Com a chegada do senhor Jair
Bolsonaro, o arauto da moral e dos bons costumes, à Presidência da República
Federativa dos Estados Unidos do Brasil, algo de muito rasteiro, obscuro e com
cheiro de mofo e enxofre se instalou no centro de comando deste país, ditando –
é precisamente esta a palavra – o que deve ser norma para a gente de bem desta
nação, no que diz respeito ao consumo de várias coisas, entre elas livros,
revistas e, principalmente, filmes nacionais, sobretudo aqueles que receberem
patrocínio estatal.
Embora tenha recomendado que
nós cidadãos comuns controlemos nossos movimentos peristálticos de modo que
consigamos defecar dia sim, dia não como forma de contribuirmos para a
preservação do meio ambiente, o senhor Jair Bolsonaro que, diferentemente de
nós, expele diariamente matéria fecal pela boca, direcionou as armas de sua cruzada contra os infiéis de todos os
matizes e contra os esquerdistas de maneira mais contundente para atingir
também o cinema nacional.
Tendo feito críticas ao
filme Bruna Surfistinha, do diretor
Marcus Baldini, lançado em 2011, porque, segundo o senhor presidente, não
merecia ter recebido patrocínio do Governo, considerando o teor do seu enredo,
eu imagino quão dificultosa será a tarefa para os avaliadores dos projetos de
filmes que tentarão conseguir alguma verba para realizá-los. Muito pior do que
isso, eu fico pensando no tanto de perdas que a produção cinematográfica
brasileira acumulará com este balizamento, com este pré-requisito, com esta
censura à arte cinematográfica.
É um fato: o cinema nacional
ainda é carente de muitos bons roteiristas. E essa carência se estende para uma
falta quase que geral de grandes financiadores privados para fazerem os filmes
surgir, o que leva diretores e realizadores não só a recorrer ao patrocínio
governamental como também a pedir auxílio até a Seu José, dono da farmácia, e à
Dona Josefa, proprietária de um pequeno restaurante na principal praça da
cidade onde o filme espera ser rodado. Faça o leitor a experiência de, depois
de assistir a um filme nacional, acompanhar a exibição dos créditos e então
você verá quantos Seus Josés e quantas Donas Josefas costumam aparecer ali.
Infelizmente o cinema
nacional brasileiro não é uma indústria consolidada, não é um segmento da
economia que se autoinveste e se autossustenta, como a norte-americana, por
exemplo, cuja influência e dominação cultural e comercial no mundo todo é algo
gigantesco, mesmo que entre obras-primas distribua por aí verdadeiros lixos em
película, o que é natural do processo, afinal, não se pode esperar que só
apareçam coisas boas e/ou muito boas no campo das artes, até porque, não é
assim em todas as esferas da vida.
E por enfrentar dificuldades
tremendas para conseguir transformar roteiros em filmes propriamente ditos,
diretores e demais realizadores do cinema nacional ainda enfrentam outra
odisseia quando o filme está pronto, que é a divulgação e a exibição em cinemas
que são majoritariamente ocupados por produções made in Hollywood. De maneira que, dada a série de obstáculos para
produzir e promover o cinema nacional, essas produções em si não conseguem
sempre angariar público e consequentemente pagar ao menos o custo de sua
realização, o que vem fazendo com que os investimentos no setor, na maioria dos
casos, sejam vistos como a fundo perdido.
Quando eu digo “na maioria
dos casos” refiro-me a produtos que nem conseguem sequer ganhar um circuito em
salas de cinema; e deixo de mencionar pequenos e grandes sucessos locais que o
restante do país – com exceção de frequentadores de festivais e de mostras de
fora do chamado “circuitão”, que são os multiplexes instalados em shopping
centers -, como a série de comédia Muleque
té doido!, do diretor Erlanes Duarte, de cuja existência eu tomei
conhecimento quando fiz a minha primeira viagem a São Luís do Maranhão, em 2016.
Quais produções nacionais
têm sido se não sucesso de crítica ao menos de público nos últimos anos? No geral
os filmes brasileiros que têm rendido boa e rentável bilheteria são títulos
como Minha mãe é uma peça, Vai que cola, Meu passado me condena e por aí vai, comédias produzidas e
distribuídas pela Globo Filmes. Ao lado dessas comédias bobinhas, é bem verdade
que o grupo da família Marinho também tem bancado e/ou distribuído produtos
destinados a outros públicos, como as cinebiografias de Elis Regina e Tim Maia,
produções de temática espírita, como Chico
Xavier e Nosso lar, e ainda
produções, digamos, de cunho mais autoral, que alguns classificam como “cinema
cabeça”, caso de O som ao redor, do
Kleber Mendonça Filho.
