2 de maio de 2020

Os sinos não param de dobrar: sobre alguns horrores em tempos de pandemia e a crueldade exacerbada e a omissão de tantos que se dizem cristãos

Por Clênio Sierra de Alcântara



Foto: Internet
Missão/Missões (Como construir catedrais) é o título desta instalação do artista plástico Cildo Meireles. Realizada em 1987, é uma das obras de arte mais impactantes que eu já vi exposta. Tive o privilégio de conhecê-la no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife, muitos anos atrás; e recordo claramente do assombro que ela causou em mim, que enxerguei nela a síntese mais bem elaborada do que foi o projeto civilizatório cristão instaurado em vários lugares do mundo pelos europeus a partir do século XVII. Ossos, moedas e hóstias em grandes quantidades são reunidos num espaço que nos faz refletir sobre o muito de crueldade e de vileza que certa concepção de cristandade e de crença no sobrenatural pode fazer, escudada num propósito de salvação da humanidade 



I

A personalidade do senhor Jair Bolsonaro, que se apresenta como um ferrenho cristão e um ser submisso apenas às leis divinas – não por acaso, o slogan do seu desgoverno, de um país constitucionalmente laico, é “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, que não deixa de ser um resgate, digamos assim, dos ideais de dominação e de civilização que os europeus, os homens brancos trouxeram para esta terra nos idos de 1500 e fizeram o que fizeram escudados pela divindade que proclamavam exaltar e agir consoante os seus desígnios – tem algo de muito, muito doentio; de doentio, de cruel, de incivilizado e de desumano.

Eu tenho a impressão de que o senhor Jair Bolsonaro, ao despertar pela manhã, ainda na cama fica a ruminar qual será a estupidez, a maldade, a sandice e o ato de desumanidade que ele praticará no dia, pesando se será capaz de superar o que foi dito e/ou feito no dia anterior.

Não é de hoje que o senhor Jair Bolsonaro mantém uma rotina diária de prática de malfeitorias. Ele, atleta aplicado que foi e cristão destemido que é, diariamente aumenta com seus atos e falas o patrimônio incalculável de sua estupidez e de sua irresponsabilidade. Como um bom samaritano que ele se julga ser, em nome e defesa dos “verdadeiros valores cristãos”, Jair Messias Bolsonaro sai todos os dias por aí praticando toda sorte de ataques e desatinos, fiando-se na plena convicção de que age para o bem do Brasil e para a honra e glória do seu deus. A sua fé e a sua valentia são tão enormes que ele acredita que os demônios estão por toda parte – nas ruas, no Supremo Tribunal Federal (STF), no Congresso Nacional, na Rede Globo e em tudo o mais que seja do desagrado dele – menos dentro dele, que tem um corpo fechado além de atlético.

II

Meu testemunho pessoal. No tempo de parte da minha infância e comecinho da adolescência, eu fui levado vez e outra a igrejas católicas e templos evangélicos. E demorou um pouco para que eu conseguisse admitir para mim mesmo que eu não cria em nada do que eu via e ouvia as pessoas praticarem naqueles recintos. Até que, num belo dia, num momento em que eu me dei conta de que tudo aquilo não servia para a minha vida, a minha ideia de esclarecimento, o meu entendimento de sobrevivência e a minha postura diante do viver promoveram uma faxina geral em minha mente; eu acabara de me dizer e de me reconhecer como alguém que não tinha e não tem qualquer crença no sobrenatural, e que, por isso, o melhor que eu deveria fazer era tirar da minha cabeça tudo aquilo que pregavam naqueles estabelecimentos e noutros, de outras vertentes e divindades, porque ja não havia espaço nela para tanto. E a partir daí, eu passei a não negar o que eu sou e procurei não agir – e nem sempre consegui, é verdade – diferentemente daquilo que eu penso.

Quando digo que eu não acredito no sobrenatural e me apresento como um indivíduo descrente, ímpio, incrédulo e ateu, de alguma forma eu assumo, eu sei, uma posição que também não deixa de ser política. Eu sei que corro o risco de ser vítima da incompreensão, do autoritarismo que tudo quer moldar, inclusive, as nossas crenças e valores, do ódio, do preconceito e da intolerância. Mas quem é que efetivamente consegue escapar e estar livre de tudo isso, me digam?

