7 de março de 2020

Tecendo com fios de cabelo uma rede de resistência e de afirmação da negritude: entrevista com Félix Oliveira

Por Clênio Sierra de Alcântara


Fotos: Arquivo do Autor
Evidenciando que a luta não para, Félix Oliveira, profissional mais do que competente, vem ao longo dos anos realizando uma atividade como educador social em paralelo com o seu ofício de cabeleireiro e maquiador


Na mesma noite em que eu conheci Félix Oliveira, no centro do Recife – e isso tem quase dois anos -, ele me falou com clareza e entusiasmo do trabalho social que vinha e vem realizando no seu salão de beleza localizado na Rua Chã de Alegria, nº 30, principal artéria do bairro Bomba do Hemetério, zona norte da capital pernambucana. E em que consiste esse trabalho social que é uma verdadeira lição de cidadania e de integração da população negra ao todo da sociedade? Formado em Embelezamento e Imagem Pessoal pela Unopar, Félix Oliveira desenvolve com sua atividade profissional e em paralelo a ela, uma ação que busca fazer com os negros se compreendam, se reconheçam e se valorizem como tais a começar pela aceitação da naturalidade do tipo de que cabelo que eles têm.




Parece pouca coisa, mas não é; é algo extremamente transformador, principalmente quando se pensa o quanto pesa na construção e aceitação de uma individualidade a questão estética, sobretudo em sociedades que estabelecem e tentam impor padrões rígidos de beleza notadamente valorizando um tipo específico de raça e/ou de cor de pele, normalmente o branco, o que por si só é bastante absurdo num país como o Brasil no qual a maioria da população é negra e parda.




Mas Félix Oliveira não restringe a sua atuação como educador social ao campo estrito do cabelo. Ele anda por aí dando palestras e promove nas dependências de sua casa, onde funciona o seu salão, o Félix Oliveira Estética Afro, o projeto O despertar da minha ancestralidade, que consiste em rodas de diálogos temáticos com a participação de convidados que expõem suas vivências e conhecimentos a respeito do assunto posto em pauta – no último dia 5 de dezembro, por exemplo, ocorreu a roda que teve como tema juventude negra, que eu tive o privilégio de acompanhar.

No mesmo dia 8 de novembro do ano passado, em que eu fui prestigiar numa sala do Museu da Abolição, no bairro da Madalena, também no Recife, a exposição fotográfica Erê Mukunã, idealizada pelo incansável e determinado Félix Oliveira - as imagens foram feitas por Fernando Azevedo -, fui entrevistá-lo nas dependências do seu salão de beleza, um verdadeiro ponto de resistência e de afirmação da negritude. Nascido José Félix de Oliveira Júnior, em Goiana, no dia 10 de julho de 1983, na entrevista que me concedeu ele falou não somente do momento atual em que vive, mas também de sua infância difícil, quando começou a trabalhar aos dez anos de idade com uma corajosa e invejável Severina Mariano, sua mãe, vendendo frutas e verduras como ambulantes, além de milho, canjica, tapioca e bolo no Posto Alvorada; e relatou ainda episódios de cruéis demonstrações de preconceito por ele vivenciados.



Félix Oliveira em ação: dupla jornada, podemos dizer assim, é o que realiza esse goianense batalhador e consciente de que tem um papel a desempenhar em sua comunidade, e para além dela ,como educador social

Na introdução do seu livro poderoso que é intitulado de Mãe Negra (Trad. António Neves-Pedro. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978. A edição inglesa é de 1961), o historiador e africanista britânico Basil Davidson indaga: como foi que a Europa se expandiu e cresceu tanto em poderio e riqueza, enquanto a África não conseguiu fazer o mesmo? E como foi possível que os primeiros capitães europeus e os que os patrocinavam, tratassem os africanos com o respeito devido a pares e posteriormente, pondo tudo isso de parte ou mesmo esquecendo-o de todo, passaram a considerar os africanos como seres naturalmente inferiores? (p. 6). Depois de amplas considerações, Basil toca noutro ponto fundamental de todo o arcabouço escravagista que vitimou milhões de negros durante séculos e que, não é difícil compreender por que, reflete até hoje no nosso convívio social: “Mas havia também a degradação moral, tanto dos escravos como dos esclavagistas. Através da escravatura dos Africanos, os Europeus aviltavam também a sua própria humanidade” (p. 9).


O Museu da Abolição, no Recife, que recebeu a exposição fotográfica Erê Mukunã, com registros feitos por Fernando Azevedo. Abaixo algumas das fotografias que compuseram a mostra


























Eu xeroquei e guardei em meu arquivo dois depoimentos de homens negros que foram publicados pela revista Veja, na seção Primeira Pessoa, no ano passado. No primeiro deles, o ex-jogador de futebol Tinga, de 41 anos, disse assim: “E no entanto reconheço que ainda que mudássemos a nomenclatura, mesmo que começássemos a agir, haveria imensa dificuldade de acabar com o racismo. O nó é que ele anda de mãos dadas com a ignorância, e ignorância é difícil de combater” (Primeira Pessoa. “O que machuca é o preconceito no olhar”.  Depoimento dado a Alexandre Senechal. Veja, São Paulo, Editora Abril, edição 2661, ano 52, nº 47, 20 de novembro de 2019, p. 88-89. 20 de novembro é o Dia da Consciência Negra). No segundo, o ator Alexandre Rodrigues, de 36 anos, que fez o personagem Buscapé no filme Cidade de Deus, expôs a realidade de sua condição de negro: “Eu mantenho relações com a Globo, porém apenas como freelancer. Ainda sonho e tenho esperanças em assinar um contrato mais duradouro. No entanto, eles só se lembram de mim para trabalhos que requeiram meu tipo físico específico – ou seja, papéis de negro” (Primeira Pessoa. “Se apertar, viro Uber”. Depoimento dado a Eduardo F. Filho. Veja, São Paulo, Editora Abril, edição 2665, ano 52, nº 51, 18 de dezembro de 2019, p. 102-103).