Como no pensamento dos
detratores do cinema nacional filme bom mesmo é filme que atrai multidões para
as salas de exibição, como a franquia hollywoodiana Vingadores, a produção
cinematográfica brasileira está fadada a seguir como um pobre indigente pedindo
recurso a um e a outro – e agora ainda mais com a determinação do senhor Jair
Bolsonaro de não destinar dinheiro público para certos tipinhos de filmes. Acredito
eu que a grande penetração e influência dos filmes que são produzidos nos
Estados Unidos acabou por moldar entre, talvez, a maior parte dos frequentadores de
cinema no Brasil, um gosto e um entendimento de que filme de verdade, filme
que valha cada centavo pago pelo ingresso, é filme no qual se veem carros
explodindo pelos ares, espaçonaves no espaço sideral, alienígenas e dragões,
pessoas muito engraçadas e homens e mulheres com superpoderes. Ou seja, na
medida em que eu reduzo o cinema como sinônimo de entretenimento, distração e
divertimento, nunca que eu terei condições de enxergá-lo como algo que também
pode me fazer pensar nos dramas existenciais que alinhavam a vida de cada um de
nós ao redor do mundo. Daí por que, condicionado àquela ideia de filme, eu não
procurarei e não me interessarei por produções que não se enquadrem no meu
padrão de consumo cinematográfico, digamos assim; e considerarei todos os
outros que não cabem nessa caixinha como chatos e/ou sem importância, ou seja, que nem merecem ser vistos.
No último dia 23 de agosto
Cláudio Humberto registrou em sua coluna que o “cinema brasileiro não tem
problemas de censura, como agora pretendem seus defensores, e sim de qualidade”,
porque não se pode conceber que o Governo invista milhões de reais – no ano
passado, segundo o colunista, o Fundo do Audiovisual gastou R$ 680 milhões em
151 filmes que foram vistos em média por menos de mil espectadores – em filmes
pouquíssimos vistos, quando esses recursos poderiam ser empregados “em outros
setores” (Claudio Humberto. “É ruindade”. Recife, Jornal do Commercio, 23 de agosto de 2019, Política, p. 7). No dia
seguinte o mesmo periódico recifense publicou na seção Voz do leitor, p. 2 do
caderno de Política, a opinião do senhor Douglas Lopes, que disse o seguinte: “Fui
assistir ao filme Simonal. Havia catorze
pessoas no cinema. Patrocínio da Ancine [Agência Nacional do Cinema, que o
senhor Jair Bolsonaro, defensor da moral e dos bons costumes que defende um ser
da espécie de um Edir Macedo, quer extinguir]. Desperdício de nosso dinheiro. Todos
levaram ‘o seu’: diretor, atores, entre outros. E o País perdeu recursos que
poderiam ser aplicados em outras áreas”.
Então filme bom é filme que
atrai multidões? Será que a formação educacional/cultural de alguém influi na
escolha de qual filme ir ver no cinema? Em que medida existe um pendor do
público brasileiro para, no geral, só apreciar o cinema nacional quando se
trata do mais idiotizante besteirol das comédias que não param de chegar às
telas ou então de filme com temática de violência e crimes como Tropa de elite e Cidade de Deus?
Na década de 1990, no
Recife, eu frequentei sessões gratuitas, mostras memoráveis de cineastas como
Louis Malle e Akira Kurosawa, no Teatro Arraial, na área central da capital, em
dias nos quais não havia, às vezes, nem dez indivíduos nas poltronas. Será que
por terem, naqueles dias, atraído tão poucas pessoas filmes como Lacombe Lucien, do Malle, e Rashomon, do Kurosawa, são filmes ruins?
Ou será que o grau do interesse do público e mesmo de sua instrução educacional
são pontos a considerar nesta avaliação?
Sob o governo do senhor Jair
Bolsonaro, o escatológico presidente do Brasil, o cinema nacional, tudo leva a
crer – e o adiamento da estreia de Marighella,
do Wagner Moura já deu bem o tom da tragédia -, amargará mais um ciclo de
profunda crise não de identidade, mas de financiamento e de realização e, sobretudo,
de reconhecimento como produto artístico por parte do público ao qual ele se
destina ou deveria efetivamente se destinar que é o público brasileiro.
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