6 de junho de 2020

A tirania cavalga sem saber que, na tristeza desta hora, a democracia não há de se submeter ou A Lei Áurea não mandou demolir as casas-grandes e muito menos as senzalas

Por Clênio Sierra de Alcântara

Foto: Jovem Pan
O ditadorzinho só faltou dizer isto: “Se for para a desgraça e a infelicidade geral da nação, digam ao povo que fico”. 
Nós precisamos dizer não ao autoritarismo e à militarização das instituições e da sociedade. Nós precisamos enfrentar as forças do atraso e do retrocesso que se instalaram no Palácio do Planalto e adjacências. Nós precisamos enfrentar a ameaça de cerceamento da liberdade. Nós precisamos afirmar que não compactuamos com isso e nem aceitamos esse estado de coisas. Nós precisamos deixar muito claro que somos fiéis defensores da de-mo-cra- ci-a.

I

Quem olha de fora, desavisadamente, dada a ênfase com que o “teatrinho cristão” é encenado e a divisa das hostes da República Antidemocrática Bolsonariana é dita – “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará (João 8, 32) -, pode ser levado a acreditar que essa gente autoritária, hipócrita, estúpida e covarde batalha pelo bem comum. Nada mais enganoso do que isso. Essa gente, que recorre a versículos bíblicos para endossar as perversidades e arbitrariedades que pratica, como tanto se tem visto, não tem compromisso algum com toda a sociedade e nem com a verdade, porque, como se sabe, em governos de sanha autoritária, segmenta-se a sociedade, escolhem-se grupos prioritários e a verdade é o primeiro item que se sequestra e amordaça; e aí está o inquérito em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) para investigar as “verdades” fabricadas por esse bando de delinquentes que fazem de fake news meios para ludibriar os desavisados que os apoiam e confundir o entendimento do restante da população. Como não costumam frequentar as escolas dominicais dos seus templos religiosos, os cristãos bolsonaristas ocupam seus domingos com a prática de crimes e incitações contra a ordem democrática, algo que lhes incomoda deveras, porque não é da natureza deles ter seus ideais de “progresso” e de “civilidade” contestados.

Na madrugada do sábado para o domingo, Brasília, o cancro nacional – o epíteto, como se sabe, foi-lhe pespegado pelo ministreco da Deseducação, Abraham Weintraub, na reunião ministerial havida no Dia do Canalha -, viu algo inusitado na Esplanada dos Ministérios: marchando e vibrando, demônios com tochas na mão – eles se diziam trezentos, mas não eram nem trinta – e ao comando de uma ensandecida Sara Winter, fizeram, digamos, um ritualzinho à la Ku Klux Klan e endemoniados nazistas, tendo a concentração sido verificada defronte ao STF. Vendo as imagens do desfile eu me perguntei: “O que será que mais esse poviléu há de fazer para tenta desmoralizar as instituições democráticas?”. O tanto que tinha de medonho e tenebroso o evento tinha, igualmente, ao menos para mim, o seu ar de galhofa e de festim de Dia das Bruxas. Pô, Sara Winter, ex-vendedora de bolo no Recife, ex-feminista e, nesta semana, ex-filiada do Partido Democratas – democratas? Puxa! -, a senhora não tem do que de útil se ocupar em sua casa, não, é? Tudo é lamentável nessa sua atuação canastrona, bem como a constatação de que as tochas que os seus seguidores empunhavam não conseguiram iluminar o porão que existe em sua cabeça.

O dia já vinha raiando, meu bem, e Brasília, naquele domingo, ainda prometia, porque, de uns tempos para cá, a cidade não teve mais um domingo sequer de sossego, dada  a disposição da boiada bolsonarista para aproveitar os verdes campos do lugar, o que faz muitos espectadores pensarem que semanalmente acontece uma feira agropecuária ali.
O evangelho dos bolsonaristas e o seu chefe-supremo, o magnânimo senhor Jair Bolsonaro, que tem sempre um palavrão na ponta da língua para arrematar uma citação bíblica, ao que parece, manda que eles professem o tempo todo o ódio, a intolerância e a desunião. Os domingos se converteram no dia preferido para eles começarem a estragar a semana. Eles fazem tantas estripulias, xingam tanta gente, pedem a volta de uma ditadura militar, apelam para o fechamento do STF e do Congresso Nacional, agridem jornalistas, pintam o sete, como diz a frase feita, e não se cansam.