Não foram cristãos os que saíram nas Cruzadas para recuperar a todo custo territórios e propagar sua fé? Não foram cristãos os que durante séculos legitimaram a escravidão de negros? Não foram cristãos os que procuraram destruir as cosmogonias de vários povos, como as dos nativos deste país, com suas missões de catequese? Não foram cristãos os que torturaram e queimaram pessoas vivas nas fogueiras de uma dita Santa Inquisição? Não foram cristãos os que não se mobilizaram para impedir que seis milhões de judeus fossem mortos pelos nazistas? Não são cristãos os homens e mulheres que ainda hoje lançam bombas e/ou se explodem e/ou atiram e/ou queimam igrejas, templos, mesquitas e terreiros de candomblé e de umbanda?

Podem apostar: quando você vir, quando você se deparar com alguém que prega o preconceito, a rejeição a outras crenças, a desunião religiosa, o pensamento único, a submissão da mulher, a “cura” dos homossexuais e coisas do gênero, o pregador, que tem sempre meia dúzia de versículos da Bíblia na ponta da língua para justificar todas as barbaridades que pratica e todas as imprecações ruins que dissemina, se apresenta como um obstinado cristão. Eu queria entender por que razão, em geral, os cristãos são tão propensos a praticar maldades e, ainda assim, dizerem que “Deus é amor”.

Eu seria de uma hipocrisia e de uma leviandade imensamente grandes se eu me apresentasse aqui e onde quer que seja, como alguém que, por não crer no sobrenatural e, portanto, não estar submisso ao que se toma como mandamentos, fundamentos, ritos e obrigações relacionados às crenças espirituais e divinais, goza de uma inteira e completa paz interior, porque, acredito, não se pode gozar inteira e completamente de tal condição vivendo num mundo que é tão feroz e hostil. Contudo, a certeza de que eu vivo e de que eu conduzo a minha vida carregando convicções que não me atemorizam, que não me fazem sofrer e nem me sentir menor frente ao pensamento coletivo dominante, de alguma forma me liberta e me conforta e me regozija. E eu não quero nada mais do que isso, porque isso me basta.

III

O coronavírus vem demonstrando que ainda tem força e disposição para contaminar e tirar a vida de muitas pessoas, como revelam os números de vítimas que chegam diariamente de várias partes do mundo. No Reino Unido, cujas autoridades foram negligentes e não se puseram no combate à pandemia quando o vírus começou a fazer estragos em outras partes da Europa, como Itália, França, Alemanha e Espanha, as estatísticas foram revistas e a contabilidade fez saber ao público em geral, que já são mais de vinte mil mortos por lá.

Nos Estados Unidos a situação continua gravíssima. Especialistas estimam que a quantidade de mortes causadas pelo coronavírus deverá atingir a marca de quase oitenta mil em todo o país.

E foi ainda dos Estados Unidos que partiu, nesta semana, uma das reprimendas ao comportamento irresponsável do presidente Jair Bolsonaro. Donald Trump, amigão de Seu Jair, disse que o Brasil não seguiu políticas eficazes de combate à pandemia, diferentemente de outras nações sul-americanas, como Chile, Paraguai e Argentina.

O pito que o presidente dos Estados Unidos deu no desgoverno do senhor Jair Bolsonaro ocorreu na terça-feira. E, ainda que indiretamente, a resposta do Nosferatu de Brasília ao Abominável Homem das Neves de Washington saiu na noite daquele mesmo dia, como veremos no ponto VI.

IV

A semana foi novamente superagitada em Brasília porque se viveu sob a expectativa de quais seriam os nomes que ocupariam as vagas de ministro da Justiça e da Segurança Pública e de diretor-geral da Polícia Federal (PF), além do mais que aguardado depoimento do senhor Sergio Moro sobre as acusações que fizera contra o presidente Jair Bolsonaro.

Na terça-feira o então advogado-geral da União, André Mendonça, assumiu o ministério que fora até a semana passada ocupado por Sergio Moro, o mais novo “traidor” da República Antidemocrática Bolsonariana. Já para a diretoria-geral da PF, o senhor Jair Bolsonaro considerou que não era nada demais, pelo contrário, era muito adequado e conveniente para ele, presidente, ter no posto alguém próximo que pudesse lhe repassar “relatórios diários” das operações conduzidas pela PF, como ele havia deixado claro naquele pronunciamento feito na longa e interminável sexta-feira 24 de abril de 2020. Assim foi que, Alexandre Ramagem, amigo dos filhos presidente, vejam só, ganhou dos Bolsonaro a chefia da Polícia Federal. Só que não – pelo menos por ora não.

