Na mesma noite em que eu
conheci Félix Oliveira, no centro do Recife – e isso tem quase dois anos -, ele
me falou com clareza e entusiasmo do trabalho social que vinha e vem realizando
no seu salão de beleza localizado na Rua Chã de Alegria, nº 30, principal
artéria do bairro Bomba do Hemetério, zona norte da capital pernambucana. E em
que consiste esse trabalho social que é uma verdadeira lição de cidadania e de
integração da população negra ao todo da sociedade? Formado em Embelezamento e Imagem Pessoal pela
Unopar, Félix Oliveira desenvolve com sua atividade profissional e em paralelo
a ela, uma ação que busca fazer com os negros se compreendam, se reconheçam e
se valorizem como tais a começar pela aceitação da naturalidade do tipo de que
cabelo que eles têm.
Parece pouca coisa, mas não
é; é algo extremamente transformador, principalmente quando se pensa o quanto
pesa na construção e aceitação de uma individualidade a questão estética,
sobretudo em sociedades que estabelecem e tentam impor padrões rígidos de
beleza notadamente valorizando um tipo específico de raça e/ou de cor de pele,
normalmente o branco, o que por si só é bastante absurdo num país como o Brasil
no qual a maioria da população é negra e parda.
Mas Félix Oliveira não
restringe a sua atuação como educador social ao campo estrito do cabelo. Ele
anda por aí dando palestras e promove nas dependências de sua casa, onde
funciona o seu salão, o Félix Oliveira
Estética Afro, o projeto O despertar
da minha ancestralidade, que consiste em rodas de diálogos temáticos com a
participação de convidados que expõem suas vivências e conhecimentos a respeito
do assunto posto em pauta – no último dia 5 de dezembro, por exemplo, ocorreu a
roda que teve como tema juventude negra, que eu tive o privilégio de acompanhar.
No mesmo dia 8 de novembro
do ano passado, em que eu fui prestigiar numa sala do Museu da Abolição, no
bairro da Madalena, também no Recife, a exposição fotográfica Erê Mukunã, idealizada pelo incansável e determinado
Félix Oliveira - as imagens foram feitas por Fernando Azevedo -, fui entrevistá-lo nas dependências do seu salão de beleza, um
verdadeiro ponto de resistência e de afirmação da negritude. Nascido José Félix
de Oliveira Júnior, em Goiana, no dia 10 de julho de 1983, na entrevista que me
concedeu ele falou não somente do momento atual em que vive, mas também de sua
infância difícil, quando começou a trabalhar aos dez anos de idade com uma
corajosa e invejável Severina Mariano, sua mãe, vendendo frutas e verduras como
ambulantes, além de milho, canjica, tapioca e bolo no Posto Alvorada; e relatou
ainda episódios de cruéis demonstrações de preconceito por ele vivenciados.
Na introdução do seu livro
poderoso que é intitulado de Mãe Negra (Trad. António Neves-Pedro. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978. A
edição inglesa é de 1961), o historiador e africanista britânico Basil Davidson
indaga: como foi que a Europa se expandiu e cresceu tanto em poderio e riqueza,
enquanto a África não conseguiu fazer o mesmo? E como foi possível que os
primeiros capitães europeus e os que os patrocinavam, tratassem os africanos
com o respeito devido a pares e posteriormente, pondo tudo isso de parte ou
mesmo esquecendo-o de todo, passaram a considerar os africanos como seres
naturalmente inferiores? (p. 6). Depois de amplas considerações, Basil toca
noutro ponto fundamental de todo o arcabouço escravagista que vitimou milhões
de negros durante séculos e que, não é difícil compreender por que, reflete até
hoje no nosso convívio social: “Mas havia também a degradação moral, tanto dos
escravos como dos esclavagistas. Através da escravatura dos Africanos, os
Europeus aviltavam também a sua própria humanidade” (p. 9).
O Museu da Abolição, no Recife, que recebeu a exposição fotográfica Erê Mukunã, com registros feitos por Fernando Azevedo. Abaixo algumas das fotografias que compuseram a mostra |
Eu xeroquei e guardei em meu
arquivo dois depoimentos de homens negros que foram publicados pela revista Veja, na seção Primeira Pessoa, no ano
passado. No primeiro deles, o ex-jogador de futebol Tinga, de 41 anos, disse
assim: “E no entanto reconheço que ainda que mudássemos a nomenclatura, mesmo
que começássemos a agir, haveria imensa dificuldade de acabar com o racismo. O
nó é que ele anda de mãos dadas com a ignorância, e ignorância é difícil de
combater” (Primeira Pessoa. “O que machuca é o preconceito no olhar”. Depoimento dado a Alexandre Senechal. Veja, São Paulo, Editora Abril, edição
2661, ano 52, nº 47, 20 de novembro de 2019, p. 88-89. 20 de novembro é o Dia
da Consciência Negra). No segundo, o ator Alexandre Rodrigues, de 36 anos, que
fez o personagem Buscapé no filme Cidade
de Deus, expôs a realidade de sua condição de negro: “Eu mantenho relações
com a Globo, porém apenas como freelancer. Ainda sonho e tenho esperanças em
assinar um contrato mais duradouro. No entanto, eles só se lembram de mim para
trabalhos que requeiram meu tipo físico específico – ou seja, papéis de negro”
(Primeira Pessoa. “Se apertar, viro Uber”. Depoimento dado a Eduardo F. Filho. Veja, São Paulo, Editora Abril, edição
2665, ano 52, nº 51, 18 de dezembro de 2019, p. 102-103).