Competitivo que só ele mesmo, o asqueroso Jair Bolsonaro não quis, claro, ficar abaixo da performance de Sara Winter e dos seus trezentos que não eram nem trinta; assim, depois de sobrevoar o pasto a bordo de um helicóptero acompanhado pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, ele montou num cavalo para cavalgar em apoio àquele ato inconstitucional e antidemocrático. Estando um quadrúpede sobre o outro – não fosse pelas vestes, não se conseguia distinguir o asinino do equino -, só faltou o falante dizer à maneira de um ditadorzinho: “Se for para a desgraça e a infelicidade geral da nação, digam ao povo que fico”.

II

Muito embora a situação de pandemia que ora atravessamos não recomende ações de tal natureza, foi um alento e tanto ver que, também no domingo 31 de maio, só que na capital paulista, corinthianos, sãopaulinos, palmeirenses e santistas deixaram a rivalidade futebolística de lado e foram para a rua defender a ordem democrática.

Depois de tantas carreatas e protestos das hostes bolsonaristas com seus discursos de ódio e de ataques às instituições, eis que parte da sociedade venceu o medo da pandemia do coronavírus para combater esse outro mal que nos assola, que é a sanha autoritária de uma gente que insiste em clamar por uma intervenção militar neste país. Confesso que fiquei até um pouco emocionado ao ver que aquela movimentação que ocorria em São Paulo em defesa da democracia poderia significar o início, o desencadeamento de um movimento maior visando o enfrentamento das posturas antidemocráticas do senhor Jair Bolsonaro e de todos os seus comparsas e milicianos.

A marcha foi tão incômoda para os bolsonaristas que, inconformados com a atitude de resistência dos que lhes são contrários, eles partiram para o confronto com os defensores da democracia. E o que se viu naquele dia, eu aposto, foi o estopim de uma série de embates que, acredito, começarão a ser travados por este país afora (“Ato pró-democracia em SP começa pacífico, encontra grupo pró-Bolsonaro e termina em confronto com PM”. In G1 SP: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/05/31/avenida-paulista-tem-ato-e-marcha-contra-o-fascismo-e-a-favor-da-democracia-diz-pm.ghtml. Publicado em 31 de maio de 2020. Acessado em 31 de maio de 2020).

Nós precisamos dizer não ao autoritarismo e à militarização das instituições e da sociedade. Nós precisamos enfrentar as forças do atraso e do retrocesso que se instalaram no Palácio do Planalto e adjacências. Nós precisamos enfrentar a ameaça de cerceamento da liberdade. Nós precisamos afirmar que não compactuamos com  isso e nem aceitamos esse estado de coisas. Nós precisamos deixar muito claro que somos fiéis defensores da de-mo-cra- ci-a.

III

Na contramão de todos os países que foram muito afetados pela pandemia, como França, Itália e Espanha, na última segunda-feira, várias capitais brasileiras – João Pessoa seguiu no rumo contrário, endureceu, sensata e corretamente, as medidas – começaram a liberar mais atividades comerciais, fazendo com que o isolamento social, que por aqui esteve o tempo todo abaixo do ideal de 70 %, fosse ainda mais desrespeitado.

França, Itália e Espanha só resolveram relaxar as medidas de isolamento quando a curva de contaminados e o número de mortos começaram a seguir em escala descendente. Mas não é este o caso do Brasil. Por aqui a quantidade de contaminados e de mortos continua a crescer num ritmo preocupante. Hoje o país contabilizou 35.930 mortes causadas pelo coronavírus; e isso provavelmente será agravado nos próximos dias em decorrência do afrouxamento das medidas restritivas para a abertura de grande parte do comércio.

