14 de setembro de 2019

Meu limão, meu Limoeiro do Norte


Por Clênio Sierra de Alcântara


Fotos: Arquivo do Autor
A Catedral de Nossa Senhora Imaculada Conceição no comecinho do dia...

... e à noite. Os festejos da padroeira começam na última semana de novembro e vão até o dia 8 de dezembro, dia da consagração. Era dia de festa quando eu cheguei à cidade

I


Conta-se que o povoamento de Limoeiro do Norte, das primitivas terras onde seria assentada a aprazível Limoeiro do Norte, cidade que dista a cerca de 164 km de Fortaleza, principiou no último quartel do século XVII, precisamente no ano de 1687, com a vinda do sargento-mor João de Sousa Vasconcelos do Sertão do São Francisco para a ribeira do Jaguaribe. Ali, depois de travar vários combates com os índios paiacus, ele se estabeleceu no sítio São João das Vargens, que não demorou a se tornar um arraial desenvolvido.


Pode-se dizer que o Rio Jaguaribe e suas margens de terras férteis favoreceram o enorme relevo que aquele território alcançaria no decorrer do tempo. Terreno bastante propício para o desenvolvimento de atividades agropastoris, as zonas ribeirinhas do Jaguaribe atraíram para lá levas e levas de imigrantes oriundos do Rio Grande do Norte, da Paraíba e de Pernambuco, como se aquela fosse uma outra terra da promissão. Esse fluxo de pessoas promoveu a ocupação de áreas que deram origem a novos núcleos de povoamento, como o de Tabuleiro de Areia e o de Limoeiro, cujo surgimento, por assim dizer, data de 23 de janeiro de 1708, ocasião em que o Desembargador Cristóvão Soares Reimão, encarregado de tombar as terras do Baixo Jaguaribe, demarcou légua e meia de terras do Rio Jaguaribe, com meia légua de cada lado, subindo o rio, a partir do marco do poço das Aningas, até a última légua que abrangia a propriedade do sargento-mor Pedro da Silva Cardoso, local onde hoje está situada a cidade de Limoeiro do Norte.

Vista da cidade a partir da varanda do Classic Hotel






Posteriormente o sítio Limoeiro passou a pertencer ao pernambucano Antônio Rodrigues da Silva, que o repassou a seu genro, Manuel José da Silva, casado com Dona Josefa Maria de Vasconcelos. Diz-nos as narrativas históricas que o sítio-fazenda prosperou a olhos vistos; e que já no ano de 1778 – embora não mencione quando foi que Antônio Rodrigues da Silva adquiriu a propriedade – era considerável o seu desenvolvimento e crescente a sua população, “seja pela vinda de outras famílias do vale Jaguaribano, seja pelo espírito empreendedor do seu dirigente” (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Vol. XVI. Rio de Janeiro: Instituto de Geografia e Estatística, 1959, p. 351).


Após o falecimento de Manuel José da Silva, que deve ter ocorrido na primeira década do século XIX, seus filhos, Padre Vicente Rodrigues da Silva, José Rodrigues da Silva e Antônio da Silva Vasconcelos concordaram com a construção de uma capela sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição doando-lhe para patrimônio 600 braças de terras em 1818.



Grande parte da cidade ainda dormia quando eu saí do hotel para fotografá-la



Sede da Academia Limoeirense de Letras




A construção do prédio eclesiástico teve início em terreno pertencente a Bonifácio José Carneiro e Joaquim da Costa Barros, adquirido dos filhos de Manuel José da Silva, e foi concluída e benta no dia 9 de dezembro de 1845, um dia após ao que é dedicado à Nossa Senhora da Conceição.


Com a criação da freguesia de Nossa Senhora da Conceição, estabelecida pela Lei provincial nº 1081, de 4 de dezembro de 1863, inaugurada canonicamente em 1864, a capela passou por alguns reparos tidos como indispensáveis aos serviços religiosos da nova matriz. Ainda no ano de 1864 a freguesia foi transferida para a povoação de São João do Jaguaribe pela Lei nº 1118, de 8 de novembro daquele ano.