Relendo esses depoimentos e
pensando na trajetória do meu entrevistado, eu me indaguei: “Será que Félix
Oliveira tem ideia da dimensão do papel de educador social que ele está a
desempenhar?”. E sem hesitar eu me disse: “Tenho absoluta certeza que
sim”. Filho de Ogum e de Oxóssi, Félix
Oliveira definitivamente não está para brincadeira; e tem disposição de sobra para quebrar
todos os grilhões de preconceito e para ultrapassar todos os obstáculos que vão surgindo em seu caminho.
O
senhor, ao mesmo tempo que exerce sua profissão de cabeleireiro, milita de
alguma forma na causa dos negros promovendo a valorização de uma negritude que
também pode ser exaltada pelos cabelos e pelos penteados afros. Como e por que
isso se deu em sua atuação?
Então, isso veio a partir de
uma cliente que me procurou, na época o meu salão era em Arthur Lundgren II, em
Paulista. E ela tinha ido em alguns salões: perdi até as contas de quantos salões,
sete, oito, dez, não sei, à procura de um penteado pra fazer no cabelo dela,
que era black power. E ela disse que todos os salões falavam pra ela que só
faziam o penteado se ela fizesse alisamento, algum procedimento químico. E aí
ela não queria porque ela se identificava. Ela era uma pessoa do Movimento
[Negro]; era uma mulher que se reconhecia como mulher negra; a partir de várias
distorções da sociedade ela sabia onde era o lugar dela de mulher negra e se
impunha isso. Ela se identificava com o cabelo dela. A partir daí ela tinha
essa dificuldade com a estética que toda vez que ela ia procurar algo [salão],
sempre era algo de negar o cabelo dela; e ela não conseguia fazer o penteado
que ela queria nesse dia. E eu falei pra ela: “Eu faço esse penteado sim. Basta
você vir meia hora antes do seu compromisso que aí a gente faz”. Ela ficou
surpresa. Inclusive eu falei pra ela vir com o cabelo já seco porque valorizava
o cabelo dela. Ela era linda. Enfim, ela nunca tinha encontrado um profissional
que falasse isso pra ela; na verdade, as pessoas só falavam ao contrário, né?
Que o cabelo dela era feio; que só ficava bonito se ela fizesse o alisamento; e
que ela não combinava com aquele cabelo, né? E ela se surpreendeu com a minha
fala. E logo depois que ela entendeu que eu fazia, então eu perguntei pra ela:
“Por que você não faz uma maquiagem?”. E ela disse: “Não, maquiagem não, porque
todas as pessoas que me maqueiam me deixam, querem me deixar branca” (risos).
Aí eu falei: “Não, sua pele é linda. Acho importante você fazer uma maquiagem.
Ó, se você não gostar, não tem problema, eu tiro toda a pele, faz só o olho,
enfim. Mas, vamos experimentar”. E aí ela foi e depois voltou. Foi porque era
cedo; ela voltou no horário que nós tínhamos combinado. Ai eu fiz o penteado
nela, fiz a maquiagem nela. E a partir daí, quando ela foi pra o compromisso que
ela tinha, todo mundo ficou lisonjeado com ela, né? Achando ela belíssima,
porque fazia um penteado que nunca ninguém tinha visto fazer em Recife, na
época; o evento foi no Recife, no Centro de Convenções. "E quem era essa pessoa
que tinha feito esse penteado e que tinha feito essa maquiagem que não tinha
embranquecido a pele dela?" E a partir daí ela começou a me indicar às clientes.
Ela era uma pessoa do meio da militância, né? Do Movimento Negro. E as pessoas
começaram a me procurar no salão. A partir daí eu comecei a ter um olhar
diferenciado pra esse público. Inclusive, eu me espantei muito com a minha área
enquanto cabeleireiro, de embelezamento. O quanto a área nos negava
profissionais a ter um olhar de beleza pra esse público. Eu não tinha muita
dificuldade com isso, porque eu sou um homem negro, mas que tem descendência
indígena, que tem o cabelo liso. Então eu nunca passei por esse preconceito de
cabelo. E as pessoas do Movimento e outras pessoas que não eram do Movimento
que passam por isso desde criança, enfatizavam muito mais isso. Então, dentro
do movimento de beleza, isso era extremamente negado, mas era tão natural que
você, dentro desse meio, não via isso, né? E a partir daí eu comecei a
entender, a entender, não, a perceber o quanto era negada essa beleza no meio
da beleza de salão de beleza. E aí as clientes começaram a me procurar. Mas eu
me questionava, porque, como eu já fiz vários cursos e um desses cursos eu gosto
muito que é química, então eu sabia o quanto a química agredia o cabelo de uma
maneira muito agressiva e se esse público, essa pessoa que fizesse essa química
não tratasse desse cabelo, ela não ia ter por longa data cabelo saudável. Aí
quando as pessoas começaram a me procurar, a partir dessa cliente, elas me
procuravam para fazer permanente afro e eu falava que não fazia permanente
afro: uma que eu não sabia; e outra porque quando eu fui aprender a fazer
permanente afro eu não aceitei aquilo sabe? Porque é uma química muito forte, é
uma química que o ph que abre a cutícula extremamente, que vai para além disso.
