14 de março de 2020

A Marcha das Mulheres não pode parar

Por Clênio Sierra de Alcântara

Fotos: Arquivo do Autor
Com a consciência de que o lugar delas é onde elas quiserem estar, há onze anos mulheres do Pólo da Borborema, no interior da Paraíba, saem em marcha para clamar por seus direitos e para dizer aos homens que existir com liberdade não pode ser só um privilégio para eles




Sobre não esmorecer e continuar lutando

Quando se tem conhecimento do quanto a figura da mulher é ainda maltratada no âmbito das sociedades ao redor do mundo, em geral, e no Brasil, em particular, facilmente se compreende o significado, a dimensão, o peso, o valor e a necessidade, a extrema necessidade de que eventos como a Marcha Pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia, que há onze anos vem ocorrendo no interior da Paraíba, permaneçam acontecendo sob diferentes bandeiras por este país afora.


Cenário da concentração do público para a Marcha: enquanto o sol duelava com as nuvens de chuva, o povo ia chegando













Se nas cidades, nos grandes centros urbanos brasileiros, as mulheres continuam sendo vítimas em potencial de homens que as objetificam e por isso as tratam como se elas fossem um bem, uma coisa qualquer que lhes pertence e sobre a qual eles podem mandar e desmandar, no campo a situação é ainda mais grave, porque, afastadas, muito afastadas das instituições governamentais que poderiam de alguma maneira ampará-las e/ou protegê-las, as mulheres da zona rural sofrem ainda mais com o recrudescimento de um arcaico processo de dominação patriarcal que tira delas qualquer possibilidade de viver a vida em plenitude, sem que se vejam ameaçadas, amordaçadas, limitadas e inferiorizadas por seus maridos e companheiros. Dito isso, a Marcha Pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia é um momento, é uma oportunidade de exorcização desses demônios de dominação, dessas práticas machistas retrógradas e feminicidas de homens que querem ter esposas como quem cria cabra. “Mulher não é cabra pra o homem soltar no terreiro de manhã e recolher de tarde”, já dizia a minha saudosa avó Maria da Conceição, que, mesmo sendo do campo e analfabeta, não se deixou prender a uma relação abusiva, se separou do meu avô e saiu de casa com uma penca de filhos nas costas – e saiu para nunca mais voltar.




Jane Travassos, a Fadinha Lilás, também marcou presença no evento










Convidadas de honra da Marcha, as cirandeiras Dulce, Lia de Itamaracá e Biu Baracho posaram para muitas fotos: quem manda ser estrela!



















A Marcha Pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia é uma marcha que celebra o poder de voz, de ação, de realização e de libertação do ser feminino; que incentiva a sua capacidade de escolha e de decisão; que esclarece sobre os direitos que elas têm; que as instrui sobre a sua liberdade de existir e sobre o seu espírito de liderança; é, em uma palavra, a exaltação do seu empoderamento.


Mulheres de várias idades estavam lá em Esperança para lutar pelos seus direitos. Como dizem por aí, é do pequeno que se faz o grande


A Marcha não é só para mulher, não, é também para homens que sabem respeitá-las e reconhecer que a mulher merece ser tratada com toda dignidade possível



















Neste ano o evento aconteceu anteontem, dia 12 de março, numa cidade que tem o alvissareiro nome de Esperança e que dista a cerca de 151 km de João Pessoa. Com o tema feminicídio, a edição deste ano destacou o vergonhoso e alarmante levantamento do número de assassinato de mulheres no Brasil, vitimadas quase sempre pelos homens que diziam amá-las. Faixas e cartazes lembravam o assassinato da vereadora Marielle Franco e de desconhecidas do grande público como  Deysiane, que foi assassinada há sete meses.
















Um palco para elas: poesias, discursos, depoimentos: a vida da mulher foi a pauta do dia, porque todo dia é dia da mulher



Vejam só como o público aumentou!




Deysiane foi mais uma vítima da chaga do feminicídio que está espalhada por todo o país


Tás indo pra onde, hein, Ganga Barreto? Com essa blusa florida não dá pra você se esconder, não


















Quem matou Marielle Franco? E por quê?







A comunidade gay também marca presença todos os anos na Marcha, porque o mundo é por excelência o lugar da diversidade



Lia e as irmãs Baracho no esquenta povo: ciranda para valer só depois da Marcha




















Nada de ôxe, é isso mesmo!






Caminhando por entre a multidão que ia se juntando defronte ao palco montado num campo de futebol, um espaço historicamente ocupado por homens, eu via o entusiasmo de mulheres de muitas idades e procurava ler em suas faces uma certeza e uma confiança num bom futuro para todas elas. No palco, outras figuras femininas prestavam depoimentos, liam discursos, proferiam palavras de ordem, declamavam poesias-protesto, falavam sobre estatísticas, maldiziam com pleno direito o presidente Jair Bolsonaro, talvez o mais misógino dirigente que este país já teve, cantavam cantigas de encorajamento e exortavam todas que ali estavam para que elas não esmorecessem e nem abandonassem a luta.






















