Por Clênio Sierra de Alcântara
Num ano carregado de acontecimentos trágicos e reveladores a um só tempo de nossa extrema fragilidade frente a ameaças de todo tipo – o coronavírus continua dizimando vidas mundo afora – e de nossa capacidade de amesquinhamento, egoísmo, maldade e irresponsabilidade – estão aí um presidente da República perverso e o seu séquito de tresloucados a nos dizer do que o ser humano é capaz de fazer em defesa de suas visões da realidade -, nesta semana vimos com clareza extrema a que ponto o fundamentalismo religioso pode chegar ao insistir em continuar a fazer do sexo feminino um ser inteiramente submisso, sem sentimentos, ideias, gostos, vontades e escolhas, como se esses nossos semelhantes fossem desprovidos de juízo e existissem única e exclusivamente para satisfazer as necessidades sexuais masculinas e garantir a perpetuação da espécie, engravidando mesmo que, muitas vezes, a contragosto de si próprios.
O episódio envolvendo o
aborto assistido por médicos, mediante uma decisão judicial – a decisão
judicial por si só é um dado superlativo da inteira e completa sujeição
feminina, indicando e mostrando que os que possuem sexo feminino não têm
direitos em sobre o próprio corpo -, de uma criança de apenas dez anos de idade
que vinha há quatro anos sendo seguidamente estuprada por um tio dela, suscitou
toda a sorte de perversidade de que os seres humanos que abominam a
feminilidade liberta e independente são capazes de pôr em ação.
Não bastasse a violência
sexual a que foi por anos submetida, a criança sofreu com sucessivas agressões
advindas dos mais variados setores da sociedade: teve sua identidade revelada
por uma delinquente de carteirinha que atende pelo nome de Sara Winter, que
mandou para as cucuias o Estatuto da
Criança e do Adolescente; teve sua casa invadida por uma canalha candidato
a vereador que quis tirar proveito eleitoral do episódio, posando de defensor
ferrenho da vida; foi acossada por médicos cristãos fundamentalistas a não
praticar o aborto; foi chamada de assassina por aceitar ser submetida à
retirada do feto do seu ventre; enfim, puseram uma criança de apenas dez anos
de idade na posição de culpada e de criminosa, quando a coitadinha era e é a
vítima de um crime brutal e hediondo praticado por um adulto que sabe, como
diria a minha avó, até onde o diabo mora.
As cenas de selvageria que
foram filmadas na entrada do hospital do Recife, onde o procedimento do aborto
felizmente foi realizado, dizem muitíssimo do grau de obscurantismo,
incivilidade, alienação e autoritarismo a que podem chegar indivíduos que
querem submeter o outro às suas crenças religiosas e aos seus entendimentos de
mundo. O arcebispo emérito de Olinda e Recife, Dom Fernando Saburido, teve o
desplante de dizer que o crime do estupro foi grave, mas o “crime” do aborto
foi gravíssimo.
O caso da menina, que gerou
arroubos de fundamentalistas cristãos e ações criminosas e irresponsáveis de
aproveitadores de todos os matizes, porque certos tipos de seres humanos se
aproveitam de tudo, inclusive, da desgraça alheia, foi um dos poucos que vieram
à tona. Neste exato momento em que você está lendo este artigo, dezenas e
dezenas de meninas e meninos estão sendo abusados sexualmente por alguns dos
seus parentes, por amigos de suas famílias e por desconhecidos.
Aquelas pessoas que foram
protestar na frente do hospital e as outras tantas que se mobilizaram nas redes
antissociais contra o aborto, deveriam era ter ajudado a polícia a capturar o
verdadeiro criminoso; deveriam era ir para a frente de igrejas e de templos que
acoitam padres e pastores pedófilos, estupradores e abusadores; deveriam era ir
para os pontos de prostituição infantil e infantojuvenil que existem – muitas vezes
contando com a cumplicidade dos pais das crianças e dos adolescentes -, por
exemplo, às margens de rodovias federais; deveriam era estar na porta do
Congresso Nacional clamando pela existência de uma lei que autorizasse a
castração química de estupradores e abusadores, e não ficar como bestas-feras
defendendo o nascimento de um bebê que foi fruto de um crime bárbaro e sem se
importar com todo o trauma e toda a desorientação que, imagino, ficou a povoar
a cabecinha da vítima.
A submissão forçada e
covarde do sexo feminino diz em elevadíssimo patamar como a humanidade em si é
algo que deu grandes saltos evolutivos, em muitos aspectos, mas deixou as
questões do sexo feminino – sobretudo, sua individualidade, liberdade e
autonomia – como que sob supervisão permanente para que ele não possa de todo
quebrar os grilhões que o mantém preso aos ditames, às regras e às
determinações do mundo masculino, porque, na visão dos seres masculinos, os
seres femininos têm de sempre estar no cabresto para que não criem asas e
queiram voar.