Foi criado o distrito de paz de Limoeiro, do município de Russas, pela Lei provincial nº 607, de 8 de novembro de 1852, suprimido em 1854, mas restaurado pela Lei provincial nº 913, de 12 de setembro de 1859.

O cruzeiro da Catedral

Devotos de manhã bem cedo na Catedral aguardando o início da missa
É uma lindeza essas fachadas







Já o distrito de paz de São João do Jaguaribe, criado pela Câmara Municipal de Russas, em 11 de setembro de 1830, e confirmado pela Lei provincial nº 150, de 22 de setembro de 1838, foi suprimido pelo Decreto estadual nº 29-A, de 6 de março de 1892. Em virtude da Lei provincial nº 1255, de 22 de dezembro de 1868, a povoação recebeu foros de vila sendo transferida, antes mesmo de ser inaugurada, para a povoação de Limoeiro pela Lei provincial nº 1402, de 22 de julho de 1871, que passou a ser sede do município com território desmembrado do de São Bernardo das Russas (atual Russas), tendo ocorrido a sua instalação em 30 de julho de 1873.


O primeiro intendente do lugar foi o capitão João Enneas (sic) da Silva, que em 1872 exercera o cargo de delegado. Seu governo, que se estendeu até 1878, foi marcado por um grande esforço e enorme empenho para conseguir superar o flagelo da seca severa que atingiu a região em 1877, que levou à morte muitos indivíduos de um contingente de 13.397 habitantes. Num opúsculo que escreveu sobre a figura fascinante de José Antônio Pereira Ibiapina, que recebeu ordenação sacerdotal aos 46 anos e ficou conhecido como Padre Ibiapina, José Comblin classificou a grande seca havida em 1877 como “a maior tragédia do século no Nordeste”, durante a qual “nada se plantou, nada se colheu” e “os flagelados dos sertões começaram a encher os engenhos e as vilas” (José Comblin. Padre Ibiapina. São Paulo: Edições Paulinas, 1993, p. 39).


Legiões de famintos e sedentos vagaram pelos rincões nordestinos fugindo do horror da seca, como também na de 1915 que de novo assolou o Ceará e que Rachel de Queiroz usou como pano de fundo do seu romance O quinze, no qual lemos passagens como esta em que ela nos descreve o drama enfrentado pela família do retirante Chico Bento:

Dia a dia, com as forças que iam minguando, a miséria escalavrava mais a cara sórdida, e mais fortemente os feria com a sua garra desapiedada.

Só talvez por um milagre iam aguentando tanta fome, tanta sede, tanto sol (Rachel de Queiroz. O quinze. 17ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1974, p. 71). 







Limoeiro do Norte possui edifícios religiosos e civis com rica arquitetura. É um patrimônio significativo da cidade, assim como a arborização; árvores e plantas ornamentais aparecem em vários logradouros conferindo ao mesmo tempo um charme e um clima de aconchego ao centro urbano








Em contraste com as secas de 1877 e de 1915, é preciso apontar que a cidade de Limoeiro está situada em uma ilha formada por braços do Rio Jaguaribe; e que ela sofreu grandes prejuízos com inundações ocorridas principalmente nos anos de 1917, 1924 e 1950, que causaram transtornos às populações ribeirinhas, além de surtos epidêmicos. “A sede municipal várias vezes foi invadida pelas águas e o transporte de lugares distantes era feito em canoas até as ruas centrais da cidade. Um mar imenso invadia tudo: carnaubais, lares, propriedades agrícolas, etc." (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Op. cit., p. 357).


A Lei nº 364, de 30 de agosto de 1897, elevou a vila à categoria de cidade. E Limoeiro adentrou no século XX com a disposição de cidade nova que não quer perder as oportunidades para se desenvolver material e politicamente, lutando por melhorias junto ao governo do Estado.






Aprendam: até cachorro atravessa a rua na faixa de pedestres

Prefeitura Municipal


De conformidade com o Decreto nº 448, de 30 de dezembro de 1938, o município de Limoeiro perdeu parte de seu território para o distrito de Baixa Branca, de Russas, Bom Jardim (de Pereio).