Depoimentos


Nascida em Esperança, a agricultora Inácia Maria, de 66 anos de idade, conversou um pouco comigo. Muito entusiasmada, ela contou que produz feijão, batata-doce, milho, jerimum e fava no Assentamento Cícero Romana I. E por que foi à Marcha? “Vim porque gosto. Acho importante elas [as mulheres] estarem aqui porque tem violência demais no meio do mundo contra elas”, ela me disse.



As amigas Maria do Socorro e Inácia Maria: agricultoras que além de cultivar a terra, cultivam também a esperança e a cidadania. Palmas para elas





Quem também falou comigo foi Maria do Socorro, de 50 anos de idade. Amiga de Inácia Maria e igualmente agricultora no Cícero Romana I, ela me disse assim, explicando o porquê de estar ali no meio de centenas de outras mulheres para sair em marcha: “Pra mim é muito importante. Do jeito que está a violência contra a mulher, nós vamos lutar para diminuir”, ela destacou.

Embora receba um público majoritariamente feminino, a Marcha felizmente conta com a participação de muitos homens, o que eu considero algo bastante animador, porque denota que eles têm pelo menos conhecimento de que um evento como esse existe e que as mulheres sabem claramente do que elas precisam e querem para viver com plenitude e dignidade: amor, compreensão, liberdade, respeito e companheirismo.

Entre as dezenas de homens que foram até lá marcar presença estava Francisco Sales, de 73 anos de idade, aposentado por invalidez e morador do povoado de São Tomé, da cidade de Alagoa Nova. Ele me disse que foi a Esperança só para ver a Marcha; e, consciente da natureza e do objetivo daquele acontecimento, enfatizou: “Eu acho que é importante pra ver se os homens que não respeitam as mulheres acabem com a violência”.


Seu Francisco Sales, mesmo com a deficiência numa das pernas fez questão de prestigiar a Marcha das Mulheres




Hora de marchar e de dar as mãos para cirandar


O dia amanhecera chuvoso e tudo indicava que mais água iria cair. Mas que nada; por volta das 11:30 h, quando começamos a deixar a área da concentração e marchar por algumas das principais ruas do centro comercial de Esperança, o sol estava lutando contra as nuvens que insistiam em deixar o céu nublado.



A Marcha ganhou as ruas de Esperança: a luta não pode parar






Nas varandas das casas, nos locais de trabalho, de vários lugares o público prestigiava o cortejo








Por onde passava, o cortejo atraía a atenção das pessoas que estavam em suas casas, em seus locais de trabalho e até mesmo em escolas. A multidão seguia cantando e agitando bandeiras, dando uma entusiasmadora demonstração de que a firmeza de propósito e a crença em mudanças que tragam melhorias exigem esforços por vezes incessantes. E compromisso. E garra. E desprendimento. E força de vontade.






































































Andamos, andamos e retornamos ao ponto de partida, cansados mais ainda com energia suficiente para celebrarmos a apoteose da Marcha com o sol a pino: a exemplo do que fez em quatro edições do evento, a cirandeira Lia de Itamaracá pôs o povo para dançar e cantar ciranda. Nada mais simbólico e representativo do espírito de fraternidade e de comunhão do que uma roda de ciranda, onde ninguém solta a mão de ninguém e todos são iguais na roda da satisfação e da alegria.


Agora sim, bora cirandar, porque a roda da vida tem de continuar girando. Canta, Lia de Itamaracá!




Tu tás de costas mas eu tô te vendo, visse, Beto Hees?











Olha eu aqui pessoal: marchar com as mulheres me faz acreditar que este mundo ainda tem jeito


Essa foi a terceira vez que eu tomei parte na Marcha Pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia; e participar desse evento é, tem sido para mim, melhor dizendo, um exercício de compreensão e de contínua reavaliação do papel que eu tenho de desempenhar, como homem, numa realidade social que é ainda muito, muito perversa, covarde e brutal para com as mulheres; de modo que, sair em marcha ao lado delas, tentando absorver o que lhes motiva e encoraja a estarem ali  olhando firme para frente, sem baixar a cabeça, de alguma forma me humaniza, porque os homens, infelizmente, ainda somos uns seres por demais animalizados.


2 comentários:

  1. Há anos as mulheres bucam adquirir respeito e desigualdade social, o machismo torna-as verdadeiras propriedades dos trastornados senhores. Lutem, caminhem, gritem. E a sociedade liberta te apoiará. Difugem, acompanhe e todos saberá que houve luta.

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  2. Como é bom ter a ciranda como instrumento libertador, que quebra as algemas do preconceito e de outras mazelas. Saber que o papel da mulher é condição sine quanon,para que água mudança em uma sociedade extremamente machista e covarde. A expressão de cirandar é movimento genuíno que protesta e que da condição de voz as milhares de mulheres. Parabéns pelas conquistas e novas oportunidades . E viva as mulheres, viva lia de Itamaracá. Texto que exprime de forma literal a força das mulheres.... Parabéns CLenio Sierra pela cobertura e olhar libertador...

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