Relendo esses depoimentos e pensando na trajetória do meu entrevistado, eu me indaguei: “Será que Félix Oliveira tem ideia da dimensão do papel de educador social que ele está a desempenhar?”. E sem hesitar eu me disse: “Tenho absoluta certeza que sim”.  Filho de Ogum e de Oxóssi, Félix Oliveira definitivamente não está para brincadeira; e tem disposição de sobra para quebrar todos os grilhões de preconceito e para ultrapassar todos os obstáculos que vão surgindo em seu caminho.





O senhor, ao mesmo tempo que exerce sua profissão de cabeleireiro, milita de alguma forma na causa dos negros promovendo a valorização de uma negritude que também pode ser exaltada pelos cabelos e pelos penteados afros. Como e por que isso se deu em sua atuação?

Então, isso veio a partir de uma cliente que me procurou, na época o meu salão era em Arthur Lundgren II, em Paulista. E ela tinha ido em alguns salões: perdi até as contas de quantos salões, sete, oito, dez, não sei, à procura de um penteado pra fazer no cabelo dela, que era black power. E ela disse que todos os salões falavam pra ela que só faziam o penteado se ela fizesse alisamento, algum procedimento químico. E aí ela não queria porque ela se identificava. Ela era uma pessoa do Movimento [Negro]; era uma mulher que se reconhecia como mulher negra; a partir de várias distorções da sociedade ela sabia onde era o lugar dela de mulher negra e se impunha isso. Ela se identificava com o cabelo dela. A partir daí ela tinha essa dificuldade com a estética que toda vez que ela ia procurar algo [salão], sempre era algo de negar o cabelo dela; e ela não conseguia fazer o penteado que ela queria nesse dia. E eu falei pra ela: “Eu faço esse penteado sim. Basta você vir meia hora antes do seu compromisso que aí a gente faz”. Ela ficou surpresa. Inclusive eu falei pra ela vir com o cabelo já seco porque valorizava o cabelo dela. Ela era linda. Enfim, ela nunca tinha encontrado um profissional que falasse isso pra ela; na verdade, as pessoas só falavam ao contrário, né? Que o cabelo dela era feio; que só ficava bonito se ela fizesse o alisamento; e que ela não combinava com aquele cabelo, né? E ela se surpreendeu com a minha fala. E logo depois que ela entendeu que eu fazia, então eu perguntei pra ela: “Por que você não faz uma maquiagem?”. E ela disse: “Não, maquiagem não, porque todas as pessoas que me maqueiam me deixam, querem me deixar branca” (risos). Aí eu falei: “Não, sua pele é linda. Acho importante você fazer uma maquiagem. Ó, se você não gostar, não tem problema, eu tiro toda a pele, faz só o olho, enfim. Mas, vamos experimentar”. E aí ela foi e depois voltou. Foi porque era cedo; ela voltou no horário que nós tínhamos combinado. Ai eu fiz o penteado nela, fiz a maquiagem nela. E a partir daí, quando ela foi pra o compromisso que ela tinha, todo mundo ficou lisonjeado com ela, né? Achando ela belíssima, porque fazia um penteado que nunca ninguém tinha visto fazer em Recife, na época; o evento foi no Recife, no Centro de Convenções. "E quem era essa pessoa que tinha feito esse penteado e que tinha feito essa maquiagem que não tinha embranquecido a pele dela?" E a partir daí ela começou a me indicar às clientes. Ela era uma pessoa do meio da militância, né? Do Movimento Negro. E as pessoas começaram a me procurar no salão. A partir daí eu comecei a ter um olhar diferenciado pra esse público. Inclusive, eu me espantei muito com a minha área enquanto cabeleireiro, de embelezamento. O quanto a área nos negava profissionais a ter um olhar de beleza pra esse público. Eu não tinha muita dificuldade com isso, porque eu sou um homem negro, mas que tem descendência indígena, que tem o cabelo liso. Então eu nunca passei por esse preconceito de cabelo. E as pessoas do Movimento e outras pessoas que não eram do Movimento que passam por isso desde criança, enfatizavam muito mais isso. Então, dentro do movimento de beleza, isso era extremamente negado, mas era tão natural que você, dentro desse meio, não via isso, né? E a partir daí eu comecei a entender, a entender, não, a perceber o quanto era negada essa beleza no meio da beleza de salão de beleza. E aí as clientes começaram a me procurar. Mas eu me questionava, porque, como eu já fiz vários cursos e um desses cursos eu gosto muito que é química, então eu sabia o quanto a química agredia o cabelo de uma maneira muito agressiva e se esse público, essa pessoa que fizesse essa química não tratasse desse cabelo, ela não ia ter por longa data cabelo saudável. Aí quando as pessoas começaram a me procurar, a partir dessa cliente, elas me procuravam para fazer permanente afro