Então é um cabelo que ele é fraco e que tem uma química muito forte. E aí eu
não aceitava isso, né? Aí comecei a fazer tratamentos nesses cabelos que
apareciam. Vendia com o tratamento, maquiagem e cor, que eu sou colorista,
então vendia muita cor. Só que as pessoas tinham o cabelo black power, mas
algumas, naquela época, algumas não, a maioria não gostava, gostava de cacho,
queria ter cacho, entendeu? Por isso que elas queriam fazer permanente afro. E
aí eu não sabia fazer, não aceitava quando eu procurei aprender a fazer. E
comecei a me questionar e a procurar fazer uma técnica, desenvolver uma técnica
pra tentar adequar a esse público. Foi assim que eu comecei a ser reconhecido,
eu comecei a desenvolver umas técnicas que eu faço, para esse público, para
essa figura de cabelo que identifica como cabelo crespo e que tem uma
ondulação, que eu chamo de desestruturação, forma de cacho. Para que as pessoas
comecem, e isso também foi uma estratégia minha, para que as pessoas pudessem
tratar o seu cabelo. Porque, como elas não aceitavam o crespo, pra elas o crespo
era feio e pra algumas até hoje é feio, eu comecei a desmistificar isso, não é?
Foi quando, aos poucos, eu, sem perceber, comecei a entrar dentro do Movimento,
do Movimento Negro. E eu fui fazendo algumas atividades, as pessoas me
procuravam pra fazer. Aí essa cliente, que hoje é uma amiga, que é Gislana
Diniz, ela é do Movimento, uma vez por semana ela tava no salão tratando do
cabelo; vendo a mudança do tratar desse cabelo, ela entendeu que o cabelo
precisaria de um profissional que entendesse do seu cabelo pra cuidar dele.
Assim, sucessivamente, algumas pessoas viam ela como espelho, né? Ela me
indicava. Ela me deu um livro de Nilma Lino Gomes, Sem perder a raiz. E eu li
esse livro. E a partir desse livro mudou totalmente. Sabe aquele mundo que eu
tava ainda descobrindo, desmistificando o mundo da beleza europeu,
colonizador, aquele reboque, deixa robô, só naquela mente? E ainda assim,
enfatizado, mesmo com essa desmistificação, aos poucos, mas eu ainda enfatizava
muito, né? Por que quando eu falo em robotizado e enfatizado? Porque quando a
gente vai pra escola – e eu falo escola de beleza, né?, de cabeleireiro e tal -,
quando a gente vai estudar cabelo crespo, a gente estuda negar esse cabelo. A
gente não aprende a valorizar, tratar dele e passar pra cliente, que tem essa
fibra capilar, essa mulher na maioria das vezes negra, que ela tem uma opção
pra esse cabelo, ela pode tratar desse cabelo e ela pode fazer uma química
nesse cabelo.Não, a gente só aprende a passar pra essa cliente que ela tem que
negar, ela tem que alisar esse cabelo, né? Por isso, a gente fica muito
robotizado, porque na base já lhe passa isso. É tudo um processo de construção.
Se na sua família você não vê falando sobre beleza negra, quando você estudar
sobre beleza negra, a beleza negra é negada de uma forma que lhe conscientiza
que aquilo é normal, quando você vai passar pro público, você passa enfatizando
muito mais isso, né? Então , a partir daí eu descobri que isso é muito mais
além do que eu simplesmente achava, que era negação das duas partes, tanto do
profissional da beleza quanto dos clientes, né? Isso é uma negação de
identidade, uma negação identitária que passa por um viés que a maioria das
mulheres negras... Eu falo muito mulheres porque elas estão nesse lugar; o homem
é muito mais fácil; a mulher tem um processo mais dolorido, inclusive, dessa
negação do cabelo, quando a gente fala de cabelo, de beleza a partir do cabelo.
O homem a negação vem, mas é prática, porque é só pegar a máquina cortar o
cabelo, é raspar e é isso; a mulher não, a mulher, a menina, a criança enquanto
criança ela sofre muito, ela sofre na escola, ela sofre na família, né? Porque
ela prende esse cabelo, a mãe, a tia, a vó, a pessoa que toma conta prende
muito esse cabelo, faz muita trança, de um processo de negação da trança, não
valorizando, né? Fazendo a trança como valorizar esse cabelo e sim negando esse
cabelo; não tira o cabelo da criança da trança de jeito nenhum, é trança vinte e
quatro horas. E a partir daí eu comecei a entender e introduzir os meus
conhecimentos. Foi quando eu desenvolvi "Cabelo é uma questão de identidade".
Félix,
o senhor enxerga preconceito dentro da própria comunidade negra com relação à
exaltação da negritude e da descendência?