No dia seguinte à nomeação do delegado e amigo Alexandre Ramagem para o comando da PF, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspendeu o tal ato presidencial. O ministro concedeu liminar a uma ação protocolada pelo PDT, que alegou “abuso de poder por desvio de finalidade” com a nomeação. Em sua decisão Alexandre de Moraes afirmou haver, no caso, “inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”, tendo acrescentado que, “em um sistema republicano, não existe poder absoluto ou ilimitado, porque seria uma negativa do próprio Estado de Direito” (Bruno Boghossian. “Alexandre de Moraes, do STF, suspende nomeação de Ramagem na Polícia Federal”. In Folha de S. Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/alexandre-de-moraes-do-stf-suspende-nomeacao-de-ramagem-na-policia-federal.shtml. Publicado em 29 de abril de 2020. Acessado em 29 de abril de 2020).

Num primeiro momento foi divulgado que a Advocacia-geral da União (AGU) não iria recorrer da decisão; depois, o que se soube foi que o chefe-supremo da República Antidemocrática Bolsonariana ficou superirritado por ter sido contrariado em mais uma determinação sua e que a AGU deveria recorrer sim; e que, segundo ele, o ministro Alexandre de Moraes tomou uma decisão política.

E por falar em decisão do STF, tem mais uma. Lembram daquela peraltice do ministreco da Educação, Abraham Weintraub, insinuando que a China é a responsável pela disseminação do coronavírus e o chiste que ele fez com o modo de falar português dos chineses? Pois bem, o ministro Celso de Mello determinou a abertura de inquérito para investigar o senhor Weintraub pelo crime de racismo.

Mas voltemos ao chefe-supremo dessa gente hipócrita, estúpida e covarde, porque ele é que é o protagonista de todo esse enredo ruim.

Na segunda-feira, ficou-se sabendo que o senhor Jair Bolsonaro, o cidadão que tinha entre as suas bandeiras de campanha o combate ao crime de todos os matizes, revogou portaria do Exército que possibilitava o rastreamento de armas e munições. Ainda que se leve em conta que o presidente agiu dessa forma para atender e agradar parte do seu eleitorado, a grande questão que fica é: por que abrir mão de um recurso que tinha por meta de alguma forma barrar a entrada de armamento ilegal no país, armamento esse que reforça o arsenal de facções e de milicianos? Bom, já que o desgoverno do senhor Jair Bolsonaro considerou que a medida foi coerente e sensata, nem por isso ele se livrou dos olhos vigilantes da lei. O Ministério Público Federal entrou no caso alegando que o chefe-supremo da República Antidemocrática Bolsonariana violou a Constituição ao determinar a revogação da tal portaria, tendo adentrado em uma competência que é única e exclusivamente do Exército (“MPF aponta interferência de Bolsonaro no Exército”. In Examehttps://exame.abril.com.br/brasil/mpf-aponta-interferencia-de-bolsonaro-no-exercito/. Publicado em 27 de abril de 2020. Acessado em 27 de abril de 2020).

Mas não foi só a revogação da portaria do Exército sobre armas e munições que fez ver que, a despeito de, desde sempre, se apresentar como um político que nunca pertenceu à banda podre do Congresso Nacional, ter sido eleito com a promessa de que não entraria no jogo sujo de parlamentares que praticamente vendem apoio para aprovação de projetos oriundos do Palácio do Planalto e de, até a semana passada, manter o tom arrogante, prepotente e pretensiosamente autocrático, dizendo que não negociaria nada, referindo-se, evidentemente, aos nobres parlamentares, eis que, temendo um processo de impeachment por causa de tantos crimes e asneiras que andou cometendo, o magnânimo, impoluto e honestíssimo presidente Jair Bolsonaro começou a negociar cargos e ministérios com o chamado “centrão”, um grupo de partidos que só tem existido praticamente para isso no Congresso Nacional, deixando evidenciado que, diferentemente de como se apresentava, ele é da mesma laia, é farinha do mesmo saco e da mesmíssima matéria fecal de que é feita a maioria absoluta dos políticos deste país, uma gente que trata única e exclusivamente de contabilizar dividendos e cavar vantagens de todo e qualquer tipo e tamanho.