Pelo Decreto-lei nº 1114, de 30 de dezembro de 1943, o topônimo foi alterado para Limoeiro do Norte; e os distritos de Tabuleiro e São João passaram a denominar-se, respectivamente, Ibicuipeba e Jandoim.


Por que houve essa alteração do topônimo da cidade? Creio que foi para se diferenciar de uma Limoeiro existente em Pernambuco. E por que o primitivo nome Limoeiro? Bem, quanto a isso Eusébio de Sousa, citando por sua vez Raimundo Girão e Antônio Martins Filho, nos diz o seguinte:


Limoeiro deriva seu nome de uma grande árvore desse fruto, que crescia, consoante a tradição, por trás da atual matriz (Catedral), acreditando-se, na falta de informes positivos, ter sido plantada pelos índios que então habitavam as várzeas jaguaribanas (Eusébio de Sousa. Álbum do Jaguaribe, p. 73. Apud. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Op. cit.,p. 357).














A Lei nº 1153, de 22 de novembro de 1951, que fixou o quadro da Divisão administrativa do Estado, para vigorar sem alteração até 31 de dezembro de 1953, determinou as seguintes alterações no município: os distritos de Bica, Ibicuíba e Jandoim passaram a denominar-se respectivamente Olho-d’Água da Bica, Tabuleiro do Norte e São João do Jaguaribe; o distrito de Bixopá, então pertencente ao município de Russas, foi anexado ao de Limoeiro do Norte; e foram criados os distritos de Barra do Figueiredo e Castanhão, com sedes nos núcleos do mesmo nome, então elevados à categoria de vila.


Ainda de acordo com aquela Lei de 1951, Limoeiro do Norte aparecia composto pelo distrito do mesmo nome, ou seja, a sede, e Alto Santo, Barra do Figueiredo, Bixopá, Castanhão, Olho-d’Água da Bica, São João do Jaguaribe e Tabuleiro do Norte.











Câmara Municipal







Em 1997 Limoeiro do Norte completou cem anos de existência com o status de cidade. Naquela ocasião certamente já não era a mesma Limoeiro daquele 15 de junho de 1926 que o cangaceiro Lampião e o seu bando ameaçaram saquear, caso a Municipalidade não lhes destinasse quinze contos de réis. Como conseguir quantia tão vultosa para a época, se a cidade fora quase totalmente abandonada pela população com medo dele? Não houve jeito, Lampião e a sua gente tiveram que se contentar com a ninharia de dois contos de réis que conseguiram para eles.

Ainda em comparação com as comemorações do seu centenário, Limoeiro do Norte também já não apresentava o aspecto por assim dizer acanhado que a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros apontou em 1959, no qual a cidade apresentava 44 logradouros, dos quais apenas dois deles apareciam parcialmente pavimentados com paralelepípedos, sendo ainda dezenove arborizados, e possuía 1262 prédios, sendo 927 exclusivamente residenciais e 9 simultaneamente residenciais e para outros fins. As cidades se transformam, isso é um fato; e Limoeiro do Norte adentrou no século XXI aspirando à condição de se manter como um dos principais centros urbanos de todo o interior cearense.





II


Depois de ter pernoitado em Campina Grande, na Paraíba, eu peguei a estrada na manhã do dia 2 de dezembro de 2017 com destino à cidade de Limoeiro do Norte, numa viagem que parecia não ter fim.


À medida que a van em que eu me encontrava foi adentrando naquele chão, eu fui me dando conta que estava a percorrer uma vasta planura. Sim, a impressão que eu senti de estar naquele terreno era a de que tudo ali era plano e muito, muito extenso.















Logo depois de ter acomodado a minha bagagem num quarto do Classic Hotel, localizado na área central da cidade, eu saí para começar a explorar o território que me fosse possível.


Atravessando o centro comercial, que é grande e bastante variado, eu tomei assento na Barbearia J. A (J. A de José Anselmo), localizada na Rua Padre Custódio, para que um seu filho, que me prestou um ótimo atendimento, retirasse por completo a enorme barba que eu cultivara durante quase três meses e que me deixara com a aparência de um Antônio Conselheiro.