Tem, dentro da comunidade
tem muito, né? E isso foi uma construção que foi criada e que foi construída
para além dessa comunidade. Dentro das universidades, dentro das instituições
que têm um conhecimento intelectual, a negação ela é muito forte, logo a
negação nessa comunidade não ia ser diferente, né? Não ia ser diferente e ela é
um pouco mais enfatizada porque a gente sabe que a maioria das pessoas que tá
nesses lugares se negando, reproduzindo essa negação do preconceito homofóbico,
enfim, todo esse preconceito que a gente sabe que é uma falta de respeito
partindo da base, é um processo de falta de conhecimento, na maioria das vezes,
falta de conhecimento porque o conhecimento que é passado pra essa população,
na maioria das vezes, é passado popularmente. Qual é a informação que a gente
vê popular trazida na TV como referência, por exemplo? A TV ela sempre passa
algo para que as pessoas introduzam aquilo que ela tá passando. Então o que a
TV passa é o cabelo liso, a beleza é beleza branca, o homem tem de ser galã...
Vendendo
um modelo, né?
Vendendo um modelo
justamente para ser vendido, né?
Quer dizer, estabelecendo um modelo para ser
vendido.
Isso, estabelecendo um
modelo para ser vendido; o que a gente chama de padronização. Ela padroniza
esse modelo. E ela é muito estratégica. Ela sabe que a maioria da população é
negra; a maioria da população periférica, suburbana, ela consome, entende? E
como é que ela vai consumir mais do que o normal? Um exemplo, porque eu se eu
tiver um cabelo – falando de cabelo -, se eu tiver um cabelo cacheado e eu vou
valorizar esse cabelo, eu não vou comprar alisamento, entendeu? Eu não vou
comprar alisamento, eu não preciso a cada três meses tar num salão de beleza ou
em casa fazendo esse processo de alisamento, me machucando e desenvolvendo
alguns traumas, que é o que acontece, né? Eu não ia tar fazendo isso. Eu não ia
desenvolver produtos para esse público para ele consumir muito mais do que ele
precisa, você entende? Porque, por exemplo, hoje, quando a gente encontra uma
pessoa que se identifica com o seu cabelo, com a sua pele, com o seu jeito,
como realmente você veio [ao mundo], que é um processo de construção, né?, que é
o tempo inteiro que a gente fica, essa pessoa com certeza consome muito menos
do que uma pessoa que se nega. São dois viés: além dessa pessoa consumir menos
do que a que se nega, a que se nega ela consome muito mais, porque elas sempre
vai tar, ela sempre, na verdade, vai tar sonhando em ter uma beleza que nunca
vai encontrar, ela nunca vai encontrar essa beleza. E essas pessoas, na maioria
das vezes, elas estão nas periferias, tá nos subúrbios. Por isso que hoje a
gente [tem] uns desenvolvimentos de conhecimentos, né? Pra que chegue a informação a
essas pessoas, porque a gente sabe que algumas pessoas vêm com algumas falas de "O próprio negro é racista com ele mesmo". E a gente tem o maior cuidado de
dizer que isso não é racismo entre ele mesmo, isso é uma reprodução de racismo,
né? Porque se ele soubesse o quanto a perversidade do racismo dói nele, ele não
faria isso. Aí a gente entende e a nossa política é, pedagogicamente, conscientizar
essa pessoa de alguma forma.
Em
seu local de trabalho costuma ouvir episódios de preconceitos de cor
vivenciados por seus clientes?
Não, não, é muito difícil. Já
acontece de uma maneira muito sutil, sabe? Mas não só eu, a maioria dos
clientes que vem no salão é consciente desse processo, dessa negação, desse
preconceito que, educadamente, eu, na maioria das vezes, quando não eu, algum
cliente se prontifica de passar na minha frente e conscientizar essa pessoa da
fala que ela falou, sabe? Porque às vezes, às vezes não, a gente sabe que tem
falas extremamente preconceituosas e racistas que a maioria das pessoas não tem
formação, não tem noção disso. Um exemplo: “Não, eu não vou me denegrir a isso”.
A gente sabe que denegrir é se tornar negro. E a maioria dessas pessoas quando
tem essa fala, ela tá falando sempre de maneira ruim, pejorativa, daquele lugar, denegrir não seria legal, não seria bom. E aí tanto eu quanto a maioria do
público que vem no meu salão é consciente disso; se encontra uma pessoa falando
disso dentro do salão, pedagogicamente, principalmente eu, de uma maneira
educativa, com educação, aborda essa pessoa falando pra ela e explicando, né? Que
não é isso, [que] ela tenha cuidado. E aí, às vezes, ela enfatiza isso: “Não,
mas não é isso”. "Não, mas eu sei que você não quis".
Não,
Félix, eu estou dizendo assim de uma história que ela passou de preconceito,
não que ela não entenda. Eu perguntei se você já ouviu histórias de pessoas que
sofreram preconceito.
Ah, tá, desculpa. Respondendo
realmente à pergunta, eu queria te falar que 98% das pessoas que vêm no meu
salão têm histórias de preconceito.
Diga-me:
em que medida o senhor percebe a representatividade do negro na sociedade
brasileira de um modo geral?
