado que nós cidadãos comuns controlemos nossos movimentos peristálticos de modo que consigamos defecar dia sim, dia não como forma de contribuirmos para a preservação do meio ambiente, o senhor Jair Bolsonaro que, diferentemente de nós, expele diariamente matéria fecal pela boca, direcionou as armas de sua cruzada contra os infiéis de todos os matizes e contra os esquerdistas de maneira mais contundente para atingir também o cinema nacional.

Tendo feito críticas ao filme Bruna Surfistinha, do diretor Marcus Baldini, lançado em 2011, porque, segundo o senhor presidente, não merecia ter recebido patrocínio do Governo, considerando o teor do seu enredo, eu imagino quão dificultosa será a tarefa para os avaliadores dos projetos de filmes que tentarão conseguir alguma verba para realizá-los. Muito pior do que isso, eu fico pensando no tanto de perdas que a produção cinematográfica brasileira acumulará com este balizamento, com este pré-requisito, com esta censura à arte cinematográfica.

É um fato: o cinema nacional ainda é carente de muitos bons roteiristas. E essa carência se estende para uma falta quase que geral de grandes financiadores privados para fazerem os filmes surgir, o que leva diretores e realizadores não só a recorrer ao patrocínio governamental como também a pedir auxílio até a Seu José, dono da farmácia, e à Dona Josefa, proprietária de um pequeno restaurante na principal praça da cidade onde o filme espera ser rodado. Faça o leitor a experiência de, depois de assistir a um filme nacional, acompanhar a exibição dos créditos e então você verá quantos Seus Josés e quantas Donas Josefas costumam aparecer ali.

Infelizmente o cinema nacional brasileiro não é uma indústria consolidada, não é um segmento da economia que se autoinveste e se autossustenta, como a norte-americana, por exemplo, cuja influência e dominação cultural e comercial no mundo todo é algo gigantesco, mesmo que entre obras-primas distribua por aí verdadeiros lixos em película, o que é natural do processo, afinal, não se pode esperar que só apareçam coisas boas e/ou muito boas no campo das artes, até porque, não é assim em todas as esferas da vida.

E por enfrentar dificuldades tremendas para conseguir transformar roteiros em filmes propriamente ditos, diretores e demais realizadores do cinema nacional ainda enfrentam outra odisseia quando o filme está pronto, que é a divulgação e a exibição em cinemas que são majoritariamente ocupados por produções made in Hollywood. De maneira que, dada a série de obstáculos para produzir e promover o cinema nacional, essas produções em si não conseguem sempre angariar público e consequentemente pagar ao menos o custo de sua realização, o que vem fazendo com que os investimentos no setor, na maioria dos casos, sejam vistos como a fundo perdido.

Quando eu digo “na maioria dos casos” refiro-me a produtos que nem conseguem sequer ganhar um circuito em salas de cinema; e deixo de mencionar pequenos e grandes sucessos locais que o restante do país – com exceção de frequentadores de festivais e de mostras de fora do chamado “circuitão”, que são os multiplexes instalados em shopping centers -, como a série de comédia Muleque té doido!, do diretor Erlanes Duarte, de cuja existência eu tomei conhecimento quando fiz a minha primeira viagem a São Luís do Maranhão, em 2016.

Quais produções nacionais têm sido se não sucesso de crítica ao menos de público nos últimos anos? No geral os filmes brasileiros que têm rendido boa e rentável bilheteria são títulos como Minha mãe é uma peça, Vai que cola, Meu passado me condena e por aí vai, comédias produzidas e distribuídas pela Globo Filmes. Ao lado dessas comédias bobinhas, é bem verdade que o grupo da família Marinho também tem bancado e/ou distribuído produtos destinados a outros públicos, como as cinebiografias de Elis Regina e Tim Maia, produções de temática espírita, como Chico Xavier e Nosso lar, e ainda produções, digamos, de cunho mais autoral, que alguns classificam como “cinema cabeça”, caso de O som ao redor, do Kleber Mendonça Filho.

