Por Clênio Sierra de
Alcântara
Dada a precariedade do
sistema de transporte público deste país e a sua altíssima demanda, toda e
qualquer boa alternativa que permita que pessoas consigam se deslocar pelas
cidades sem precisar recorrer a metrôs, trens e ônibus superlotados deve ser
encarada como a melhor das intenções, como é o caso de uma iniciativa bancada
pelo Banco Itaú, no Recife, já há alguns anos, que consiste em disponibilização
de bicicletas agrupadas em vários pontos da capital e das quais os interessados
fazem uso mediante um pagamento. A iniciativa, apesar de não ser a coisa mais
inovadora dos últimos tempos, é algo muito bem-vindo, porque permite que se
façam pequenos e/ou médios deslocamentos de maneira barata e prática. Ao lado
disso, a Prefeitura do Recife também vem fazendo a parte dela ao tratar de
disponibilizar ciclovias e ciclofaixas para aqueles que fazem uso de tal meio
de transporte.
Quem anda pelos bairros
centrais da capital pernambucana aqui e ali se depara com um bicicletário e
suas indefectíveis bicicletas de cor laranja. Isso porque a boa sacada do
negócio é que, se eu, por exemplo, pego uma bicicleta no Bairro do Recife, não
precisarei necessariamente devolvê-la no ponto no qual a retirei, eu poderei fazer
isso em qualquer outro que eu encontrar que esteja com espaço disponível para
recebê-la.
Como se vê tal iniciativa é
realmente merecedora de aplausos quando vista apenas pelo prisma da mobilidade
urbana. Por outro lado, por mais louvável que seja esse projeto do Banco Itaú,
eu, que sou um entusiasta do primitivo núcleo urbano do Recife, não posso
concordar que os tais bicicletários sejam inseridos pelas ruas e recantos
outros da cidade como se fossem meros componentes da paisagem natural ou
simples mobiliário urbano.
Dias atrás, quando eu me
encontrava em plena flânerie pelo bom e velho Recife, eis que eu me deparei com o trambolho de um bicicletário instalado no adro da Igreja Matriz da Boa
Vista; e ao ver aquele monstro de ferro parado ali, pela primeira vez eu
maldisse o tal projeto daquela instituição bancária; num instante apenas, o
assombro, o espanto e uma súbita raiva fizeram com que eu, naquele momento, me
portasse contra a colocação de bicicletários em todo e em qualquer local “supostamente”
disponível nos logradouros. E o primeiro pensamento que me veio foi este: “Como
a Prefeitura permitiu que esse troço fosse posto aqui?!”.
Erguida ao longo dos séculos
XVIII e XIX, a imponente Igreja Matriz da Boa Vista é um dos templos católicos
mais exuberantes do Recife. Foi lendo um estudo de autoria do Fernando Pio
intitulado História da Matriz da Boa Vista e seu monumental frontispício
(Recife: UFPE, Imprensa Universitária, 1967), que, por exemplo, eu fiquei
sabendo que as esculturas de quatro apóstolos (João, Marcos, Mateus e Lucas)
que adornam a sua fachada, obras do mestre Francisco d’Assis Rodrigues, foram
trazidas de Portugal; e que todas as pedras utilizadas na construção do dito
monumental frontispício foram aos poucos sendo trazidas também de além-mar.
Localizada na junção entre
as ruas da Imperatriz – assim como a Rua Imperador Dom Pedro II, no bairro de
Santo Antônio, é chamada no cotidiano apenas como Rua do Imperador, a Rua
Imperatriz Teresa Cristina, na Boa Vista, é mais conhecida simplesmente como
Rua da Imperatriz -, do Hospício e da Matriz e a Praça Maciel Pinheiro, a
Igreja Matriz da Boa Vista, a exemplo de outras edificações eclesiásticas
recifenses, como a Igreja da Madre de Deus, no Bairro do Recife, e a Igreja
Matriz do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio, no bairro homônimo, teve seu
adro em parte devorado pelas obras de abertura, retificação e/ou alargamento de
ruas.
Toda vez que eu piso no adro
de uma igreja católica me vem à lembrança o brilho, a cor e o som dos seus
rituais, dos seus festejos, das suas celebrações, das suas cerimônias e das
suas procissões. O adro, o pátio de uma igreja católica é, eu diria, uma
continuação, um prolongamento, um complemento da edificação religiosa e que,
justamente por isso, visto que, como eu disse, ele é um local onde se realizam
parte de seus rituais, deve ser mantido como um espaço livre.
Acredito que não seja
preciso ser alguém versado em fundamentos e políticas de preservação,
salvaguarda e valorização de patrimônio histórico edificado para que se olhe
aquele amontoado de bicicletas defronte à Igreja Matriz da Boa Vista e se
perceba que a instalação de um bicicletário num pátio que já é tão diminuto,
não foi uma ação bem pensada. Pelo contrário. O que eu, pelo menos, enxerguei
ali foi uma completa falta de compreensão de que, assim como se diz que a praça
é do povo, o adro de uma igreja também o é.
Espero sinceramente que a
Arquidiocese de Olinda e Recife ou mesmo a Secretaria de Mobilidade da
Prefeitura desfaçam essa malfeitoria que emasculou um monumento do porte da
Igreja Matriz da Boa Vista, porque compreendo que a instalação dos
bicicletários deve obedecer a uma lógica de ocupação que, além das questões de
praticidade e distâncias entre eles, avalie a ambiência e respeite a fisionomia
dos locais de modo que, a pretexto de ser apresentado como algo necessário e
bom para os cidadãos – e de fato é -, o serviço de locação de bicicletas não
incorra na malfadada sina de, por outro lado, se apropriar de nacos da cidade
de maneira quase que imperiosa e voraz, prática essa à qual os veículos automotores sempre se lançaram.
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