Muito pouca, muito pouca
ainda. As pessoas falam, né? A gente sabe que a internet hoje tá um boom. Eu sempre
falo que é um boom de dois viés: o lado bom e o lado ruim, o lado negativo e o
lado positivo. Na internet e no dia a dia também as pessoas ficam falando que
hoje tá muito diferente, hoje as pessoas tá se reconhecendo enquanto negra,
hoje... Mas não é assim. Eu falo pra você que não é assim porque quando a gente
vai falar de numeração, as últimas feiras nacionais que eu fui, mais ou menos
tinham uns trezentos e cinquenta estandes falando de produtos de beleza e tinha
um, dois falando sobre produto de beleza negra. A partir desse número você
entende que a indústria ainda tem uma negação muito forte com isso, né? E as
pessoas vêm para mim [e] diz: “Ah, Félix, mas na TV a gente vê pessoas
negras, dois, três negros”. Existe uma lei; se não existisse essa lei de
introdução desse corpo negro dentro desses lugares, desses ambientes, desses
locais, eles não estavam. Não é simplesmente porque um canal de TV sabe que
independente de raça, a educação e o poder de reconhecimento de tar ali é
igual. Sabemos que não é; a oportunidade ela é muito diferente disso. Então ainda
tá muito longe de ter essa igualdade, né? Trazendo a igualdade para isso, nesse
viés. Mas a gente sabe que é resistindo e essa nossa política pedagógica de conscientizar
as pessoas pode chegar a viver [n]esse lugar.
O
senhor é vinculado a alguma instância do chamado Movimento Negro? E como avalia
a atuação do Movimento?
Oficialmente eu não tenho
nenhum vínculo com nenhum Movimento Negro. Oficialmente que eu falo é assim, de
tar participando, não, não tenho. Toda a minha política, minha política, não...
Toda a minha política do processo racial dos movimentos são indiretamente. Indiretamente
que eu falo, porque eu não tô lá naquele grupo, fazendo parte daquele grupo. Então
o grupo de terreiros, todos sabem da minha política. O Movimento Negro sabem da
minha política. As mulheres de terreiros sabem da minha política. A Caminhada
das Mulheres sabem da minha política. Então, assim, eu desenvolvi por esse
tempo que eu venho trilhando, uma política, uma luta diária, mas minha, que eu
compartilho, né? E agradeço, inclusive, aos movimentos, porque se não fosse os
movimentos, o Movimento Negro, o MNU foi o primeiro Movimento, né? Nosso. Se não
fosse esse Movimento eu não estaria agora enfatizando todo o meu trabalho que
eu venho fazendo e, inclusive, dando esta entrevista.
MNU
é Movimento Negro Unificado, né?
É. Ele foi o primeiro
Movimento do Recife. Eu conheço as pessoas, não todas, que fundou o MNU, mas eu
conheço algumas que tavam lá desde o início, sabe? Vera Barone, que é uma das
referências que a gente tem no Movimento Negro que é pra bater a cabeça pra
ela; bater a cabeça é reverenciar, né?, no nosso axé, porque ela e outras e
outras mulheres, na maioria mulheres, alguns homens, estava nesse início dessa
construção identitária que as pessoas diziam com certeza que essas pessoas eram
loucas, estavam doidas porque exigir seus direitos não era direito fazer isso,
né? E hoje estamos aqui.
O
que o levou a conceber a exposição fotográfica e quais foram as dificuldades
encontradas para realizá-la?
A exposição fotográfica
chamada Erê Mukunã...
O
que significa Erê Mukunã?
Erê é criança, em iorubá. Mukunã
é cabelo. Aí a qente trouxe a
referência de Erê Mukunã, porque Mukunã retrata toda a política, o
reconhecimento a partir desse cabelo, a partir da estética, né? E Erê porque
tem muitas crianças e a gente sabe que a base identitária é a partir da criança,
né? Por isso que tem esse nome. E a dificuldade de fazer essa exposição ela foi
imensa; queria falar porque ela foi seis anos, né?, pra tirar, pra ver aquela exposição
que não é muita coisa, né?, não é muita coisa, a exposição. Mas depois de três
anos, três a quatro anos, eu consegui a parceria com duas meninas, duas
pedagogas que é Gal Almeida e Paula Ferreira, que tão comigo com o projeto,
né?; mas as meninas têm os seus afazeres, porque como o projeto ele não foi,
não teve um projeto aprovado para desenvolver...
Editais,
né, você tá falando?
Isso, editais. Não teve. E aí
as meninas têm seus trabalhos; e elas falaram das limitações delas pra mim e eu
falei pra elas que eu tinha que colocar essas fotografias na rua, porque as
mães e os pais dessas crianças estavam me cobrando já, né? Pra mim era uma
resposta positiva, inclusive, que a sociedade precisava desse trabalho. Então a
dificuldade foi tamanha, porque achava que conseguia um patrocínio e não
conseguia; uma pessoa de determinada marca disse que ia patrocinar tantos
valores, aí, na hora, não patrocinou. E aí fui atrás; enfim, teve várias
complicações e você praticamente para fazer tudo é bem complicado.
As
crianças negras de sua comunidade, a partir de seu salão, são de alguma forma
esclarecidas sobre o que elas são e representam não só no local onde vivem, mas
também na sociedade como um todo?
Faz um tempo eu venho
falando para algumas clientes e algumas pessoas aqui no salão o quanto mudou. Hoje, quando a gente vai pra rua e vê as crianças indo pra escola, né?, que eu
moro aqui perto de uma escola, o quanto as crianças estão livres com seus
cabelos, né?, muito livres mesmo. Eu faço um trabalho nas escolas, mas que é um
trabalho ainda muito pequeno; ele precisa ser mais enfatizado pelas escolas,
pelos educadores dessas escolas, porque há uma dificuldade muito grande com
isso também; os educadores, eu falo, os gestores, os professores das escolas,
eles, pra entender que também precisa desse conhecimento identitário para essas
crianças, há uma longa caminhada pra conscientizar esses educadores a isso. Eu venho
fazendo alguns trabalhos quando as professoras que vêm no meu salão me convidam
para dar uma fala, uma palestra nas escolas; e, quando eu chego pra dar essas
palestras, essas falas nas escolas, eu me deparo com muitas crianças hoje se
fortalecendo, né?, se empoderando com o cabelo.