Quem vem acompanhando as ações do Governo Federal no enfrentamento da pandemia sabe que, desde o início, a coisa foi tocada – e continua assim – como se a realidade não requeresse medidas mais duras e eficazes e o coronavírus não representasse uma grande ameaça às nossas vidas. O presidente deste país permanece defendendo o fim do isolamento social recomendando o enfrentamento clínico da doença com o uso da cloroquina – um medicamento sem comprovada eficácia para este tratamento –, em vez de promover e defender medidas de prevenção contra a contaminação; somente ontem o Governo Federal conseguiu entregar um hospital de campanha para receber apenas pacientes contaminados pelo coronavírus – a unidade foi erguida em Águas Lindas de Goiás (GO) -; o Ministério da Saúde, em meio a uma pandemia que já ceifou dezenas de milhares de vidas, está há semanas sem um dirigente de fato, sendo tocado por um ministro interino; e, na guerra política e ideológica que o mandatário da nação trava com os órgãos da imprensa não vendida e não submissa, em geral, e com a Folha de S. Paulo e a Rede Globo, em particular, nesta semana ele mandou que os boletins diários do Ministério da Saúde sobre a pandemia, que já foram divulgados às 17:00 h e depois às 19:00 h, passassem agora a ser repassados às 22:00 h; apuração de bastidores deram conta de que tal determinação do asinino presidente da República se deu por capricho e pirraça, para que o Jornal Nacional, de sua inimiga Rede Globo, a qual ele chama de TV Funerária, parasse de fazer dos dados uma grande notícia (Renato Souza. “Covid-19: Bolsonaro ordenou atrasar boletins para não passar em telejornais”. In Correio Braziliense: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/06/05/interna_politica,861307/covid-19-bolsonaro-ordenou-atrasar-boletins-nao-passar-em-telejornais.shtml. Publicado em 5 de junho de 2020. Acessado em 5 de junho de 2020).

Como é estúpido esse senhor! A pandemia é um caso de saúde pública, a divulgação de notícias sobre ela é de amplo interesse público e ele se comporta como se estivesse lidando com brincadeirinhas de mesa de bar. E, como se isso não bastasse, o desgoverno da República Antidemocrática Bolsonariana, cujo Ministério da Saúde está quase todo ocupado por militares, anunciou que irá recontar o número de mortes “causadas” pelo coronavírus, certamente por acreditar que as Secretarias de Saúde estaduais estão inflando os dados com o objetivo de receberem mais recursos. Sendo assim, não nos espantemos se, na semana que vem, os 35.930 mortos contabilizados hoje sejam reduzidos para muitíssimo menos. Sonegar, omitir e mascarar dados é um expediente corriqueiro de governos autoritários, que maquiam a realidade para passar a impressão de que tudo está bem e sob controle, porque seus dirigentes são sempre competentes. O anúncio da recontagem fez com que circulasse nas redes sociais uma frase anônima e mordaz que remete aos muitos mortos e desaparecidos do tempo da Ditadura Militar: “Os militares tomaram conta do Ministério da Saúde pra fazer o que sabem: esconder corpos”.

Essas iniciativas do desgoverno do senhor Jair Bolsonaro me fizeram recordar de um episódio, ocorrido durante os chamados Anos de Chumbo, quando os militares decidiram esconder da sociedade um gravíssimo surto, uma grande epidemia de meningite meningocócica, havida em São Paulo, entre 1972 e 1974 (Marco Antonio Villa. Ditadura à brasileira – 1964-1985: a democracia golpeada à esquerda e à direita. Rio de Janeiro: LeYa, 2014, p. 193).

Com suas posturas autoritárias, com suas irresponsabilidades, com suas briguinhas infantilóides e com o seu desrespeito às normas sanitárias, o senhor Jair Bolsonaro se mostra para a sociedade brasileira tão ou mais letal do que o próprio coronavírus.

IV

Começando pelo senhor Jair Messias Bolsonaro, presidente da República Antidemocrática Bolsonariana, há vários espécimes dentro desse desgoverno que são típicos casos de pessoas e ideias fora do lugar: vemos um ministro do Meio Ambiente que planeja, às ocultas, a destruição da natureza; temos um ministreco da Deseducação, ops, Educação, que é a encarnação do despreparo e da falta de tino para conduzir o tal ministério; acompanhamos a esquizofrenia de uma Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que pauta os interesses da coletividade a partir das crenças religiosas que ela sustenta; e por aí vai.

Pessoas e ideias fora do lugar. É este também o caso do senhor Sérgio Camargo, um homem negro que parece odiar negros e que calha de ser o presidente da Fundação Palmares que, como todos nós sabemos, é uma instituição que existe para militar pela causa da população negra.

