9 de novembro de 2019

A Igreja Matriz da Boa Vista e o bicicletário


Por Clênio Sierra de Alcântara

Fotos: Arquivo do Autor
A proposta de disponibilizar bicicletas que podem ser utilizadas por todo aquele que queira e possa pagar para fazer uso delas em vários pontos da cidade é ótima; o que não é legal é ocupar espaços, como esse já pequeno pátio de igreja, instalando neles bicicletários



Dada a precariedade do sistema de transporte público deste país e a sua altíssima demanda, toda e qualquer boa alternativa que permita que pessoas consigam se deslocar pelas cidades sem precisar recorrer a metrôs, trens e ônibus superlotados deve ser encarada como a melhor das intenções, como é o caso de uma iniciativa bancada pelo Banco Itaú, no Recife, já há alguns anos, que consiste em disponibilização de bicicletas agrupadas em vários pontos da capital e das quais os interessados fazem uso mediante um pagamento. A iniciativa, apesar de não ser a coisa mais inovadora dos últimos tempos, é algo muito bem-vindo, porque permite que se façam pequenos e/ou médios deslocamentos de maneira barata e prática. Ao lado disso, a Prefeitura do Recife também vem fazendo a parte dela ao tratar de disponibilizar ciclovias e ciclofaixas para aqueles que fazem uso de tal meio de transporte.








Quem anda pelos bairros centrais da capital pernambucana aqui e ali se depara com um bicicletário e suas indefectíveis bicicletas de cor laranja. Isso porque a boa sacada do negócio é que, se eu, por exemplo, pego uma bicicleta no Bairro do Recife, não precisarei necessariamente devolvê-la no ponto no qual a retirei, eu poderei fazer isso em qualquer outro que eu encontrar que esteja com espaço disponível para recebê-la.










Como se vê tal iniciativa é realmente merecedora de aplausos quando vista apenas pelo prisma da mobilidade urbana. Por outro lado, por mais louvável que seja esse projeto do Banco Itaú, eu, que sou um entusiasta do primitivo núcleo urbano do Recife, não posso concordar que os tais bicicletários sejam inseridos pelas ruas e recantos outros da cidade como se fossem meros componentes da paisagem natural ou simples mobiliário urbano.


Dias atrás, quando eu me encontrava em plena flânerie pelo bom e velho Recife, eis que eu me deparei com o trambolho de um bicicletário instalado no adro da Igreja Matriz da Boa Vista; e ao ver aquele monstro de ferro parado ali, pela primeira vez eu maldisse o tal projeto daquela instituição bancária; num instante apenas, o assombro, o espanto e uma súbita raiva fizeram com que eu, naquele momento, me portasse contra a colocação de bicicletários em todo e em qualquer local “supostamente” disponível nos logradouros. E o primeiro pensamento que me veio foi este: “Como a Prefeitura permitiu que esse troço fosse posto aqui?!”.


Erguida ao longo dos séculos XVIII e XIX, a imponente Igreja Matriz da Boa Vista é um dos templos católicos mais exuberantes do Recife. Foi lendo um estudo de autoria do Fernando Pio intitulado História da Matriz da Boa Vista e seu monumental frontispício (Recife: UFPE, Imprensa Universitária, 1967), que, por exemplo, eu fiquei sabendo que as esculturas de quatro apóstolos (João, Marcos, Mateus e Lucas) que adornam a sua fachada, obras do mestre Francisco d’Assis Rodrigues, foram trazidas de Portugal; e que todas as pedras utilizadas na construção do dito monumental frontispício foram aos poucos sendo trazidas também de além-mar.








Localizada na junção entre as ruas da Imperatriz – assim como a Rua Imperador Dom Pedro II, no bairro de Santo Antônio, é chamada no cotidiano apenas como Rua do Imperador, a Rua Imperatriz Teresa Cristina, na Boa Vista, é mais conhecida simplesmente como Rua da Imperatriz -, do Hospício e da Matriz e a Praça Maciel Pinheiro, a Igreja Matriz da Boa Vista, a exemplo de outras edificações eclesiásticas recifenses, como a Igreja da Madre de Deus, no Bairro do Recife, e a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio, no bairro homônimo, teve seu adro em parte devorado pelas obras de abertura, retificação e/ou alargamento de ruas.


Toda vez que eu piso no adro de uma igreja católica me vem à lembrança o brilho, a cor e o som dos seus rituais, dos seus festejos, das suas celebrações, das suas cerimônias e das suas procissões. O adro, o pátio de uma igreja católica é, eu diria, uma continuação, um prolongamento, um complemento da edificação religiosa e que, justamente por isso, visto que, como eu disse, ele é um local onde se realizam parte de seus rituais, deve ser mantido como um espaço livre.







Acredito que não seja preciso ser alguém versado em fundamentos e políticas de preservação, salvaguarda e valorização de patrimônio histórico edificado para que se olhe aquele amontoado de bicicletas defronte à Igreja Matriz da Boa Vista e se perceba que a instalação de um bicicletário num pátio que já é tão diminuto, não foi uma ação bem pensada. Pelo contrário. O que eu, pelo menos, enxerguei ali foi uma completa falta de compreensão de que, assim como se diz que a praça é do povo, o adro de uma igreja também o é. 


Espero sinceramente que a Arquidiocese de Olinda e Recife ou mesmo a Secretaria de Mobilidade da Prefeitura desfaçam essa malfeitoria que emasculou um monumento do porte da Igreja Matriz da Boa Vista, porque compreendo que a instalação dos bicicletários deve obedecer a uma lógica de ocupação que, além das questões de praticidade e distâncias entre eles, avalie a ambiência e respeite a fisionomia dos locais de modo que, a pretexto de ser apresentado como algo necessário e bom para os cidadãos – e de fato é -, o serviço de locação de bicicletas não incorra na malfadada sina de, por outro lado, se apropriar de nacos da cidade de maneira quase que imperiosa e voraz, prática essa à qual os veículos automotores sempre se lançaram.

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