Que
bom!
Como
o senhor enxerga, em sentido amplo, a condição do negro na sociedade
brasileira?
Muito... Muito difícil, né?
A gente pensar em mil e uma palavra, mas a dificuldade é.... Acredito que seja
a palavra mais certa é “por quê”. Estamos muito precário ainda de
reconhecimento intelectual. E aí, quando eu falo precário nesse conhecimento
intelectual...
Mas
você fala quem? A gente quem? O negro?
A gente o negro. Porque a educação
de base ela é muito fraca, né? Logo, por essa deficiência dessa educação de
base, os corpos negros que se encontram dentro dessas escolas, dessas
instituições, eles são fracos de conhecimento; se eles são fraco de
conhecimento, no decorrer da vida dele, eles vão ter barreiras muito grandes
pra passar, eles não vão conseguir
passar, aliás, não tamos conseguindo passar. Aí você pode perguntar: “Mas Félix a
cota é um processo que hoje ampliou muita coisa e tal?”. Ainda é muito pouco. Ainda
é muito pouco, porque a cota ela já tá na universidade, nos concursos públicos,
entende? A cota não tem como ela... O
projeto cota não tem como estar na base, na educação de base, educação de base
tem que ter investimento, um grande investimento, esse investimento ele não foi
visto ainda. Educação ela não tem preço, educação de base ela com certeza não,
principalmente, não tem preço. Então se essas crianças, esses corpos negros que
não tenham um conhecimento intelectual devido da sua posição de direito, como é
que essas pessoas, esses corpos vai exigir seus direitos. E aí o que acontece é
que esses corpos eles abaixam as suas cabeças, eles acham que estão errado,
entende? Acham que estão errados e os lugares e os lugares deles são sempre os
lugares subalternos. E eles acham ainda, quando a gente fala de maneira que não
é legal a gente se ver ali, que tá dizendo que aquele posicionamento de
trabalho de um gari não é bom. Não, não é isso, é que a gente não quer nos ver
nossos corpos só nesses lugares, entende? A gente quer chegar num hospital, o
maior exemplo é o hospital, você vai num hospital e começa a ver as pirâmides
do hospital. Quem tá no topo sempre é branco. Dificilmente a gente é receitado
por alguma mulher ou um homem negro, doutor, médico, né? A gente vai pro gari
que é preto, vai pra enfermeira que é preta, na maioria das vezes. Um enfermeiro-chefe
preto, vá lá que seja preto. Já começa a embranquecer daí...
Nem
enfermeiro é, é técnico em Enfermagem, né?
É, técnico em Enfermagem. Aí
vem a enfermeira-chefe. Quando chega no médico, que é o topo, ele é branco,
entende? Então, assim, pra gente passar todo esse caminhar, esse degrau é muito
longo ainda. Então a deficiência pra intelectualidade que a gente sabe da
educação de base, ela não existe pra esse público negro, entende? Então,
enquanto não existir essa educação de base, a gente, chegar um pouco na
igualdade dessas duas raças, vai tar muito longe ainda.
Em
algum momento de sua vida o senhor se sentiu um inferior no meio social?
Alguns momentos eu me senti
inferior. Me senti inferior... O meu trabalho ele me remete... O meu trabalho,
que eu falo como educador social, hoje, ele me leva em algumas universidades
para falar do meu trabalho, desenvolvimento do meu trabalho e eu me deparo, às
vezes, com médicos, médicos não, doutores, desculpa, na banca falando sobre
construção identitária e eu tô naquele lugar, né? E a maneira da fala, no
início, que eu comecei a ocupar esse espaço, ela me inferiorizava muito, porque
a expressão, a maneira do falar, eu me inferiorizava com isso. Hoje eu tô outro
(risos). Eu falo do jeito até onde o meu conhecimento vai. Às vezes algumas
pessoas falam: “Félix, não é assim”. Mas é assim que eu sei. Então, é isso que
é. Hoje eu sei me impor em qualquer lugar, independente que seja um lugar
extremamente intelectual ou não. Então hoje eu tõ muito tranquilo nessa viés,
mas eu já me senti muito rebaixado. Fui numa determinada loja, como a maioria
dos corpos negros passou por isso, e vigilante tava atrás de mim, sabe? As pessoas
se levantavam na hora de eu chegar. Uma coisa bem absurda foi uma cliente minha, que é fisioterapeuta,
e tava dando aulas de Pilates e, enfim, eu fui lá no estúdio dela e esqueci meu
celular em casa. No meio do caminho, eu tava de bike, que eu gosto, aí fui
pedir informação, era um bairro nobre daqui do Recife. Ninguém parou para me
dar explicação. As pessoas entravam dentro dos prédios, entravam dentro da
loja... E eu fiquei desesperado. Teve outros momentos muito difíceis, mas esse
foi bem marcante pra mim. Eu disse: “Não, como assim? Eu tô querendo uma
informação”. Uma senhora lá entrou ela numa loja; tava fechada a loja, sabe? Ela
ficou toda sem jeito, mesmo assim ela ficou lá na loja como se fosse abrindo a
loja. E aí eu voltei pra minha casa. Mandei uma mensagem pra minha cliente
explicando pra ela o quanto eu tava mal, que fiquei supermal com isso. Ela disse:
“Não, Félix, não é assim”, sabe? É uma pessoa que não sabe disso. Então é
difícil...