Não tem passado um só dia sem que notícias ruins decorrentes da pandemia ganhem volume e se espalhem pela internet. Sim, é também verdade que, por outro lado, a quarentena e o forçado e em muitos lugares seguido isolamento social têm provocado, por exemplo, uma como que regeneração, por assim dizer, da natureza: rios têm sido vistos menos poluídos; a qualidade do ar melhorou em vários países; e animais silvestres passaram a circular em áreas urbanas que, antes de serem urbanas, eram espaços da vida selvagem. Parece-me que, para o bem do planeta, nós deveríamos, todos os anos, promover um período de desligamento da maioria de todas as atividades que exercemos, como está acontecendo agora, porque, se alguém ainda tinha alguma dúvida, nestes dias de pandemia, a natureza vem nos dando claros sinais do quanto a presença humana é destrutiva e nociva para ela. Outra realidade que muitas pessoas vêm debatendo, é o quanto a pandemia irá afetá-las no sentido de elas se verem e/ou se portarem com novos comportamentos e/ou entendimentos sobre a razão de ser de suas vidas assim que esse mau tempo passar.

Nesta semana eu acompanhei alguns acontecimentos que, lamentavelmente, entraram no rol das más notícias provocadas e/ou desencadeadas pela vigência do enfrentamento do coronavírus.

Na segunda-feira, a área central de Campina Grande, na Paraíba, foi cenário de uma ação vexatória e eu diria que até humilhante para homens e mulheres trabalhadores no comércio lojista. Naquele dia circularam imagens de comerciários ajoelhados diante de estabelecimentos fechados e, segundo se disse, rezando e rogando pela reabertura das lojas. A Procuradoria do Trabalho do município instaurou procedimento no dia seguinte para apurar denúncias de que os empregados foram obrigados pelos patrões a participar do ato sob ameaça de demissão (“Empresários obrigam funcionários a se ajoelharem por abertura do comércio na Paraíba”. In Revista Forum: https://revistaforum.com.br/coronavirus/video-empresarios-obrigam-funcionarios-a-se-ajoelharem-e-rezarem-por-abertura-do-comercio-na-paraiba/. Publicado em 28 de abril de 2020. Acessado em 28 de abril de 2020).

A terça-feira seria marcada por um acontecimento trágico ocorrido na cidade de Araucária, Região Metropolitana de Curitiba, no Paraná. Por volta das 15: 30h um homem quis entrar sem máscara num hipermercado e foi impedido por um segurança do estabelecimento. Cliente e segurança acabaram entrando em luta corporal; o segurança terminou atirando no homem, que foi atingido de raspão no abdome, e o mesmo tiro, segundo o noticiário, atingiu também o pescoço de uma funcionária do estabelecimento, que acabou morrendo no local (“Mulher morre baleada em supermercado após confusão entre segurança e cliente sem máscara em Araucária, diz GM”. In G1 PR: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2020/04/28/mulher-morre-baleada-em-supermercado-apos-confusao-entre-seguranca-e-cliente-sem-mascara-em-araucaria-diz-gm.ghtml. Publicado em 28 de abril de 2020. Acessado em 28 de abril de 2020).

Ainda naquela terça-feira, numa unidade dos Supermercados Guanabara, no Rio de Janeiro, uma cliente autoimpôs-se uma situação que, a meu ver, tem muito de galhofa e de porralouquice: impedida de entrar no supermercado porque não portava máscara, a mulher não se fez de rogada: retirou a calcinha ali mesmo e improvisou uma máscara. Bom, se ela queria aparecer era só pintar a bunda de branco e sair por aí, como ensinava a minha prestimosa avó, e não ter feito o que fez, porque acabou que a máscara-calcinha ou calcinha-máscara não lhe deu permissão de entrada no supermercado (“Mulher usa calcinha no lugar da máscara após ser barrada em supermercado”. In Istoé: https://istoe.com.br/mulher-usa-calcinha-no-lugar-da-mascara-apos-ser-barrada-em-supermercado/. Publicado em 30 de abril de 2020. Acessado em 30 de abril de 2020).

VI

Agora sim, voltemos ao chefe-supremo e cristão-mor da República Antidemocrática Bolsonariana e a sua, ainda que indireta, como eu disse, resposta ao que Mr. Donald Trump dissera sobre a má conduta do Brasil no que diz respeito ao enfrentamento da pandemia do coronavírus.