Nesta semana veio a público o áudio de uma reunião, ocorrida no último dia 30 de abril, na qual o senhor Sérgio Camargo, um black man como George Floyd, o norte-americano morto dias atrás numa abordagem policial que motivou protestos contra o racismo em vários países, inclusive, no Brasil, classificou o Movimento Negro de “escória maldita” que é levado à frente por uns “vagabundos” (“Em áudio de reunião, presidente da Fundação Palmares se refere ao movimento negro como ‘escória maldita’”. In O Globo: https://oglobo.globo.com/brasil/em-audio-de-reuniao-presidente-da-fundacao-palmares-se-refere-ao-movimento-negro-como-escoria-maldita-24459484. Publicado em 2 de junho de 2020. Acessado em 3 de junho de 2020).

Disse certa vez o historiador francês Marc Bloch, que “as consciências têm seus biombos interiores, que alguns dentre nós mostram-se particularmente hábeis em erguer” (Marc Bloch. Apologia da História ou Ofício de historiador. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 132). A mim me parece que Sérgio Camargo é um negro muitíssimo recalcado que se enxerga como um branco; e que calhou de ocupar um cargo que definitivamente não lhe cabe. Naquela mesma reunião do áudio vazado, ele disse aos seus assessores que os “filhos da puta da esquerda não admitem negros de direita”; classificou Zumbi como “filho da puta que escravizava pretos”; e enfatizou que a Fundação Palmares não iria direcionar verbas para os terreiros das religiões de matriz africana, afirmando que “Macumbeiro não vai ter nem um centavo”. Talvez, ele esteja pretendendo repassar as verbas para os templos evangélicos dos Valdemiros Santiagos da vida. Esses cristãos nunca me enganam.

Caro senhor Sérgio Camargo, eu não sou de direita nem de centro e nem de esquerda. Por meu lado, eu admito negros de direita sim, como admito, também, homossexuais que militam contra o Movimento Gay e pobre de marré deci que defende pautas ditas ultraliberais da economia. O que eu não admito, senhor Sérgio Camargo, é que alguém ocupe um cargo e um órgão públicos para pôr em ação a defesa dos seus próprios interesses e, no seu caso, contrariando o fundamento da instituição que o senhor por ora preside, porque é como pôr uma raposa para cuidar de um galinheiro ou de um ladrão para comandar uma tesouraria. Ou seja, é impróprio e inadequado para dizer o mínimo. Sérgio Camargo, o senhor constantemente fala que está na Fundação Palmares para defender os interesses de todos nós, seja qual for a cor de nossas peles, mas, como se nota pelos seus atos e pelos seus discursos, na verdade, o senhor não tem somente envergonhado e insultado os negros, mas sim toda a sociedade deste país. O seu destempero, a sua ferocidade e o seu pensamento com relação à comunidade negra revelam quão inapropriado o senhor é para ocupar o cargo que ocupa. Caia fora, Sérgio Camargo, antes que a Justiça mande o senhor sair.

V

Com sua carinha de sonso, do tipo que dá o bote e esconde a unha, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, que ora posa de capacho do presidente, ora se apresenta como “algo diferente disso que se vê aí” para assumir o comando do país caso o atual mandatário sofra um processo de impeachment, resolveu sair em defesa do senhor Jair Bolsonaro em um artigo publicado na quarta-feira pelo jornal O Estado de S. Paulo.

O general Mourão principiou o seu texto atacando as manifestações ocorridas no domingo em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba contra o desgoverno o qual ele integra, dizendo que elas não poderiam ser apresentadas como democráticas, uma vez que “delinquentes” atacaram pessoas e patrimônios públicos e privados. Disse aos leitores que estava se dirigindo não aos “baderneiros” e sim “aos que os usam, querendo fazê-los de arma política”. Mais adiante ele disse: “A legítima defesa da democracia está fundada na prática existencial da tolerância e do diálogo”, porque, “Uma sociedade que se organiza politicamente em Estado só pode tê-lo verdadeiramente a seu serviço se observar os princípios que regem sua vida pública”; e assim “Cabe perguntar se é isso que estamos fazendo no Brasil”.

Mantendo um tom de quem está acompanhando com atenção o desenrolar dos fatos aqui e alhures, Hamilton Mourão perguntou qual era o sentido “de trazer para o nosso país problemas e conflitos de outros povos e culturas” – a referência, claro, são as manifestações contra a morte de George Floyd -, uma vez que, “A formação da nossa sociedade, embora eivada de problemas contra os quais lutamos até hoje, marcadamente a desigualdade social e regional, não nos legou o ódio racial nem o gosto pela autocracia”. E enfatizou que não há legislação de exceção em vigor no país e que os militares das Forças Armadas estão “cumprindo rigorosamente seu papel constitucional” (Antonio Hamilton Martins Mourão. “Opinião e princípios”. In O Estado de S. Paulo: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,opiniao-e-principios,70003322799. Publicado em 3 de junho de 2020. Acessado em 3 de junho de 2020).

