23 de novembro de 2019

E então, vamos ao museu?

Por Clênio Sierra de Alcântara


Foto: Danilo Verpa
Tanta gente tanta: multidão no vão do Masp esperando para conferir a exposição de trabalhos de Tarsila do Amaral, seguramente o grande acontecimento cultural do ano neste país que tem vivido dias de ataques à cultura e às artes de um modo geral. No detalhe, a obra Abaporu. Viva Tarsila! Viva a liberdade de expressão! Abaixo o obscurantismo!


Existe no Brasil uma quase máxima usada quando se quer dizer que um evento, por exemplo, foi um fracasso de público ou que determinado lugar, como uma rua, está frequentemente deserta; nesses momentos há quem diga assim sobre o local: “Parecia um museu. Não tinha ninguém”. Como se nota, a palavra “museu”, nesses casos, vira sinônimo de espaço pouco frequentado e/ou evitado.

Não é à toa que, neste país, os museus gozem de tão pouco prestígio em determinados ciclos sociais. Assim como certos gostos e costumes, preferências artísticas e culturais também entram, infelizmente, numa estratificação social que, normalmente classifica a cultura em diversos segmentos e/ou simplesmente no binômio cultura erudita e cultura popular, sendo que, nesta divisão, habitualmente se estabelece ou se crê que quem aprecia e/ou toma parte e/ou consome a chamada cultura erudita são em geral indivíduos bem-nascidos, ou seja, de famílias situadas na parte de cima da pirâmide econômica e que, portanto, tiveram acesso a uma educação formal que lhes proporcionou o contato com manifestações artísticas e culturais consideradas refinadas e até mesmo difíceis de ser compreendidas e/ou apreciadas. Sendo assim, do outro lado, o consumo da dita cultura popular ficaria destinada àqueles que se encontram na parte debaixo daquela pirâmide e tiveram uma educação formal fraca ou mediana ou até mesmo nunca frequentaram escola alguma.

Mais de uma vez eu visitei museus que para o meu desalento figuravam como aquela quase máxima popular que eu mencionei lá atrás. E quando isso acontece eu fico verdadeiramente triste, sabe? A tristeza e o lamento me vêm porque eu penso que essa realidade poderia ser bem diferente, sobretudo quando eu me dou conta de que o acesso à informação, seja ela de que tipo for, se tornou algo quase que acessível à maioria absoluta das pessoas com o advento da internet. Sim, decerto que ter acesso à informação não irá necessariamente levar as pessoas a buscar instrução e/ou se interessar por instituições culturais. Não é tão simples assim. Acredito que as escolas têm um papel fundamental nesse processo de apresentação e de estímulos para que os estudantes ao menos saibam que existem tal e tal instituição e que ela é aberta a todos que a queiram conhecer, o que significa dizer que a ela podem ir tanto o morador do condomínio de luxo do bairro nobre da cidade como o rapazote que reside na favela mais pobrezinha.

Professores e professoras de escolas públicas promovem um grande trabalho social a meu ver quando conseguem uma condução para levar seus alunos em atividades extraclasses nas quais museus, institutos, galerias de arte e outras instituições culturais figuram como destinos desses estudantes que, muitas vezes, enfrentam uma série de dificuldades socioeconômicas que inviabilizam a ida deles a tais lugares.

Suburbano que eu sou e oriundo de uma família pobre, eu estudei toda a minha vida em escolas públicas afastadas da capital do meu estado. E sei que eu sou uma exceção na regra por vezes rígida que delimita e/ou enquadra o consumidor de cultura naquele binômio que eu mencionei – cultura erudita e cultura popular – a partir de sua origem social. E digo isso para recordar a grande e maravilhosa tarde em que a minha turma de 5ª série, da Escola Polivalente de Abreu e Lima, foi levada de ônibus num passeio ao sítio histórico de Olinda. Eu tinha onze anos naquele 1985; e foi naquela tarde de excursão escolar que pela primeira vez  na minha vida eu conheci um museu, que foi o Museu de Arte Sacra de Olinda. Nossa, a professora Maria Calado me proporcionou algo que foi realmente encantador para mim e não somente pelo acervo em si que eu vi ali, mas também a própria edificação e o zelo por tudo que estava exposto naquele espaço. Foi um passeio educativo em muitos sentidos, sendo o da descoberta e o do conhecimento os maiores deles.

Neste ano, numa mostra que teve início em abril e durou até o dia 28 de julho, uma enormidade de gente – mais de 400 mil pessoas! – diariamente formou filas diante do icônico Museu de Arte Moderna de São Paulo (Masp) para prestigiar uma exposição, um aprova de que não são poucos os indivíduos que têm interesse em frequentar instituições como o Masp. E tem mais: o público numeroso que acorreu para lá não foi até aquele museu conferir exposição de nenhum grande e renomado artista estrangeiro, como geralmente acontece, e sim para se extasiar com obras da brasileira Tarsila do Amaral (1886-1973), um dos nomes mais reluzentes da famigerada Semana de Arte Moderna de 1922 e, creio, a pintora nacional mais conhecida entre nós. Sim, claro, não é irrelevante o fato de que, apenas na terça-feira 23 de julho – às terças-feiras o acesso ao museu é gratuito – houve a entrada de 8.818 espectadores, um recorde de visitação do Masp  para um único dia. E eu fiquei cá comigo pensando: qual terá sido o total de visitantes que só compareceram à mostra nos dias em que não houve cobrança de ingressos?

A exposição Tarsila Popular, pelo que eu li em reportagens, reuniu ao menos uma obra que não pertence mais ao Brasil, que é a celebrada tela Abaporu, de 1928, que, por uma dessas demonstrações de desinteresse que pontuam ações tanto de gente endinheirada como do próprio poder público, que poderiam tê-la adquirido do brasileiro Raul Forbes, foi arrematada pelo argentino Eduardo Constantini num leilão havido na Christie’s de Nova York, em 1995, e que hoje repousa soberana no acervo do Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires (Malba).

Em que pesem o apuro artístico e estético da obra de Tarsila do Amaral, uma obra que, assim como a de Aldemir Martins e hoje a de Romero Britto, é algo muitíssimo pop a ponto de ilustrar embalagens dos mais variados produtos – eu, por exemplo, possuo latas do leite Molico decoradas com pinturas dela -, eu penso que, talvez, não fosse pelo fato de ter sido uma das artistas que participaram da Semana de Arte Moderna ao lado, entre outros, de Mario de Andrade, Raul Bopp e Oswald de Andrade, ela não alcançaria o patamar tanto de valor artístico e histórico quanto pecuniário que alcançou. Mas essa é uma discussão que merece outro artigo; e não é o fundamento deste.

Depois do muitíssimo lamentável episódio do incêndio havido o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, no ano passado, que, em poucas horas, transformou em cinzas peças que, em alguns casos, eram milenares, eis que vem uma parcela do público brasileiro nos dizer que, sim, frequenta e gosta de museus. A mostra Tarsila Popular, ocorrida no Masp figurará, eu aposto com qualquer um, como o grande acontecimento cultural deste ano de 2019, um ano em que, até agora, a arte, a  cultura e a liberdade de expressão neste país sofreram duros golpes desferidos pelos donos do poder, uma estúpida e inconsequente vanguarda do atraso.

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