Na noite da terça-feira, ou seja, ainda no dia em que levou o puxão de orelha do amigo da onça Donald Trump, o senhor Jair Bolsonaro falou ali no que eu já apelidei de Tribuna do Escracho e do Deboche, que é o cercadinho que existe na entrada do Palácio da Alvorada onde diariamente profissionais da imprensa e uma legião do mal de desocupados dá as caras, respondendo a uma repórter que lhe informara que o Brasil acabara de ultrapassar a marca da China em número de contaminados pelo coronavírus, que, sim, “E daí? Lamento, quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.

A fala escrota, impiedosa e sarcástica que é a marca registrada do senhor Jair Messias Bolsonaro claro, arrancou risinhos de escárnio da sua claque, da sua plateia, de parte de seus apoiadores que se lá se encontravam. O chefe-supremo da República Antidemocrática Bolsonariana disse naquela ocasião que era Messias, mas não fazia milagres. Pô, Seu Jair, o senhor vai vir com modéstia nesta altura do campeonato? O senhor faz milagres sim, ou vai querer negar agora que fez o milagre da multiplicação da gente estúpida, hipócrita e covarde que o segue e defende em toda a parte?

Na manhã do dia seguinte, repetindo um roteiro que, no caso dele, é bastante previsível, porque ele costuma morder e assoprar, o asinino presidente Jair Messias Bolsonaro procurou jogar para a imprensa a sua fala tão impiedosa, tão cruel e tão desumana. E, para não perder o embalo e demonstrando possuir um nível de entendimento extraordinário, atacou o isolamento social dizendo que – vejam que raciocínio brilhante –, mesmo com o isolamento social, o Brasil já conta com milhares de mortos vitimados pelo coronavírus. Pô, Seu Jair, pega leve. O senhor é tão idiotão assim ou desempenha um papel? Seu Jair, o isolamento social não é uma garantia absoluta de que ninguém será contaminado; é um modo de tentar conter a contaminação, porque, se parte da população não estivesse comprometida com a quarentena, a situação neste país estaria muitíssimo pior.

Ah, sim, a imprensa. Em um discurso moralizante e acusador, na quinta-feira o senhor Jair Bolsonaro soltou o sarrafo com força na Rede Globo, culpando-a por sua fala estúpida da terça-feira à noite, como se a emissora da família Marinho tivesse recorrido ao serviço de um dublador para pôr Seu Jair dizendo o que ele em realidade disse. E, como já fizera noutras ocasiões, o senhor Jair Bolsonaro ameaçou não renovar a concessão da Rede Globo, que ele classificou como lixo: “Ou melhor, lixo dá para ser reciclado. Globo nem lixo é, que não pode ser reciclado” (Ricardo Della Coletta. “Bolsonaro volta a colocar em dúvida renovação da concessão da Tv Globo”. In Folha de S. Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/bolsonaro-volta-a-colocar-em-duvida-renovacao-da-concessao-da-tv-globo.shtml. Publicado em 30 de abril de 2020. Acessado em 30 de abril de 2020).

Senhor presidente, magnânimo, impoluto, honestíssimo chefe-supremo Jair Bolsonaro, não sei por que eu tenho uma quase certeza de que o seu mandato uma hora vai acabar, o senhor vai sair de cena sem direito a ser reprisado, porque o senhor não vale a pena nem agora, imagine ser visto de novo, e a Rede Globo irá continuar reinando soberana quer o senhor queira, quer não. A Rede Globo pode até ser o lixo que o senhor diz que ela é, mas veja que o senhor é desde os muitos anos em que fazia figuração no Congresso Nacional como deputado federal, parte do chorume que escorre do grande monturo de podridão e desfaçatez que existe no ambiente político de Brasília.