É,
não sabe disso. Acha que não acontece.
É, que não acontece, né?,
ainda tem isso. A gente só sabe algo que a gente passa, porque a maioria das
pessoas fala que tudo que a gente fala é preconceito...
Por
mais que ela tenha empatia, não é a mesma coisa, não é...
Mas não é. Por mais que a
gente tente, por exemplo...
Se
pôr no lugar do outro.
Se pôr no lugar do outro....
Nós, como homens, sabemos dos nossos direitos e dos nossos privilégios, por
mais que a gente queira entender o lugar da mulher, a gente não consegue, quem
sabe é ela que passa por isso, né? Então, isso foi um viés que me doeu muito. Fica
marcado, né? Fica muito marcado. Mas eu tenho uns privilégios, eu sei. Eu tenho
privilégio de ser homem na sociedade que nós vivemos. Eu tenho um privilégio de
ser um homem negro mas com descendência indígena, com o cabelo liso, né? Então
eu não sou parado, como vários irmãos meus, que é parado nas esquinas por ser
negro e tar com os trajes que acha-se que é malandro, que tá com droga, enfim. Aqui
na Bomba do Hemetério a gente vê isso, param os meninos que simplesmente eles
estão vestidos da maneira que eles gostam. “Ah, é malandro, não é malandro?”,
mas eles gostam e tem que ter respeito.
Que
gostam e é a condição que eles têm.
E a condição. Ainda tem esse
lado. A condição social e o lugar que aquela pessoa se entende. Ela se sente
bela daquele jeito. Ela não se vê de terno, de gravata: primeiro porque ela não
vai ter dinheiro pra comprar; segundo, que ela não vai se ver naquele lugar,
né? Então, os amigos se vestem assim, eu também me sinto bem me vestindo assim,
mas a polícia não tem direito de parar, de, inclusive, fechar a rua para
simplesmente dizer que eu tô com droga sem eu estar com droga. Então, assim, eu
tenho esse privilégio de não acontecer isso comigo ainda (risos). Eu tive um,
um não privilégio, lógico que isso não é privilégio, mas uma situação que
aconteceu comigo: eu tinha comprado o meu carro em dezenas [de] parcelas (risos),
mas é um carro zero, né?; e eu fui parado duas vezes no carro por quatro motos.
E eu não tava entendendo por quê. Até hoje eu não sei... Na verdade, hoje eu
sei por quê. Na verdade, eu já sabia por que era. Mas aí ele disse simplesmente [que] era suspeita de assalto. “Como assim, suspeita de assalto? Não tô entendendo”. “Desça
do carro!”. Não deixa a pessoa falar, não deixa a pessoa se expressar, né? “Desça
do carro!”. “Moço, o que é que tá acontecendo?”. “Desça do carro!”. “Eu posso
saber o que tá acontecendo?”. Bota a mão pra cima!”. “Hã?!”. “Bota a mão pra
cima!”. Aí tá. Depois de um tempo passado eu disse: “Sim, mas o que aconteceu, o
que é que tá acontecendo? Acho que eu tenho direito de saber o que é que tá
acontecendo”. “Não, acho que seu carro tava suspeito de assalto”. “Ôxe, como
assim, meu velho? Suspeita de assalto? E você chega desse jeito? E você acha que
tava suspeita de assalto eu tinha deixado, primeiro, que eu retornasse a
velocidade que você me encontrou; e, segundo, que eu não taria perguntando o
que tava acontecendo da maneira que eu tava perguntando, porque você sabe muito
bem da maneira que um ladrão, um assaltante faz, você sabe das maneiras que é
falado, você viu que não era isso. Mas simplesmente eu sei, porque era um homem
negro que tava num carro que pra polícia, infelizmente, né?, é com certeza, a
polícia estuda isso com o público, estuda com o público, não, com o curso que
ela faz, que o mal, a marginalidade ela tá sempre nesse corpo negro”. Então indiretamente
não, mas introduzido na mente desse ser humano, quando ele tá em prática na
rua, primeiramente que ele vai entender é isso, né? Então [foram] essas situações que
eu passei, mas que só fez eu me enfatizar o que realmente a sociedade é, né? E também
a nossa política de desmistificar e passar pra sociedade que isso existe e que
a nossa luta justamente é pra minimizar essa situação.
Félix
Oliveira, o que é ser negro, gay e morador de periferia num país tão
preconceituoso, machista e brutal como o Brasil?
É um pesadelo (risos). É um
pesadelo. É muito duro, muito ruim, muito ruim. Para além disso, um homem gay,
negro, periférico com essa brutalidade que a gente vive e ainda vindo de uma
mulher prostituta do interior. Eu saí do interior por causa disso. Eu saí do
interior, porque na rua que minha mãe morava, eu não brincava com as pessoas,
não brincavam comigo na maioria das [vezes], porque minha mãe não tinha condições
financeira boa e minha mãe era prostituta. Minha mãe era prostituta; na época
ela vendia a carne para dar de comer a gente, né? As pessoas sabiam. Eu soube
pelas pessoas, né? E aí foi quando ela falou pra gente de uma maneira muito...