e eu falava que não fazia permanente afro: uma que eu não sabia; e outra porque quando eu fui aprender a fazer permanente afro eu não aceitei aquilo sabe? Porque é uma química muito forte, é uma química que o ph que abre a cutícula extremamente, que vai para além disso. Então é um cabelo que ele é fraco e que tem uma química muito forte. E aí eu não aceitava isso, né? Aí comecei a fazer tratamentos nesses cabelos que apareciam. Vendia com o tratamento, maquiagem e cor, que eu sou colorista, então vendia muita cor. Só que as pessoas tinham o cabelo black power, mas algumas, naquela época, algumas não, a maioria não gostava, gostava de cacho, queria ter cacho, entendeu? Por isso que elas queriam fazer permanente afro. E aí eu não sabia fazer, não aceitava quando eu procurei aprender a fazer. E comecei a me questionar e a procurar fazer uma técnica, desenvolver uma técnica pra tentar adequar a esse público. Foi assim que eu comecei a ser reconhecido, eu comecei a desenvolver umas técnicas que eu faço, para esse público, para essa figura de cabelo que identifica como cabelo crespo e que tem uma ondulação, que eu chamo de desestruturação, forma de cacho. Para que as pessoas comecem, e isso também foi uma estratégia minha, para que as pessoas pudessem tratar o seu cabelo. Porque, como elas não aceitavam o crespo, pra elas o crespo era feio e pra algumas até hoje é feio, eu comecei a desmistificar isso, não é? Foi quando, aos poucos, eu, sem perceber, comecei a entrar dentro do Movimento, do Movimento Negro. E eu fui fazendo algumas atividades, as pessoas me procuravam pra fazer. Aí essa cliente, que hoje é uma amiga, que é Gislana Diniz, ela é do Movimento, uma vez por semana ela tava no salão tratando do cabelo; vendo a mudança do tratar desse cabelo, ela entendeu que o cabelo precisaria de um profissional que entendesse do seu cabelo pra cuidar dele. Assim, sucessivamente, algumas pessoas viam ela como espelho, né? Ela me indicava. Ela me deu um livro de Nilma Lino Gomes, Sem perder a raiz. E eu li esse livro. E a partir desse livro mudou totalmente. Sabe aquele mundo que eu tava ainda descobrindo, desmistificando o mundo da beleza europeu, colonizador, aquele reboque, deixa robô, só naquela mente? E ainda assim, enfatizado, mesmo com essa desmistificação, aos poucos, mas eu ainda enfatizava muito, né? Por que quando eu falo em robotizado e enfatizado? Porque quando a gente vai pra escola – e eu falo escola de beleza, né?, de cabeleireiro e tal -, quando a gente vai estudar cabelo crespo, a gente estuda negar esse cabelo. A gente não aprende a valorizar, tratar dele e passar pra cliente, que tem essa fibra capilar, essa mulher na maioria das vezes negra, que ela tem uma opção pra esse cabelo, ela pode tratar desse cabelo e ela pode fazer uma química nesse cabelo.Não, a gente só aprende a passar pra essa cliente que ela tem que negar, ela tem que alisar esse cabelo, né? Por isso, a gente fica muito robotizado, porque na base já lhe passa isso. É tudo um processo de construção. Se na sua família você não vê falando sobre beleza negra, quando você estudar sobre beleza negra, a beleza negra é negada de uma forma que lhe conscientiza que aquilo é normal, quando você vai passar pro público, você passa enfatizando muito mais isso, né? Então , a partir daí eu descobri que isso é muito mais além do que eu simplesmente achava, que era negação das duas partes, tanto do profissional da beleza quanto dos clientes, né? Isso é uma negação de identidade, uma negação identitária que passa por um viés que a maioria das mulheres negras... Eu falo muito mulheres porque elas estão nesse lugar; o homem é muito mais fácil; a mulher tem um processo mais dolorido, inclusive, dessa negação do cabelo, quando a gente fala de cabelo, de beleza a partir do cabelo. O homem a negação vem, mas é prática, porque é só pegar a máquina cortar o cabelo, é raspar e é isso; a mulher não, a mulher, a menina, a criança enquanto criança ela sofre muito, ela sofre na escola, ela sofre na família, né? Porque ela prende esse cabelo, a mãe, a tia, a vó, a pessoa que toma conta prende muito esse cabelo, faz muita trança, de um processo de negação da trança, não valorizando, né? Fazendo a trança como valorizar esse cabelo e sim negando esse cabelo; não tira o cabelo da criança da trança de jeito nenhum, é trança vinte e quatro horas. E a partir daí eu comecei a entender e introduzir os meus conhecimentos. Foi quando eu desenvolvi "Cabelo é uma questão de identidade".

Félix, o senhor enxerga preconceito dentro da própria comunidade negra com relação à exaltação da negritude e da descendência?