Um adendo a este ponto: duas coisas são bastante reveladoras do nível de indecência e da defesa dos próprios interesses e, por conseguinte, do escanteamento do bem comum, que o desgoverno do senhor Jair Bolsonaro estabeleceu neste país e/ou o agravou. O presidente porta-se cruel e desumano no que diz respeito às vítimas letais da pandemia e nenhuma liderança de qualquer crença religiosa vem a público rebater isso, sabe? É claro que não se pode contar com os fariseus Edir Macêdo, Silas Malafaia, Romildo Ribeiro Soares e Valdemiro Santiago, porque, além de apoiarem o dito-cujo, essa gente não presta e só defende o próprio quinhão; basta para isso dizer que precisou a Justiça intervir para que o maldito Malafaia deixasse de realizar cultos, e que o execrável Macêdo anda feliz da vida porque a sua TV Record começou a ter um crescimento de receita desde que Seu Jair chegou ao Palácio do Planalto. E quando você para e pensa que esses quatro fariseus – e existem inúmeros outros tão ruins e/ou piores do que eles – mobilizam e influenciam milhões de pessoas, você imagina a dimensão das consequências que uma cristandade maléfica como a que eles sustentam pode trazer para toda a sociedade. Quando se replica e se dissemina o ódio, a indiferença, a intolerância, a discriminação e o preconceito, fatal e inevitavelmente se estabelece que certos seres humanos têm de ser submetidos, convertidos e “curados”, do contrário, eles terão de ser de alguma forma varridos da face da Terra.

A outra questão a abordar neste adendo é a completa falta de espírito de corpo reinante entre as principais redes de televisão deste país. O delenda est Rede Globo, o é preciso destruir a Rede Globo que sai nas falas do senhor Jair Bolsonaro, é o mesmíssimo discurso intimidador que o meliante José Dirceu e os seus comparsas petistas faziam, sabe? Praticamente todos os dias o presidente da República xinga e escarnece os órgãos de imprensa, agride verbalmente repórteres e jornalistas dando azo e incentivo para que os seus irracionais apoiadores façam o mesmo, e, no entanto, nós não vemos, da parte das emissoras, uma tomada de posição contra esse estado de coisas; e não é só por servilismo e espírito bajulador, não; acredito que isso passa até por uma torcida para que a Rede Globo saia mesmo do mapa e elas alcancem uma relevância e um público que nunca tiveram. As concorrentes da Rede Globo que, em muitos aspectos procuram imitá-la, cabem numa só vala comum da mediocridade e da covardia.

Antes de encerrar este adendo eu queria dizer aqui de outra notícia que circulou na internet nesta semana e que diz respeito ainda a este ponto: foi divulgado que a jornalista Adriana Araújo, apresentadora do Jornal da Record,  e que já trabalhou na Rede Globo, teve uma crise de choro nos bastidores da emissora da família Macêdo, após a edição do telejornal do último dia 21 de abril. Segundo a apuração que eu li, ela teria ficado muito incomodada com a linha editorial do telejornal que apresenta, por ele estar exibindo reportagens claramente pró-governo Bolsonaro. Naquele dia, por exemplo, foi vetada a exibição de uma reportagem que mostrava a situação gravíssima do sistema de saúde pública de Manaus, onde corpos de vítimas da covid-19 estavam sendo guardados em caminhões frigoríficos (Daniel castro. “Crise de choro antecipa férias de apresentadora e intriga Record”. In Notícias da TV: https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/daniel-castro/crise-de-choro-antecipa-ferias-de-apresentadora-e-intriga-record-36231. Publicado em 29 de abril de 2020. Acessado em 29 de abril de 2020).

VII

Na noite de ontem veio a público a mais recente edição da revista Veja, trazendo estampada na capa a figura-chave do mais recente abalo no desgoverno da República Antidemocrática Bolsonariana, o senhor Sergio Moro. De acordo com a reportagem, ele reiterou as acusações que fizera contra o ex-chefe na semana passada; disse que, ao contrário do apregoado pelo senhor Jair Bolsonaro, ele, Moro, não via empenho do desgoverno no combate à corrupção; e que iria mostrar provas de que, sim, o presidente queria fazer interferência política na Polícia Federal.

Na manhã de hoje, em postagem em sua página no Facebook, Seu Jair chamou Sergio Moro de Judas – não nos esqueçamos de que, como quase todo bem aplicado cristão, o presidente vez e outra recorre a algum personagem ou versículo bíblico para ilustrar suas falas e mensagens -; e escreveu, referindo-se à investigação sobre Adélio Bispo, o sujeito que o esfaqueou em 2018, em Juiz de Fora, Minas Gerais: “Os mandantes [do crime] estão em Brasília? O Judas, que hoje deporá, interferiu para que não se investigasse?” (Daniel Gullino. “Horas antes de depoimento, Bolsonaro chama Moro de ‘Judas’”. In O Globo: https://oglobo.globo.com/brasil/horas-antes-de-depoimento-bolsonaro-chama-moro-de-judas-1-24407035. Publicado em 2 de maio de 2020.  Acessado em 2 de maio de 2020).