No primeiro parágrafo deste ponto eu disse que o vice-presidente saiu em defesa do senhor Jair Bolsonaro. Olhando nas entrelinhas do texto que ele publicou, a mim me pareceu que há uma ambivalência ali, porque o recado para os “baderneiros” também deve valer para os bolsonaristas. Tem algo até certo ponto irresponsável na narrativa do vice-presidente quando, por exemplo, ele não dá nome aos bois no trecho em que se refere aos que estão, segundo ele, usando os manifestantes contra Jair Bolsonaro, o que deixa a acusação no vazio; e quando não diz que foi o essetefiano ministro Celso de Mello que, numa conversa ilegalmente vazada – vazar conversas tem sido um esporte muito praticado nesta República -, comentou que as movimentações que ora vemos se assemelham as que marcaram a Alemanha pré-nazista. É curioso observar que sob a ótica do senhor Hamilton Mourão, que nada disse da marchinha kukluxklaniana de Sara Winter e companhia e nem dos seguidos atos inconstitucionais e antidemocráticos que o senhor Jair Bolsonaro e apoiadores têm promovido semanalmente na Praça dos Três Poderes – atenção nas entrelinhas: o “silêncio” dele sobre isso não deixa de ser um recado também para o senhor presidente da República; às vezes, o que não é dito, fica subentendido -, o que acontece num mundo globalizado no qual as economias dos países dependem, em alguma medida, umas mais outras menos, das outras, não nos diz respeito. Como não? Outro questionamento: quer dizer que nós não temos em nossa sociedade “ódio racial”? E os negros sofrem preconceitos, têm, em geral, os piores empregos e baixa escolaridade e são mais abatidos pelas polícias e lotam as unidades prisionais por quê? Por que eles querem ou por que eles são, por natureza, inclinados a serem inferiores e foras da lei?

Falando com a experiência, com a longa experiência de caserna que tem, o vice-presidente Hamilton Mourão, apesar disso, ao dizer que a nossa formação social não nos legou “o gosto pela autocracia” parece que não conhece nem a história deste país e muito menos o atual mandatário desta nação. Menos, Hamilton Mourão, menos, porque de gente assim, muito arteira e sonsa, o inferno já está cheio.

VI

Eu acompanho o fluxo dos acontecimentos e cada vez me convenço mais do quão enorme é o estrago que as chamadas fake news provocam, sobretudo entre aquelas pessoas que não têm disposição e/ou interesse em ir atrás de outras fontes. As notícias falsas que percorrem e se espalham rapidamente pelas redes sociais revelam o tempo todo certo comprometimento de nossa parte em sermos cúmplices de malfeitorias, porque, às vezes, tomados por um impulso de irreflexão, podemos disseminar quaisquer “informações” que nos chegam; e a mentira vai tomando forma de uma epidemia.

Nesta semana os envolvidos com o inquérito das fake news, que corre no STF, começaram a ser ouvidos. E o que circulou na internet foi que os bolsonaristas implicados no caso iriam se manter calados nas audiências. E olhem que essas criaturas se arvoram de ser detentoras e propagadoras da verdade; e acusam a imprensa não vendida e cooptada de ficar criando caso com elas.

Noutra ocasião eu comentei que acreditava que o uso dos dados pessoais do filho do William Bonner para o cadastro e saque do auxílio emergencial tivesse sido obra de bolsonaristas. Não mudei de opinião quanto a isso. Só que nesta semana veio a público que bolsonaristas, como o feioso e patriótico Luciano Hang – o das cópias da Estátua da Liberdade –, também tiveram seus dados inseridos no ineficiente sistema da Dataprev; e eu fiquei na dúvida: será que foi revanche de gente contrária à República Antidemocrática Bolsonariana ou ação de criminosos sem viés ideológico que estão agindo em cima da inoperância desse desgoverno desmoralizado em tantas frentes?