Mas
ela não vivia com teu pai, não, né?
Não, não. Eu sou filho de
uma mulher de sete filhos; e são [de] pais diferentes. E com isso, a minha mãe, com a
deficiência da educação, ela não conseguiu dar educação, ela conseguiu criar os filhos, né? E dar a
educação que ela entende por educação...
Ela
dava uma educação diferente, né?
É, uma educação diferente.
Por exemplo, a honestidade que eu tenho, eu tenho da minha mãe, eu vim com ela
disso...
Apesar
de tudo, né?
Apesar de tudo. Eu sou um
homem hoje neste lugar que eu tô por causa da minha mãe também, entende?
Claro.
A gente corre atrás, mas tem
a base ali. Se ela não tivesse passado o que ela passou, vendido a carne pra me
dar de comer, talvez eu não tenha sobrevivido, né? E assim, e aí, quando eu entendi
isso, eu disse: “Não, eu quero é sair daqui. Aqui não é o meu lugar”. Eu vou em
Goiana muito pouco, que é a cidade de onde eu sou natural; eu sou natural de
Goiana, mas é uma cidade que eu só vou porque minha mãe mora lá e ela tá num
processo de doença, que eu tenho que tar com frequência indo e voltando. Mas
não é uma cidade que me traz muitas lembranças boas, porque é uma cidade
extremamente racista. Os interiores, na maioria das vezes, são muito racistas,
né? A gente vê coisas absurdas ainda, até hoje, que a gente não vê na capital.
E falando do bairro, da periferia...
Saísse de lá com quantos
anos, Félix?
Eu saí de lá [com] uns vinte e
três anos, mais ou menos. É porque a minha mãe me prendeu muito, eu comecei a
trabalhar aos dez com ela. Vim sair sozinho pra rua aos dezenove anos (risos).
Eu era o braço direito da minha mãe.
Quando
você trabalhava com ela, ela ainda estava na prostituição ou havia parado?
Não, quando a gente começou
a vender ela parou, ela parou porque os filhos, os filhos não, o filho, que eu
era o único filho que ajudava ela nessa atividade de tar vendendo as coisas,
porque eu entendia (risos) que pra comer tinha de trabalhar mesmo. E na
periferia, quando eu vim pra periferia, eu já vim com privilégio, então, eu,
como Félix Oliveira, na Bomba do Hemetério, eu não me vejo com uma dificuldade
muito grande pra viver na periferia, eu, né? Mas eu vejo que os meus vizinhos e
outros lugares, ruas diferentes eu ando aqui no bairro, é bem punk, é bem
complicado, né? As pessoas chegam, as pessoas que falam, que conversam
comigo... É muito difícil, porque, aquilo que a gente falou anteriormente: o
processo de não me ver nesse espaço, né?; e conseguir me ver em outro espaço,
ela é limitada, né? Ela é limitada. E a periferia, a cidade, o centro da
cidade, né?, as pessoas que, os políticos que tá nesse lugar, de conscientizar
essa população com instrumentos que a política tem, que eu falo de igualdade
racial, de direitos humanos, a educação de base e tal, eles não fazem esse
trabalho, né? “Félix tu tá radicalizando”. Não, eu falo de uma maneira que eu
entendo, que eu vejo. Eles fazem um trabalho de maquiagem, né?, que a gente
chama muito, né? Eles mostram que fazem, mas a gente sabe que eles não fazem. E
aí a gente às vezes reclama porque tem dois viés: aqui no bairro da Bomba do
Hemetério tem muito córrego, né;, e a
gente vê muitas pessoas jogando lixo no córrego. É falta de educação? Muita,
muita falta de educação. Só que são dois viés: a Prefeitura também não tem um
trabalho para educar esse povo. A Prefeitura tem recurso que é bilionário, que
vem, ela faz aquele serviço e daqui a um ano ela vem fazer aquele serviço de
novo. Só que aquela população, ela continua com a limitação de educação ainda,
sabe? E aí aquele filho daquela menina que tava ali, naquele lugar, vai
continuar com essa mente ainda...
Reproduzindo,
né?
É, reproduzindo isso. Então fica
muito difícil isso. Tem o processo do ser humano, que a gente sabe que poderia
muito bem acordar pra isso, mas a gente sabe das limitações; e tem o processo
das instituições, da política, que também faz questão de só maquiar, sabe?, de
só fazer aquele processo de “Ah, eu estou fazendo”, mas enfatizar. A gente sabe
que educar não é totalmente, é algo contínuo, né?
Pintura que foi feita numa das paredes do salão de beleza: aqui e ali a valorização da estética do negro dita a razão de ser do trabalho de Félix Oliveira |
É permanente.
É permanente. Você vem, você
faz, você ensina a engatinhar, depois ensina a andar, depois tá andando, depois
tá falando, enfim, né? É isso. Enquanto não existir realmente essa política,
essa didática, para essa população, a gente sabe que é muito difícil a gente [an]dar [n]uma Bomba do Hemetério e ver um bairro limpo, entende?. É isso (risos).
Obrigado, querido.
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