Tem, dentro da comunidade tem muito, né? E isso foi uma construção que foi criada e que foi construída para além dessa comunidade. Dentro das universidades, dentro das instituições que têm um conhecimento intelectual, a negação ela é muito forte, logo a negação nessa comunidade não ia ser diferente, né? Não ia ser diferente e ela é um pouco mais enfatizada porque a gente sabe que a maioria das pessoas que tá nesses lugares se negando, reproduzindo essa negação do preconceito homofóbico, enfim, todo esse preconceito que a gente sabe que é uma falta de respeito partindo da base, é um processo de falta de conhecimento, na maioria das vezes, falta de conhecimento porque o conhecimento que é passado pra essa população, na maioria das vezes, é passado popularmente. Qual é a informação que a gente vê popular trazida na TV como referência, por exemplo? A TV ela sempre passa algo para que as pessoas introduzam aquilo que ela tá passando. Então o que a TV passa é o cabelo liso, a beleza é beleza branca, o homem tem de ser galã...

Vendendo um modelo, né?

Vendendo um modelo justamente para ser vendido, né?

 Quer dizer, estabelecendo um modelo para ser vendido.

Isso, estabelecendo um modelo para ser vendido; o que a gente chama de padronização. Ela padroniza esse modelo. E ela é muito estratégica. Ela sabe que a maioria da população é negra; a maioria da população periférica, suburbana, ela consome, entende? E como é que ela vai consumir mais do que o normal? Um exemplo, porque eu se eu tiver um cabelo – falando de cabelo -, se eu tiver um cabelo cacheado e eu vou valorizar esse cabelo, eu não vou comprar alisamento, entendeu? Eu não vou comprar alisamento, eu não preciso a cada três meses tar num salão de beleza ou em casa fazendo esse processo de alisamento, me machucando e desenvolvendo alguns traumas, que é o que acontece, né? Eu não ia tar fazendo isso. Eu não ia desenvolver produtos para esse público para ele consumir muito mais do que ele precisa, você entende? Porque, por exemplo, hoje, quando a gente encontra uma pessoa que se identifica com o seu cabelo, com a sua pele, com o seu jeito, como realmente você veio [ao mundo], que é um processo de construção, né?, que é o tempo inteiro que a gente fica, essa pessoa com certeza consome muito menos do que uma pessoa que se nega. São dois viés: além dessa pessoa consumir menos do que a que se nega, a que se nega ela consome muito mais, porque elas sempre vai tar, ela sempre, na verdade, vai tar sonhando em ter uma beleza que nunca vai encontrar, ela nunca vai encontrar essa beleza. E essas pessoas, na maioria das vezes, elas estão nas periferias, tá nos subúrbios. Por isso que hoje a gente [tem] uns desenvolvimentos de conhecimentos, né? Pra que chegue a informação a essas pessoas, porque a gente sabe que algumas pessoas vêm com algumas falas de "O próprio negro é racista com ele mesmo". E a gente tem o maior cuidado de dizer que isso não é racismo entre ele mesmo, isso é uma reprodução de racismo, né? Porque se ele soubesse o quanto a perversidade do racismo dói nele, ele não faria isso. Aí a gente entende e a nossa política é, pedagogicamente, conscientizar essa pessoa de alguma forma.


Material de divulgação de uma das rodas de diálogo promovidas pelo Salão Félix Oliveira Estética Afro. Inclusive, foi dessa na qual eu tomei parte, como revela o registro abaixo, em que aparecem alguns dos participantes




Em seu local de trabalho costuma ouvir episódios de preconceitos de cor vivenciados por seus clientes?

Não, não, é muito difícil. Já acontece de uma maneira muito sutil, sabe? Mas não só eu, a maioria dos clientes que vem no salão é consciente desse processo, dessa negação, desse preconceito que, educadamente, eu, na maioria das vezes, quando não eu, algum cliente se prontifica de passar na minha frente e conscientizar essa pessoa da fala que ela falou, sabe? Porque às vezes, às vezes não, a gente sabe que tem falas extremamente preconceituosas e racistas que a maioria das pessoas não tem formação, não tem noção disso. Um exemplo: “Não, eu não vou me denegrir a isso”. A gente sabe que denegrir é se tornar negro. E a maioria dessas pessoas quando tem essa fala, ela tá falando sempre de maneira ruim, pejorativa, daquele lugar, denegrir não seria legal, não seria bom. E aí tanto eu quanto a maioria do público que vem no meu salão é consciente disso; se encontra uma pessoa falando disso dentro do salão, pedagogicamente, principalmente eu, de uma maneira educativa, com educação, aborda essa pessoa falando pra ela e explicando, né? Que não é isso, [que] ela tenha cuidado. E aí, às vezes, ela enfatiza isso: “Não, mas não é isso”. "Não, mas eu sei que você não quis".

Não, Félix, eu estou dizendo assim de uma história que ela passou de preconceito, não que ela não entenda. Eu perguntei se você já ouviu histórias de pessoas que sofreram preconceito.

Ah, tá, desculpa. Respondendo realmente à pergunta, eu queria te falar que 98% das pessoas que vêm no meu salão têm histórias de preconceito.

Diga-me: em que medida o senhor percebe a representatividade do negro na sociedade brasileira de um modo geral?