Enquanto os acontecimentos vão se desdobrando, as intrigas e as guerras intestinas que vão sendo travadas no campo da política e da politicagem trazem à tona fatos que mostram que as trocas de acusações produzem uma delinquência atrás da outra.

Em mais uma semana tumultuada em Brasília, a deputada federal Joice Hasselmann, que já esteve no outro lado do front, como aliada de primeiríssima hora do presidente da República Antidemocrática Bolsonariana, foi acusada por ex-funcionários de seu gabinete, de manter, assim como o clã Bolsonaro, um Gabinete do Ódio par difundir fake news contra inimigos, expediente esse bancado com o nosso dinheiro, claro (“Joice é acusada de ter gabinete do ódio com verba pública”. In Pleno News: https://pleno.news/brasil/politica-nacional/joice-e-acusada-de-ter-gabinete-do-odio-com-verba-publica.html. Publicado em 5 de junho de 2020. Acessado em 5 de junho de 2020).

VII

Uma das heranças malditas que o período escravocrata, que vigeu neste país durante mais de trezentos anos, legou aos bem-nascidos de nossa sociedade foi o entendimento de que pessoas, de que certas pessoas existem para ser serviçais; daí por que a figura da empregada doméstica, que tantos estrangeiros veem como um supremo luxo mantido por inúmeras famílias no Brasil, existe como uma verdadeira instituição nacional; e é algo que também os novos ricos ambicionam e logo tratam de adquirir como item de primeira necessidade e como uma certificação do seu novo status.

Na última terça-feira, no meu muito querido Recife, a cidade que me formou intelectualmente e que me levou a ler Joaquim Nabuco e José Mariano, nomes inescapáveis da campanha abolicionista que tomou de assalto esta nação no século XIX – é de Nabuco esta frase premonitória e tão reveladora do caráter social brasileiro: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil” (Joaquim Nabuco. Minha formação. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, s. d., p. 129) –, um acontecimento revelou de modo trágico e com um misto de comoção e revolta a persistência entre nós da lógica do tempo da escravidão que ligava a casa-grande à senzala: num prédio de alto padrão, localizado no bairro de São José, um menininhozinho de apenas 5 anos de idade, Miguel Otávio, ficou aos cuidados da patroa de sua mãe, enquanto esta saiu para dar o passeio diário do cachorro da sinhazinha, ops, madame. Tendo negligenciado, ao que parece, o cuidado com a criança, a patroa, Sarí Gaspar Côrte Real, uma mulher branca e bem apessoada, e primeira dama de Tamandaré, cidade do litoral sul de Pernambuco, não viu que o garoto, provavelmente à procura da mãe, acabou caindo de uma altura de cerca de 35 metros. Miguel Otávio, coitadinho, morreu antes de chegar ao hospital. Que coisa triste!

À medida que os fatos foram sendo apurados, tomamos conhecimento de que a mãe de Miguel, Mirtes Renata, consta como funcionária da Prefeitura de Tamandaré: para ficar mais claro: Mirtes Renata, uma mulher negra que trabalha como empregada doméstica, aparece no quadro de funcionários da Prefeitura de Tamandaré, mas cumpre sua jornada de trabalho na residência do prefeito Sérgio Hacker Côrte Real (Mariana Moraes. “Mãe de criança que caiu do nono andar está registrada como servidora da Prefeitura de Tamandaré”. In Diario de Pernambuco: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2020/06/mae-de-crianca-que-caiu-do-nono-andar-esta-registrada-como-servidora.html. Publicado em 4 de junho de 2020. Acessado em 5 de junho de 2020).

Dá para entender, analisando o caso Miguel Otávio, a dimensão da nossa pequenez enquanto sociedade e nação? Dá para avaliar o quanto somos ainda algozes e ao mesmo tempo vítimas de uma miséria moral e ética que nos prende a um passado que não passa? As circunstâncias da morte do pequeno Miguel Otávio e todo o enredo e todo o cenário em que os personagens estavam/estão inseridos se não dizem tudo, dizem muito da perversidade de um sistema de valores e de privilégios que deforma e que inferioriza e que subumaniza certos indivíduos para que outros exerçam sobre eles uma exploração, um controle e um poder como se isso fosse, para o dominador, uma grande dádiva de suas vidas e a coisa mais natural que existe.

Durante uma entrevista, ao ser questionada sobre a cobrança de representatividade do negro nos papéis de ator e atriz e da necessidade de construção de referências positivas dos artistas negros ao assumirem e/ou aceitarem certos trabalhos de atuação, a atriz Léa Garcia comentou que, por outro lado, a referência não poderia significar o tolhimento da liberdade de escolha do ator; disse ainda que a situação incomodava o Movimento Negro porque mexe-se numa ferida, uma vez que “o negro tem aquela vontade louca de ‘sair’ da escravidão, de ‘fugir’ da empregada doméstica... Tem pavor disso. Quer fugir disso correndo, apagar essa mancha. Mas sem entender que essa mancha não é nossa, simplesmente porque não fomos nós [negros] que a criamos. A vergonha não está com o oprimido e sim com o opressor” (Sandra Almada. Damas negras: sucesso, lutas, discriminação: Chica Xavier, Léa Garcia, Ruth de Souza, Zezé Mota. Rio de Janeiro: Mauad, 1995, p. 108-109).

A Lei Áurea foi assinada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888. Doravante, “casas-grandes” e “senzalas” continuaram a ser erguidas nos quatro cantos deste país.

VIII

No sábado passado ocorreu um episódio eivado de brutalidade e crueldade que eu não vi ganhar destaque na grande mídia: incomodada com o barulho que vinha de uma festa de aniversário – Baile do Covid-19, como estava grafado nos copos personalizados -, a médica Ticyana Azambuja, depois de ir até o local pedir para que abaixassem o som, foi xingada com palavrões e, em dia de fúria, fez uso de um martelo para quebrar o retrovisor e o vidro traseiro do carro de um policial militar que participava da festa. E o que ocorreu depois disso foi um espancamento coletivo da anestesista, registrado em fotos e vídeos feitos pela vizinhança, que resultou com o joelho esquerdo fraturado e as duas mãos machucadas em virtude de pisadas. O episódio ocorreu no bairro do Grajaú, zona oeste do Rio de Janeiro (Herculano Barreto Filho. “Imagens e médica contrapõem versão de agressor sobre espancamento no Rio”. In UOL Notícias: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/06/04/imagens-e-medica-contrapoem-versao-de-agressor-sobre-espancamento-no-rio.htm. Publicado em 4 de junho de 2020. Acessado em 4 de junho de 2020).

Que porcaria de país é esse no qual a educação não evolui, a cultura não evolui e nós ainda calhamos de escolher na cena política os representantes do retrocesso e do atraso?! Por que essa nossa cumplicidade com o ilícito? Por que esse nosso apego, essa nossa fixação por líderes ineptos e desonestos e canalhas?

A minha visão crítica do que está ao meu redor e além não tem me dado margem para que eu seja complacente com os medíocres, com os falsários, com os desonestos, com os mandões, com os fingidos e com os covardes.

Abramos bem os nossos olhos e ouvidos. As nossas necessidades vitais são várias e muito amplas: nós não queremos só comida! Não somos gado a pastar sobre a relva. Não podemos deixar que o medo da pandemia, junto com o autoritarismo do senhor Jair Bolsonaro e dos seus comparsas e de outros que surgirem, cesse a nossa indignação e o nosso desconforto e a nossa inconformidade e a nossa revolta. Não podemos deixar que o medo se transforme em covardia. Não nos deixemos escravizar pela ignorância

4 comentários:

  1. É surpeendente sua critica durante as semanas. Perfeito o texto. Você express a a verdade. Dálias palavras.

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  2. Como esse está resposta" que sena ridícula" só faltou dizer " se é para de todo digam que fico" olhando a cena patética, que poderia ser a seguinte" se para o bem de todos vou pra bem longe, onde não se pudesse nunca na vida ter que ouvir pelo nome bozo". Mas teria que dizimar os 300 ou os 30 de louça, esquizofrênica sara winter". A imagem dos infernos existe; " Bolsonaro de cavalo espalhando simpatia e covid aos gados pastando. Pra fechar com chave de ouro, o tempo ocioso do presidente que sobrevive no governo, pois de fato ele não governa , ele luta pra governar, sem ter o que fazer sobrevooa em mais um show aos gados. Seria hipocrisia minha em dizer, o que eu gostaria que acontecesse, sumisse de vez, neste sobrevoo. E segue o gado dando mal exemplo ao mundo e sendo aplaudido pelos 30, kkk..

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