Com os nervos à flor da pele, bolsonaristas de um lado e moristas de outro, trocaram insultos no lado de fora da sede da Polícia Federal, em Curitiba, no Paraná, enquanto aguardavam a chegada de Sergio Moro, cujo depoimento estava marcado para começar no meio da tarde. O que o ex-juiz federal, o que o sujeito que largou uma carreira de vinte e dois anos, estável e repleta de direitos e privilégios, alguns absurdos, como férias de sessenta dias, para entrar na barca furada de um desgoverno comandado por um indivíduo que é burrão, autoritário e estúpido elevado à enésima potência disse no seu longo depoimento, só saberemos daqui a alguns dias. O que é líquido e certo é que a base apoiadora que elegeu o Nosferatu de Brasília quebrou, partiu-se ao meio, e ninguém há de remendá-la.

Lamentavelmente o momento presente nos impede de sair às ruas para protestar contra as garras afiadas e sanguinárias e a bocarra desgraçadamente faminta desses malditos tiranos. Tudo o que é dito e revelado contra o senhor Jair Bolsonaro é fake, é mentiroso, é conspirador, é golpe, segundo as palavras de seus aliados políticos e demais apoiadores. Os bolsonaristas são uma falsificação medonha do bom-senso e inimigos ferozes da democracia.

VIII

Tenho plena consciência de que como ser humano e como cidadão eu estou a atravessar este período negro da História da humanidade instalado numa situação bastante cômoda, favorável e por que não dizer privilegiada, o que não significa, é certo, que eu esteja imune e completamente protegido do mal, ou melhor, de um dos males que por ora aterroriza o mundo. Não possuo casa, mas moro em uma habitação simples sem pagar aluguel; ainda não sou idoso; não tenho nenhuma comorbidade e/ou deficiência física; e, principalmente, tenho um emprego. Mas eu não estou fechado numa redoma. Olho ao meu redor desde sempre, porque, para quem mora em subúrbios, a realidade da pobreza e da miséria é um componente constitutivo da paisagem. Sim, eu venho oferecendo ajuda, inclusive financeira, a alguns conhecidos e auxiliado anonimamente a outros que eu não conheço. E é isso que tem me cabido fazer pelos outros, além de lutar pela minha própria sobrevivência.

Li de um só bocado o breve, mas muito denso e incisivo livro, aparecido ainda há pouco em Portugal, intitulado A cruel pedagogia do vírus, de Boaventura de Sousa Santos. Para quem vive alienado a respeito da constituição política e socioeconômica do mundo e pouco ou nada sabe dos fundamentos que regem o domínio global dos ricos e muito ricos, Sousa Santos faz um apanhado de tudo isso e nos mostra muito didaticamente como o desamparo social afeta milhões, bilhões de pessoas nos quatro cantos do planeta. Sousa Santos nos diz que a pandemia e a quarentena estão nos revelando possibilidades e adaptações a outros modos de viver ainda que isso seja de maneira forçada; e que tal circunstância é propícia para que pensemos também em alternativas de viver, num tempo pós-pandemia, passando a reconsiderar a nossa relação com a cadeia produtiva e, principalmente, com a nossa dinâmica consumista e a nossa superexploração dos recursos da natureza, por um lado, e, por outro, o entendimento de que a muitas e muitas pessoas a riqueza exuberante gerada por essa superexploração e o que se denomina de bem-estar social nunca chega. E, perto do final de sua narrativa, ele levanta este questionamento que serve de profunda reflexão não apenas para os governantes, mas igualmente para todos e cada um de nós: “Nos casos em que se adoptaram medidas de protecção para defender a vida dos interesses da economia, o regresso à normalidade implicará a deixar de dar apoio à defesa da vida?” (Boaventura Sousa Santos. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições Almedina, 2020, p. 29-30).

Os sinos não param de dobrar. O coronavírus continua matando milhares de pessoas ao redor do mundo. Será que os que sobreviverem à pandemia haverão de reconsiderar a valia de suas vidas? É de se ver. Por ora, não nos deixemos abater pelo dobrar dos sinos.


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