Enquanto eu seguia por ruas e avenidas largas, espaçosas e arborizadas, fui vendo que, aqui e ali, a cidade conservava inúmeros imóveis com fachadas que remetem a décadas passadas e que são testemunhos de uma fase de consolidação e crescimento do universo urbano em relação ao rural.





















Versos do poeta limoeirense Virgílio Maia






Caiu a noite. Um clima muito gostoso repousou naquela terra. A Catedral de Nossa Senhora Imaculada da Conceição estava em festa. E uma multidão circulava no templo e também no seu adro, porque toda festa religiosa católica, ao que parece, acontece de par com eventos profanos. E as pessoas que ocupavam o adro e as barracas, bares e lanchonetes estavam, ao modo delas, aproveitando a atmosfera festiva.


Atravessei uma vasta extensão da cidade para ir prestigiar as atrações que estavam na programação do XI Encontro Mestres do Mundo, com mestres e mestras da cultura popular tradicional. Aquele era o último dia do evento.



























Dormi o sono dos justos e dos muito cansados naquela noite. Despertei bem cedinho. E, empunhando minha câmera fotográfica, deixei o hotel às 05:30 h e saí a esmo, percorrendo logradouros vários de uma cidade que em grande parte ainda dormia.


Não é de hoje que Limoeiro goza do status de ser um centro urbano bastante arborizado. Fotos em preto e branco publicadas no verbete da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, em 1959, nos revelam vistas parciais da cidade, como as ruas Coronel Francisco Remígio, Santos Dumont e Coronel Serafim, repletas de árvores. Outro registro fotográfico que aparece naquela obra é um pormenor encantador: nele vemos uma linha de casas antigas e, por trás delas, o Rio Jaguaribe majestoso dominando a paisagem.


Todas estas quatro fotos são da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros; e aparecem respectivamente nas páginas 351, 352, 352 e 351

Vista parcial da Rua Santos Dumont


Trecho da Rua Coronel Serafim


No primeiro plano telhados de inúmeros imóveis; e, lá atrás, o Rio Jaguaribe majestoso: cheias e secas marcaram a história de Limoeiro do Norte


Os olhos do flâneur não raro se prendem a miudezas que o cenário urbano possui. Nas cercanias da longa artéria Coronel Francisco Remígio, eles se lançaram para uma senhorinha que calmamente varria o trecho da rua defronte à sua morada. Já no adro da imponente Catedral, meus olhos viram bem de perto um mendigo a dormir na imensidão de sua mais do que evidente pobreza material. A cidade que abriga e conforta é a mesma que exclui e desampara.


Logo cedo esta senhorinha varria com uma vassoura de palha o pedaço de rua onde fica a sua morada: pequenos encantos como esse enchem os olhos deste flâneur que vos escreve

Também logo cedinho, o flagrante de um morador de rua a dormir ao lado das portas da Catedral: a cidade que abriga e conforta é a mesma que exclui e desampara


Em certa página de sua Cartilha – uma cartilha que, ainda que poética, tem o seu quê de didática – o limoeirense e cultor refinado de versos que é Virgílio Maia declara:

Vinte palmas de mão: sulcos e emes
na matriz do materno e da maldade.
A história do futuro posta à mesa,
demonstrado que a cada um lhe cabe
próprio rumo tomar de próprio pulso:
quiromancia vera de quem sabe (Virgílio Maia. Cartilha. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002, p. 37).

Peguei novamente a estrada, agora, tomando o rumo de minha casa, que, tal qual Limoeiro do Norte, foi erguida numa ilha. Segui no caminho carregando comigo a certeza de que entre as ilhas e os continentes existem não só mares e rios, saberes e desejos, mas também forças descomunais que nos prendem aos chãos: sejam eles onde se nasce, sejam eles os da morada, sejam os que nos quais pisamos em momentos de procura e de descobertas. Nos passos de um caminhante curioso que eu sou, fui a Limoeiro do Norte sequioso de o “próprio rumo tomar de próprio pulso”, sem me deixar perder pelas veredas desnorteantes e nem me autoflagelar com os açoites da saudade de tudo o que eu deixara para trás, à minha espera, quando segui para lá.






Uma parte de Limoeiro do Norte está dentro de mim, eu sei, como elemento integrante e indissolúvel da geografia de minha existência.


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