Enquanto continuarem
cúmplices das perversidades capitaneadas pelo sexo masculino, os seres do sexo
feminino hão de permanecer como elementos sociais de segunda classe por toda a
eternidade. Não esperem os seres femininos que a condição, digamos, primordial
deles mude, porque, para a imensa maioria dos seres masculinos, feminino é
sinônimo de submissão e de coisa dominada, porque os deuses nos quais eles
acreditam estabeleceram que o feminino é fraco, perigoso, subalterno,
domesticável e cativo. Desse modo, deve o sexo feminino entrar em marcha e em
luta, porque, de bom grado, o masculino jamais destinará ao outro lado qualquer
mínimo ganho e muito menos um plano amplo de igualdade. E, acredito, há de ser
assim, infelizmente, até o fim dos tempos, porque a educação que nós, seres
masculinos, recebemos reforça a ideia e nos faz acreditar que é algo natural
maltratar, subestimar e menosprezar o feminino e tratá-lo como um objeto que
está sempre ao nosso dispor para nos servir.
Quanto à questão colocada no
título deste texto – e se Maria tivesse decidido abortar? -, é claro que isso
nem sequer seria cogitado na construção da narrativa que a descreve e que é masculina
por excelência. As grandes narrativas que nortearam e norteiam a humanidade são
criações masculinas; e, nelas, o feminino carrega uma pesada carga simbólica
para servir como arquétipo de como ele deve ser, de como ele deve se comportar,
de ele como deve agir e de como ele deve existir. Eva, por exemplo, causou a
desgraça do mundo ao comer do fruto proibido; a esposa de Lot desobedeceu à
ordem de não olhar para trás e foi transformada em estátua de sal; e Maria, a Virgem
Maria, foi incumbida – para não dizer obrigada - de gerar, não por acaso, um
ser do sexo masculino, que seria o salvador da humanidade. Mas do que foi mesmo
que a morte do filho da Virgem Maria nos salvou? Das guerras? Das fogueiras da
Santa Inquisição? Dos conflitos entre católicos e protestantes? Das ditaduras? Da
sanha dos terroristas muçulmanos? Da hipocrisia? Do falso pudor? Da misoginia? Do
racismo? Do escravismo? Do holocausto? Da homofobia? Do estupro? Do feminicídio?
Do fanatismo religioso? É, parece que deu ruim; o pretendido pela narrativa
teve um desfecho bem diferente do que fora planejado.
O saudoso Antônio Abujamra,
em seu programa Provocações,
veiculado pela TV Cultura, costumava perguntar aos seus entrevistados quem
maior mal causou ao mundo: se a religião, os políticos ou os bancos? Em 2014, o
professor e ativista negro Helio Santos esteve frente a frente com Abujamra
que, daquela lista, retirou os políticos e incluiu a escravidão. Com a lucidez
característica de quem tem uma clara percepção e um profundo entendimento do
mundo exatamente como ele é, o nobre Helio Santos respondeu que quem maior mal
causou ao mundo foi a figura do ser masculino, porque era esse espécime que
estava à frente e no controle de tudo, como aliás continua estando. Lembrei-me da
fala do professor Helio Santos porque é igualmente assim que eu vejo a ordem de
todas as coisas que existem em termos de criação humana; e, nesse cenário, pelo
andar da carruagem da mais do que milenar história humana, o sexo feminino
jamais será protagonista do que quer que seja, porque quem comanda tudo – leis,
religiões, política, comportamentos, gostos, vontades e, vá lá, os bancos – é o
sexo masculino. E ponto. De sorte que eu, ser masculino que fala em defesa do
feminino, não consigo enxergar nada além do que a permanência da luta do sexo
feminino para conseguir sobreviver face à brutalidade e a covardia dos seus
algozes.
Crenças religiosas merecem
todo o nosso respeito; todos têm e/ou deveriam ter o direito de professar
aquilo em que acreditam, mas não obrigar ninguém a acreditar nelas e/ou a compartilhá-las.
Dito isso, penso eu que as crenças religiosas não devem nortear e/ou influir
nos ordenamentos jurídicos que regem as sociedades; e esses ordenamentos
jurídicos precisam agregar a fala do feminino e não ser uma imposição masculina
para ele; o sexo feminino precisa e deve participar da elaboração dos
instrumentos legais e não simplesmente assistir ao ser masculino estabelecer
como deve e/ou pode ser. Deixemos os deuses, todos eles, fora disso. E, penal e
legalmente, punamos o infrator, o delinquente e o criminoso; e não a vítima e
não o inocente, porque, em nome da religião e em nome de deuses, muito mal já
foi feito e continua a ser feito nos quatro cantos do mundo, principalmente
contra os seres do sexo feminino.
Deveríamos todos nós, seres
masculinos e femininos, existir para a prática da liberdade; todavia, existimos
à mercê dos criadores de verdades absolutas que não costumam ser tolerantes
para com quem deles discorda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário