22 de agosto de 2020

E se Maria tivesse decidido abortar?

Por Clênio Sierra de Alcântara


Uma das belíssimas criações da cena da Anunciação - esta é de autoria do pintor italiano Camillo Procaccini -,  episódio bíblico em que o anjo Gabriel visita Maria e anuncia que ela irá gerar um filho do Espírito Santo 


Num ano carregado de acontecimentos trágicos e reveladores a um só tempo de nossa extrema fragilidade frente a ameaças de todo tipo – o coronavírus continua dizimando vidas mundo afora – e de nossa capacidade de amesquinhamento, egoísmo, maldade e irresponsabilidade – estão aí um presidente da República perverso e o seu séquito de tresloucados a nos dizer do que o ser humano é capaz de fazer em defesa de suas visões da realidade -, nesta semana vimos com clareza extrema a que ponto o fundamentalismo religioso pode chegar ao insistir em continuar a fazer do sexo feminino um ser inteiramente submisso, sem sentimentos, ideias, gostos, vontades e escolhas, como se esses nossos semelhantes fossem desprovidos de juízo e existissem única e exclusivamente para satisfazer as necessidades sexuais masculinas e garantir a perpetuação da espécie, engravidando mesmo que, muitas vezes, a contragosto de si próprios.

O episódio envolvendo o aborto assistido por médicos, mediante uma decisão judicial – a decisão judicial por si só é um dado superlativo da inteira e completa sujeição feminina, indicando e mostrando que os que possuem sexo feminino não têm direitos em sobre o próprio corpo -, de uma criança de apenas dez anos de idade que vinha há quatro anos sendo seguidamente estuprada por um tio dela, suscitou toda a sorte de perversidade de que os seres humanos que abominam a feminilidade liberta e independente são capazes de pôr em ação.

Não bastasse a violência sexual a que foi por anos submetida, a criança sofreu com sucessivas agressões advindas dos mais variados setores da sociedade: teve sua identidade revelada por uma delinquente de carteirinha que atende pelo nome de Sara Winter, que mandou para as cucuias o Estatuto da Criança e do Adolescente; teve sua casa invadida por uma canalha candidato a vereador que quis tirar proveito eleitoral do episódio, posando de defensor ferrenho da vida; foi acossada por médicos cristãos fundamentalistas a não praticar o aborto; foi chamada de assassina por aceitar ser submetida à retirada do feto do seu ventre; enfim, puseram uma criança de apenas dez anos de idade na posição de culpada e de criminosa, quando a coitadinha era e é a vítima de um crime brutal e hediondo praticado por um adulto que sabe, como diria a minha avó, até onde o diabo mora.

As cenas de selvageria que foram filmadas na entrada do hospital do Recife, onde o procedimento do aborto felizmente foi realizado, dizem muitíssimo do grau de obscurantismo, incivilidade, alienação e autoritarismo a que podem chegar indivíduos que querem submeter o outro às suas crenças religiosas e aos seus entendimentos de mundo. O arcebispo emérito de Olinda e Recife, Dom Fernando Saburido, teve o desplante de dizer que o crime do estupro foi grave, mas o “crime” do aborto foi gravíssimo.

O caso da menina, que gerou arroubos de fundamentalistas cristãos e ações criminosas e irresponsáveis de aproveitadores de todos os matizes, porque certos tipos de seres humanos se aproveitam de tudo, inclusive, da desgraça alheia, foi um dos poucos que vieram à tona. Neste exato momento em que você está lendo este artigo, dezenas e dezenas de meninas e meninos estão sendo abusados sexualmente por alguns dos seus parentes, por amigos de suas famílias e por desconhecidos.

Aquelas pessoas que foram protestar na frente do hospital e as outras tantas que se mobilizaram nas redes antissociais contra o aborto, deveriam era ter ajudado a polícia a capturar o verdadeiro criminoso; deveriam era ir para a frente de igrejas e de templos que acoitam padres e pastores pedófilos, estupradores e abusadores; deveriam era ir para os pontos de prostituição infantil e infantojuvenil que existem – muitas vezes contando com a cumplicidade dos pais das crianças e dos adolescentes -, por exemplo, às margens de rodovias federais; deveriam era estar na porta do Congresso Nacional clamando pela existência de uma lei que autorizasse a castração química de estupradores e abusadores, e não ficar como bestas-feras defendendo o nascimento de um bebê que foi fruto de um crime bárbaro e sem se importar com todo o trauma e toda a desorientação que, imagino, ficou a povoar a cabecinha da vítima.

A submissão forçada e covarde do sexo feminino diz em elevadíssimo patamar como a humanidade em si é algo que deu grandes saltos evolutivos, em muitos aspectos, mas deixou as questões do sexo feminino – sobretudo, sua individualidade, liberdade e autonomia – como que sob supervisão permanente para que ele não possa de todo quebrar os grilhões que o mantém preso aos ditames, às regras e às determinações do mundo masculino, porque, na visão dos seres masculinos, os seres femininos têm de sempre estar no cabresto para que não criem asas e queiram voar.

Enquanto continuarem cúmplices das perversidades capitaneadas pelo sexo masculino, os seres do sexo feminino hão de permanecer como elementos sociais de segunda classe por toda a eternidade. Não esperem os seres femininos que a condição, digamos, primordial deles mude, porque, para a imensa maioria dos seres masculinos, feminino é sinônimo de submissão e de coisa dominada, porque os deuses nos quais eles acreditam estabeleceram que o feminino é fraco, perigoso, subalterno, domesticável e cativo. Desse modo, deve o sexo feminino entrar em marcha e em luta, porque, de bom grado, o masculino jamais destinará ao outro lado qualquer mínimo ganho e muito menos um plano amplo de igualdade. E, acredito, há de ser assim, infelizmente, até o fim dos tempos, porque a educação que nós, seres masculinos, recebemos reforça a ideia e nos faz acreditar que é algo natural maltratar, subestimar e menosprezar o feminino e tratá-lo como um objeto que está sempre ao nosso dispor para nos servir.

Quanto à questão colocada no título deste texto – e se Maria tivesse decidido abortar? -, é claro que isso nem sequer seria cogitado na construção da narrativa que a descreve e que é masculina por excelência. As grandes narrativas que nortearam e norteiam a humanidade são criações masculinas; e, nelas, o feminino carrega uma pesada carga simbólica para servir como arquétipo de como ele deve ser, de como ele deve se comportar, de ele como deve agir e de como ele deve existir. Eva, por exemplo, causou a desgraça do mundo ao comer do fruto proibido; a esposa de Lot desobedeceu à ordem de não olhar para trás e foi transformada em estátua de sal; e Maria, a Virgem Maria, foi incumbida – para não dizer obrigada - de gerar, não por acaso, um ser do sexo masculino, que seria o salvador da humanidade. Mas do que foi mesmo que a morte do filho da Virgem Maria nos salvou? Das guerras? Das fogueiras da Santa Inquisição? Dos conflitos entre católicos e protestantes? Das ditaduras? Da sanha dos terroristas muçulmanos? Da hipocrisia? Do falso pudor? Da misoginia? Do racismo? Do escravismo? Do holocausto? Da homofobia? Do estupro? Do feminicídio? Do fanatismo religioso? É, parece que deu ruim; o pretendido pela narrativa teve um desfecho bem diferente do que fora planejado.

O saudoso Antônio Abujamra, em seu programa Provocações, veiculado pela TV Cultura, costumava perguntar aos seus entrevistados quem maior mal causou ao mundo: se a religião, os políticos ou os bancos? Em 2014, o professor e ativista negro Helio Santos esteve frente a frente com Abujamra que, daquela lista, retirou os políticos e incluiu a escravidão. Com a lucidez característica de quem tem uma clara percepção e um profundo entendimento do mundo exatamente como ele é, o nobre Helio Santos respondeu que quem maior mal causou ao mundo foi a figura do ser masculino, porque era esse espécime que estava à frente e no controle de tudo, como aliás continua estando. Lembrei-me da fala do professor Helio Santos porque é igualmente assim que eu vejo a ordem de todas as coisas que existem em termos de criação humana; e, nesse cenário, pelo andar da carruagem da mais do que milenar história humana, o sexo feminino jamais será protagonista do que quer que seja, porque quem comanda tudo – leis, religiões, política, comportamentos, gostos, vontades e, vá lá, os bancos – é o sexo masculino. E ponto. De sorte que eu, ser masculino que fala em defesa do feminino, não consigo enxergar nada além do que a permanência da luta do sexo feminino para conseguir sobreviver face à brutalidade e a covardia dos seus algozes.

Crenças religiosas merecem todo o nosso respeito; todos têm e/ou deveriam ter o direito de professar aquilo em que acreditam, mas não obrigar ninguém a acreditar nelas e/ou a compartilhá-las. Dito isso, penso eu que as crenças religiosas não devem nortear e/ou influir nos ordenamentos jurídicos que regem as sociedades; e esses ordenamentos jurídicos precisam agregar a fala do feminino e não ser uma imposição masculina para ele; o sexo feminino precisa e deve participar da elaboração dos instrumentos legais e não simplesmente assistir ao ser masculino estabelecer como deve e/ou pode ser. Deixemos os deuses, todos eles, fora disso. E, penal e legalmente, punamos o infrator, o delinquente e o criminoso; e não a vítima e não o inocente, porque, em nome da religião e em nome de deuses, muito mal já foi feito e continua a ser feito nos quatro cantos do mundo, principalmente contra os seres do sexo feminino.

Deveríamos todos nós, seres masculinos e femininos, existir para a prática da liberdade; todavia, existimos à mercê dos criadores de verdades absolutas que não costumam ser tolerantes para com quem deles discorda.

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