Muito pouca, muito pouca ainda. As pessoas falam, né? A gente sabe que a internet hoje tá um boom. Eu sempre falo que é um boom de dois viés: o lado bom e o lado ruim, o lado negativo e o lado positivo. Na internet e no dia a dia também as pessoas ficam falando que hoje tá muito diferente, hoje as pessoas tá se reconhecendo enquanto negra, hoje... Mas não é assim. Eu falo pra você que não é assim porque quando a gente vai falar de numeração, as últimas feiras nacionais que eu fui, mais ou menos tinham uns trezentos e cinquenta estandes falando de produtos de beleza e tinha um, dois falando sobre produto de beleza negra. A partir desse número você entende que a indústria ainda tem uma negação muito forte com isso, né? E as pessoas vêm para mim [e] diz: “Ah, Félix, mas na TV a gente vê pessoas negras, dois, três negros”. Existe uma lei; se não existisse essa lei de introdução desse corpo negro dentro desses lugares, desses ambientes, desses locais, eles não estavam. Não é simplesmente porque um canal de TV sabe que independente de raça, a educação e o poder de reconhecimento de tar ali é igual. Sabemos que não é; a oportunidade ela é muito diferente disso. Então ainda tá muito longe de ter essa igualdade, né? Trazendo a igualdade para isso, nesse viés. Mas a gente sabe que é resistindo e essa nossa política pedagógica de conscientizar as pessoas pode chegar a viver [n]esse lugar.

O senhor é vinculado a alguma instância do chamado Movimento Negro? E como avalia a atuação do Movimento?

Oficialmente eu não tenho nenhum vínculo com nenhum Movimento Negro. Oficialmente que eu falo é assim, de tar participando, não, não tenho. Toda a minha política, minha política, não... Toda a minha política do processo racial dos movimentos são indiretamente. Indiretamente que eu falo, porque eu não tô lá naquele grupo, fazendo parte daquele grupo. Então o grupo de terreiros, todos sabem da minha política. O Movimento Negro sabem da minha política. As mulheres de terreiros sabem da minha política. A Caminhada das Mulheres sabem da minha política. Então, assim, eu desenvolvi por esse tempo que eu venho trilhando, uma política, uma luta diária, mas minha, que eu compartilho, né? E agradeço, inclusive, aos movimentos, porque se não fosse os movimentos, o Movimento Negro, o MNU foi o primeiro Movimento, né? Nosso. Se não fosse esse Movimento eu não estaria agora enfatizando todo o meu trabalho que eu venho fazendo e, inclusive, dando esta entrevista.





Esta foto é para mim bastante icônica: ao fundo vemos casas ocupando o morro do bairro Bomba  do Hemetério, num evidente flagrante do que os estudiosos denominam de ocupação desordenada; em primeiro plano, o que vemos é o salão de beleza de Félix Oliveira, um espaço no qual se busca uma ideia de estética e que também é cenário de discussões a respeito de diversas questões de ordem social, de modo a envolver a comunidade, em geral, e a negra, em particular


MNU é Movimento Negro Unificado, né?

É. Ele foi o primeiro Movimento do Recife. Eu conheço as pessoas, não todas, que fundou o MNU, mas eu conheço algumas que tavam lá desde o início, sabe? Vera Barone, que é uma das referências que a gente tem no Movimento Negro que é pra bater a cabeça pra ela; bater a cabeça é reverenciar, né?, no nosso axé, porque ela e outras e outras mulheres, na maioria mulheres, alguns homens, estava nesse início dessa construção identitária que as pessoas diziam com certeza que essas pessoas eram loucas, estavam doidas porque exigir seus direitos não era direito fazer isso, né? E hoje estamos aqui.

O que o levou a conceber a exposição fotográfica e quais foram as dificuldades encontradas para realizá-la?

A exposição fotográfica chamada Erê Mukunã...

O que significa Erê Mukunã?

Erê é criança, em iorubá. Mukunã é cabelo. Aí a  qente trouxe a referência de Erê Mukunã, porque Mukunã retrata toda a política, o reconhecimento a partir desse cabelo, a partir da estética, né? E Erê porque tem muitas crianças e a gente sabe que a base identitária é a partir da criança, né? Por isso que tem esse nome. E a dificuldade de fazer essa exposição ela foi imensa; queria falar porque ela foi seis anos, né?, pra tirar, pra ver aquela exposição que não é muita coisa, né?, não é muita coisa, a exposição. Mas depois de três anos, três a quatro anos, eu consegui a parceria com duas meninas, duas pedagogas que é Gal Almeida e Paula Ferreira, que tão comigo com o projeto, né?; mas as meninas têm os seus afazeres, porque como o projeto ele não foi, não teve um projeto aprovado para desenvolver...

Editais, né, você tá falando?

Isso, editais. Não teve. E aí as meninas têm seus trabalhos; e elas falaram das limitações delas pra mim e eu falei pra elas que eu tinha que colocar essas fotografias na rua, porque as mães e os pais dessas crianças estavam me cobrando já, né? Pra mim era uma resposta positiva, inclusive, que a sociedade precisava desse trabalho. Então a dificuldade foi tamanha, porque achava que conseguia um patrocínio e não conseguia; uma pessoa de determinada marca disse que ia patrocinar tantos valores, aí, na hora, não patrocinou. E aí fui atrás; enfim, teve várias complicações e você praticamente para fazer tudo é bem complicado.

As crianças negras de sua comunidade, a partir de seu salão, são de alguma forma esclarecidas sobre o que elas são e representam não só no local onde vivem, mas também na sociedade como um todo?