Como no pensamento dos detratores do cinema nacional filme bom mesmo é filme que atrai multidões para as salas de exibição, como a franquia hollywoodiana Vingadores, a produção cinematográfica brasileira está fadada a seguir como um pobre indigente pedindo recurso a um e a outro – e agora ainda mais com a determinação do senhor Jair Bolsonaro de não destinar dinheiro público para certos tipinhos de filmes. Acredito eu que a grande penetração e influência dos filmes que são produzidos nos Estados Unidos acabou por moldar entre, talvez, a maior parte dos frequentadores de cinema no Brasil, um gosto e um entendimento de que filme de verdade, filme que valha cada centavo pago pelo ingresso, é filme no qual se veem carros explodindo pelos ares, espaçonaves no espaço sideral, alienígenas e dragões, pessoas muito engraçadas e homens e mulheres com superpoderes. Ou seja, na medida em que eu reduzo o cinema como sinônimo de entretenimento, distração e divertimento, nunca que eu terei condições de enxergá-lo como algo que também pode me fazer pensar nos dramas existenciais que alinhavam a vida de cada um de nós ao redor do mundo. Daí por que, condicionado àquela ideia de filme, eu não procurarei e não me interessarei por produções que não se enquadrem no meu padrão de consumo cinematográfico, digamos assim; e considerarei todos os outros que não cabem nessa caixinha como chatos e/ou sem importância, ou seja, que nem merecem ser vistos.

No último dia 23 de agosto Cláudio Humberto registrou em sua coluna que o “cinema brasileiro não tem problemas de censura, como agora pretendem seus defensores, e sim de qualidade”, porque não se pode conceber que o Governo invista milhões de reais – no ano passado, segundo o colunista, o Fundo do Audiovisual gastou R$ 680 milhões em 151 filmes que foram vistos em média por menos de mil espectadores – em filmes pouquíssimos vistos, quando esses recursos poderiam ser empregados “em outros setores” (Claudio Humberto. “É ruindade”. Recife, Jornal do Commercio, 23 de agosto de 2019, Política, p. 7). No dia seguinte o mesmo periódico recifense publicou na seção Voz do leitor, p. 2 do caderno de Política, a opinião do senhor Douglas Lopes, que disse o seguinte: “Fui assistir ao filme Simonal. Havia catorze pessoas no cinema. Patrocínio da Ancine [Agência Nacional do Cinema, que o senhor Jair Bolsonaro, defensor da moral e dos bons costumes que defende um ser da espécie de um Edir Macedo, quer extinguir]. Desperdício de nosso dinheiro. Todos levaram ‘o seu’: diretor, atores, entre outros. E o País perdeu recursos que poderiam ser aplicados em outras áreas”.

Então filme bom é filme que atrai multidões? Será que a formação educacional/cultural de alguém influi na escolha de qual filme ir ver no cinema? Em que medida existe um pendor do público brasileiro para, no geral, só apreciar o cinema nacional quando se trata do mais idiotizante besteirol das comédias que não param de chegar às telas ou então de filme com temática de violência e crimes como Tropa de elite e Cidade de Deus?

Na década de 1990, no Recife, eu frequentei sessões gratuitas, mostras memoráveis de cineastas como Louis Malle e Akira Kurosawa, no Teatro Arraial, na área central da capital, em dias nos quais não havia, às vezes, nem dez indivíduos nas poltronas. Será que por terem, naqueles dias, atraído tão poucas pessoas filmes como Lacombe Lucien, do Malle, e Rashomon, do Kurosawa, são filmes ruins? Ou será que o grau do interesse do público e mesmo de sua instrução educacional são pontos a considerar nesta avaliação?

Sob o governo do senhor Jair Bolsonaro, o escatológico presidente do Brasil, o cinema nacional, tudo leva a crer – e o adiamento da estreia de Marighella, do Wagner Moura já deu bem o tom da tragédia -, amargará mais um ciclo de profunda crise não de identidade, mas de financiamento e de realização e, sobretudo, de reconhecimento como produto artístico por parte do público ao qual ele se destina ou deveria efetivamente se destinar que é o público brasileiro.

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