Faz um tempo eu venho falando para algumas clientes e algumas pessoas aqui no salão o quanto mudou. Hoje, quando a gente vai pra rua e vê as crianças indo pra escola, né?, que eu moro aqui perto de uma escola, o quanto as crianças estão livres com seus cabelos, né?, muito livres mesmo. Eu faço um trabalho nas escolas, mas que é um trabalho ainda muito pequeno; ele precisa ser mais enfatizado pelas escolas, pelos educadores dessas escolas, porque há uma dificuldade muito grande com isso também; os educadores, eu falo, os gestores, os professores das escolas, eles, pra entender que também precisa desse conhecimento identitário para essas crianças, há uma longa caminhada pra conscientizar esses educadores a isso. Eu venho fazendo alguns trabalhos quando as professoras que vêm no meu salão me convidam para dar uma fala, uma palestra nas escolas; e, quando eu chego pra dar essas palestras, essas falas nas escolas, eu me deparo com muitas crianças hoje se fortalecendo, né?, se empoderando com o cabelo.

Que bom!

Como o senhor enxerga, em sentido amplo, a condição do negro na sociedade brasileira?

Muito... Muito difícil, né? A gente pensar em mil e uma palavra, mas a dificuldade é.... Acredito que seja a palavra mais certa é “por quê”. Estamos muito precário ainda de reconhecimento intelectual. E aí, quando eu falo precário nesse conhecimento intelectual...

Mas você fala quem? A gente quem? O negro?

A gente o negro. Porque a educação de base ela é muito fraca, né? Logo, por essa deficiência dessa educação de base, os corpos negros que se encontram dentro dessas escolas, dessas instituições, eles são fracos de conhecimento; se eles são fraco de conhecimento, no decorrer da vida dele, eles vão ter barreiras muito grandes pra passar, eles não vão conseguir passar, aliás, não tamos conseguindo passar. Aí você pode perguntar: “Mas Félix a cota é um processo que hoje ampliou muita coisa e tal?”. Ainda é muito pouco. Ainda é muito pouco, porque a cota ela já tá na universidade, nos concursos públicos, entende?  A cota não tem como ela... O projeto cota não tem como estar na base, na educação de base, educação de base tem que ter investimento, um grande investimento, esse investimento ele não foi visto ainda. Educação ela não tem preço, educação de base ela com certeza não, principalmente, não tem preço. Então se essas crianças, esses corpos negros que não tenham um conhecimento intelectual devido da sua posição de direito, como é que essas pessoas, esses corpos vai exigir seus direitos. E aí o que acontece é que esses corpos eles abaixam as suas cabeças, eles acham que estão errado, entende? Acham que estão errados e os lugares e os lugares deles são sempre os lugares subalternos. E eles acham ainda, quando a gente fala de maneira que não é legal a gente se ver ali, que tá dizendo que aquele posicionamento de trabalho de um gari não é bom. Não, não é isso, é que a gente não quer nos ver nossos corpos só nesses lugares, entende? A gente quer chegar num hospital, o maior exemplo é o hospital, você vai num hospital e começa a ver as pirâmides do hospital. Quem tá no topo sempre é branco. Dificilmente a gente é receitado por alguma mulher ou um homem negro, doutor, médico, né? A gente vai pro gari que é preto, vai pra enfermeira que é preta, na maioria das vezes. Um enfermeiro-chefe preto, vá lá que seja preto. Já começa a embranquecer daí...


Nem enfermeiro é, é técnico em Enfermagem, né?

É, técnico em Enfermagem. Aí vem a enfermeira-chefe. Quando chega no médico, que é o topo, ele é branco, entende? Então, assim, pra gente passar todo esse caminhar, esse degrau é muito longo ainda. Então a deficiência pra intelectualidade que a gente sabe da educação de base, ela não existe pra esse público negro, entende? Então, enquanto não existir essa educação de base, a gente, chegar um pouco na igualdade dessas duas raças, vai tar muito longe ainda.

Em algum momento de sua vida o senhor se sentiu um inferior no meio social?

Alguns momentos eu me senti inferior. Me senti inferior... O meu trabalho ele me remete... O meu trabalho, que eu falo como educador social, hoje, ele me leva em algumas universidades para falar do meu trabalho, desenvolvimento do meu trabalho e eu me deparo, às vezes, com médicos, médicos não, doutores, desculpa, na banca falando sobre construção identitária e eu tô naquele lugar, né? E a maneira da fala, no início, que eu comecei a ocupar esse espaço, ela me inferiorizava muito, porque a expressão, a maneira do falar, eu me inferiorizava com isso. Hoje eu tô outro (risos). Eu falo do jeito até onde o meu conhecimento vai. Às vezes algumas pessoas falam: “Félix, não é assim”. Mas é assim que eu sei. Então, é isso que é. Hoje eu sei me impor em qualquer lugar, independente que seja um lugar extremamente intelectual ou não. Então hoje eu tõ muito tranquilo nessa viés, mas eu já me senti muito rebaixado. Fui numa determinada loja, como a maioria dos corpos negros passou por isso, e vigilante tava atrás de mim, sabe? As pessoas se levantavam na hora de eu chegar. Uma coisa bem absurda  foi uma cliente minha, que é fisioterapeuta, e tava dando aulas de Pilates e, enfim, eu fui lá no estúdio dela e esqueci meu celular em casa. No meio do caminho, eu tava de bike, que eu gosto, aí fui pedir informação, era um bairro nobre daqui do Recife. Ninguém parou para me dar explicação. As pessoas entravam dentro dos prédios, entravam dentro da loja... E eu fiquei desesperado. Teve outros momentos muito difíceis, mas esse foi bem marcante pra mim. Eu disse: “Não, como assim? Eu tô querendo uma informação”. Uma senhora lá entrou ela numa loja; tava fechada a loja, sabe? Ela ficou toda sem jeito, mesmo assim ela ficou lá na loja como se fosse abrindo a loja. E aí eu voltei pra minha casa. Mandei uma mensagem pra minha cliente explicando pra ela o quanto eu tava mal, que fiquei supermal com isso. Ela disse: “Não, Félix, não é assim”, sabe? É uma pessoa que não sabe disso. Então é difícil...

É, não sabe disso. Acha que não acontece.

É, que não acontece, né?, ainda tem isso. A gente só sabe algo que a gente passa, porque a maioria das pessoas fala que tudo que a gente fala é preconceito...

Por mais que ela tenha empatia, não é a mesma coisa, não é...

Mas não é. Por mais que a gente tente, por exemplo...

Se pôr no lugar do outro.

Se pôr no lugar do outro.... Nós, como homens, sabemos dos nossos direitos e dos nossos privilégios, por mais que a gente queira entender o lugar da mulher, a gente não consegue, quem sabe é ela que passa por isso, né? Então, isso foi um viés que me doeu muito. Fica marcado, né? Fica muito marcado. Mas eu tenho uns privilégios, eu sei. Eu tenho privilégio de ser homem na sociedade que nós vivemos. Eu tenho um privilégio de ser um homem negro mas com descendência indígena, com o cabelo liso, né? Então eu não sou parado, como vários irmãos meus, que é parado nas esquinas por ser negro e tar com os trajes que acha-se que é malandro, que tá com droga, enfim. Aqui na Bomba do Hemetério a gente vê isso, param os meninos que simplesmente eles estão vestidos da maneira que eles gostam. “Ah, é malandro, não é malandro?”, mas eles gostam e tem que ter respeito.

Que gostam e é a condição que eles têm.

E a condição. Ainda tem esse lado. A condição social e o lugar que aquela pessoa se entende. Ela se sente bela daquele jeito. Ela não se vê de terno, de gravata: primeiro porque ela não vai ter dinheiro pra comprar; segundo, que ela não vai se ver naquele lugar, né? Então, os amigos se vestem assim, eu também me sinto bem me vestindo assim, mas a polícia não tem direito de parar, de, inclusive, fechar a rua para simplesmente dizer que eu tô com droga sem eu estar com droga. Então, assim, eu tenho esse privilégio de não acontecer isso comigo ainda (risos). Eu tive um, um não privilégio, lógico que isso não é privilégio, mas uma situação que aconteceu comigo: eu tinha comprado o meu carro em dezenas [de] parcelas (risos), mas é um carro zero, né?; e eu fui parado duas vezes no carro por quatro motos. E eu não tava entendendo por quê. Até hoje eu não sei... Na verdade, hoje eu sei por quê. Na verdade, eu já sabia por que era. Mas aí ele disse simplesmente [que] era suspeita de assalto. “Como assim, suspeita de assalto? Não tô entendendo”. “Desça do carro!”. Não deixa a pessoa falar, não deixa a pessoa se expressar, né? “Desça do carro!”. “Moço, o que é que tá acontecendo?”. “Desça do carro!”. “Eu posso saber o que tá acontecendo?”. Bota a mão pra cima!”. “Hã?!”. “Bota a mão pra cima!”. Aí tá. Depois de um tempo passado eu disse: “Sim, mas o que aconteceu, o que é que tá acontecendo? Acho que eu tenho direito de saber o que é que tá acontecendo”. “Não, acho que seu carro tava suspeito de assalto”. “Ôxe, como assim, meu velho? Suspeita de assalto? E você chega desse jeito? E você acha que tava suspeita de assalto eu tinha deixado, primeiro, que eu retornasse a velocidade que você me encontrou; e, segundo, que eu não taria perguntando o que tava acontecendo da maneira que eu tava perguntando, porque você sabe muito bem da maneira que um ladrão, um assaltante faz, você sabe das maneiras que é falado, você viu que não era isso. Mas simplesmente eu sei, porque era um homem negro que tava num carro que pra polícia, infelizmente, né?, é com certeza, a polícia estuda isso com o público, estuda com o público, não, com o curso que ela faz, que o mal, a marginalidade ela tá sempre nesse corpo negro”. Então indiretamente não, mas introduzido na mente desse ser humano, quando ele tá em prática na rua, primeiramente que ele vai entender é isso, né? Então [foram] essas situações que eu passei, mas que só fez eu me enfatizar o que realmente a sociedade é, né? E também a nossa política de desmistificar e passar pra sociedade que isso existe e que a nossa luta justamente é pra minimizar essa situação.

Félix Oliveira, o que é ser negro, gay e morador de periferia num país tão preconceituoso, machista e brutal como o Brasil?


É um pesadelo (risos). É um pesadelo. É muito duro, muito ruim, muito ruim. Para além disso, um homem gay, negro, periférico com essa brutalidade que a gente vive e ainda vindo de uma mulher prostituta do interior. Eu saí do interior por causa disso. Eu saí do interior, porque na rua que minha mãe morava, eu não brincava com as pessoas, não brincavam comigo na maioria das [vezes], porque minha mãe não tinha condições financeira boa e minha mãe era prostituta. Minha mãe era prostituta; na época ela vendia a carne para dar de comer a gente, né? As pessoas sabiam. Eu soube pelas pessoas, né? E aí foi quando ela falou pra gente de uma maneira muito...

Mas ela não vivia com teu pai, não, né?

Não, não. Eu sou filho de uma mulher de sete filhos; e são [de] pais diferentes. E com isso, a minha mãe, com a deficiência da educação, ela não conseguiu dar educação, ela conseguiu criar os filhos, né? E dar a educação que ela entende por educação...

Ela dava uma educação diferente, né?

É, uma educação diferente. Por exemplo, a honestidade que eu tenho, eu tenho da minha mãe, eu vim com ela disso...

Apesar de tudo, né?

Apesar de tudo. Eu sou um homem hoje neste lugar que eu tô por causa da minha mãe também, entende?

Claro.

A gente corre atrás, mas tem a base ali. Se ela não tivesse passado o que ela passou, vendido a carne pra me dar de comer, talvez eu não tenha sobrevivido, né? E assim, e aí, quando eu entendi isso, eu disse: “Não, eu quero é sair daqui. Aqui não é o meu lugar”. Eu vou em Goiana muito pouco, que é a cidade de onde eu sou natural; eu sou natural de Goiana, mas é uma cidade que eu só vou porque minha mãe mora lá e ela tá num processo de doença, que eu tenho que tar com frequência indo e voltando. Mas não é uma cidade que me traz muitas lembranças boas, porque é uma cidade extremamente racista. Os interiores, na maioria das vezes, são muito racistas, né? A gente vê coisas absurdas ainda, até hoje, que a gente não vê na capital. E falando do bairro, da periferia...

Saísse de lá com quantos anos, Félix?

Eu saí de lá [com] uns vinte e três anos, mais ou menos. É porque a minha mãe me prendeu muito, eu comecei a trabalhar aos dez com ela. Vim sair sozinho pra rua aos dezenove anos (risos). Eu era o braço direito da minha mãe.





Quando você trabalhava com ela, ela ainda estava na prostituição ou havia parado?

Não, quando a gente começou a vender ela parou, ela parou porque os filhos, os filhos não, o filho, que eu era o único filho que ajudava ela nessa atividade de tar vendendo as coisas, porque eu entendia (risos) que pra comer tinha de trabalhar mesmo. E na periferia, quando eu vim pra periferia, eu já vim com privilégio, então, eu, como Félix Oliveira, na Bomba do Hemetério, eu não me vejo com uma dificuldade muito grande pra viver na periferia, eu, né? Mas eu vejo que os meus vizinhos e outros lugares, ruas diferentes eu ando aqui no bairro, é bem punk, é bem complicado, né? As pessoas chegam, as pessoas que falam, que conversam comigo... É muito difícil, porque, aquilo que a gente falou anteriormente: o processo de não me ver nesse espaço, né?; e conseguir me ver em outro espaço, ela é limitada, né? Ela é limitada. E a periferia, a cidade, o centro da cidade, né?, as pessoas que, os políticos que tá nesse lugar, de conscientizar essa população com instrumentos que a política tem, que eu falo de igualdade racial, de direitos humanos, a educação de base e tal, eles não fazem esse trabalho, né? “Félix tu tá radicalizando”. Não, eu falo de uma maneira que eu entendo, que eu vejo. Eles fazem um trabalho de maquiagem, né?, que a gente chama muito, né? Eles mostram que fazem, mas a gente sabe que eles não fazem. E aí a gente às vezes reclama porque tem dois viés: aqui no bairro da Bomba do Hemetério tem  muito córrego, né;, e a gente vê muitas pessoas jogando lixo no córrego. É falta de educação? Muita, muita falta de educação. Só que são dois viés: a Prefeitura também não tem um trabalho para educar esse povo. A Prefeitura tem recurso que é bilionário, que vem, ela faz aquele serviço e daqui a um ano ela vem fazer aquele serviço de novo. Só que aquela população, ela continua com a limitação de educação ainda, sabe? E aí aquele filho daquela menina que tava ali, naquele lugar, vai continuar com essa mente ainda...

Reproduzindo, né?

É, reproduzindo isso. Então fica muito difícil isso. Tem o processo do ser humano, que a gente sabe que poderia muito bem acordar pra isso, mas a gente sabe das limitações; e tem o processo das instituições, da política, que também faz questão de só maquiar, sabe?, de só fazer aquele processo de “Ah, eu estou fazendo”, mas enfatizar. A gente sabe que educar não é totalmente, é algo contínuo, né?




Pintura que foi feita numa das paredes do salão de beleza: aqui e ali a valorização da estética do negro dita a razão de ser do trabalho de Félix Oliveira


É permanente.

É permanente. Você vem, você faz, você ensina a engatinhar, depois ensina a andar, depois tá andando, depois tá falando, enfim, né? É isso. Enquanto não existir realmente essa política, essa didática, para essa população, a gente sabe que é muito difícil a gente [an]dar [n]uma Bomba do Hemetério e ver um bairro limpo, entende?. É isso (risos).

Obrigado, querido.


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