15 de agosto de 2020

Livro, esse inimigo ferrenho dos tiranos

 Por Clênio Sierra de Alcântara


Leio, logo existo: A Santa Inquisição queimou pessoas e livros em seus autos de fé. Os ditadores - civis e militares - mataram e matam indivíduos que discordam deles e fazem desaparecer corpos e livros. Livros incomodam os dominadores desde que eles começaram a existir e circular. Livros são armas potentes demais, porque não precisam ser recarregadas. Livros não são produtos supérfluos; muito pelo contrário, são artigos de primeiríssima necessidade; e, quem diz o contrário disso, é amigo e cúmplice da ignorância e da tirania; e inimigo da liberdade e da democracia


Para onde quer que se lance a vista no desgoverno da República Antidemocrática Bolsonariana, se pode ver que viceja e grassa uma ação incansável visando o empobrecimento quando não o arruinamento total do setor artístico e cultural deste país. Vigora no seio dessa gente autoritária, hipócrita, estúpida e covarde um entendimento de que educação, cultura e arte são coisas irrelevantes e até nocivas que consomem muito dinheiro do Estado sem dar um retorno à altura dos investimentos; e, sendo assim, o mais sensato e racional a fazer, é deixar esses setores à míngua, definhando completamente, sem recursos estatais.

Não é de hoje que o mercado de livrarias e de livros anda mal das pernas; já faz alguns anos que o setor livreiro vem colecionando perdas e baixas nas vendas no Brasil, algo que se dá por múltiplos fatores, entendo eu, como o estabelecimento de custosas megaestores – e muitas fecharam as portas com o agravamento da pandemia que há meses estamos enfrentando -, a concorrência do comércio virtual, a pirataria digital de obras, o não muito apego e/ou interesse de grande parte da população para com a leitura e os preços dos livros, quase sempre muito elevados. Sim, tem gente que considera mais proveitoso gastar R$ 50,00, R$ 70,00 numa rodada de cerveja do que direcionar esses mesmos valores para a compra de livros; e isso se dá, eu suponho, porque, para muita gente, livro entra na lista do supérfluo, do entretenimento puro e simples e não como um investimento para a obtenção de conhecimento e de instrução e de alcance de um maior entendimento do mundo em si e de si no mundo.

Infelizmente ainda vigora entre nós uma falta de compreensão de que livros podem fazer com que toda uma sociedade evolua em todos os aspectos, inclusive, no campo socioeconômico. E esse, digamos, desprezo pelos livros que existe na sociedade brasileira diz muitíssimo de nossa indigência moral e ética; e, também, dessa desgraçada “inclinação” que tantos de nós têm para fazer do ilícito uma tábua de salvação e um meio de vida.

Depois de acabar com o Ministério da Cultura; depois de pôr no comando do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, da Fundação Palmares e da Secretaria Especial de Cultura, criada pelo desgoverno, pessoas sem preparo intelectual para tanto; depois de anunciar que a Agência Nacional do Cinema não dará cabimento a “certos tipos de filmes”; depois de atacar a autonomia das universidades públicas; e depois de fazer do Ministério da Educação uma espécie de picadeiro e de laboratório de inutilidades, como se o Brasil estivesse no rol dos países com o melhor nível educacional do mundo, eis que os tiranos burrocratas da República Antidemocrática Bolsonariana, tal qual as traças, as baratas, os ratos e os cupins, resolveram atacar os livros, sobretaxando-os, porque, segundo o multimilionário ministro da Economia, Paulo Guedes que, eu imagino, leu muitos e muitos livros ao longo da sua robusta formação para chegar aonde chegou, livro é, certamente, produto de elite, e, portanto, elite tem dinheiro para bancar essas coisinhas tão supérfluas como as garrafas de Möet & Chandon e os cristais Baccarat.

Não é uma, digamos, simples maldade do desgoverno do senhor Jair Bolsonaro anunciar a elevação de taxa de um produto que já é tão caro por aqui. Eu noto nisso uma estratégia de promoção da alienação cultural de um povo com vistas a mais facilmente manipulá-lo. Observe-se que, em sua defesa da sobretaxação dos livros, o senhor Paulo Guedes ainda teve o descaramento de dizer, como se todos nós fôssemos uns idiotões de marca maior que apoiam um presidente que assistiu insensível e cruelmente à morte de mais de 100 mil cidadãos vitimados pela covid-19, desacreditando desde o início da pandemia a letalidade do vírus, que o desgoverno distribuirá livros aos mais pobres. Li isso e me perguntei: “Que tipo de livro será que esse desgoverno abarrotado de gente obscurantista, autoritária, hipócrita, estúpida e covarde vai distribuir? A Bíblia? As obras de Olavo de Carvalho e de Edir Macedo? Ou os manuais de sobrevivência na selva do Exército? Pobre não vai poder escolher o que quiser ler?”.

Mais do que um acinte e um projeto de aniquilamento da formação educacional e humana plural de toda uma população, a sobretaxação dos livros que foi anunciada revela mais uma vez as estratégias malignas do desgoverno do senhor Jair Bolsonaro; e é mais uma prova de que os tiranos continuam a enxergar os livros como inimigos ferrenhos de suas maquinações que intentam fazer de todo e qualquer cidadão e cidadã uma marionete e/ou um autômato que, incapaz de pensar por si próprio e de ser desprovido de discernimento, só faz aquilo que lhe é mandado fazer. Os tiranos têm absoluta certeza de que o homem e a mulher que pensam por eles mesmos são elementos perigosos demais para os desígnios que eles, tiranos, planejam em seus gabinetes.

A Santa Inquisição queimou pessoas e livros em seus autos de fé. Os ditadores - civis e militares - mataram e matam indivíduos que discordam deles e fazem desaparecer corpos e livros. Livros incomodam os dominadores desde que eles começaram a existir e circular. Livros são armas potentes demais, porque não precisam ser recarregadas. Livros não são produtos supérfluos; muito pelo contrário, são artigos de primeiríssima necessidade; e, quem diz o contrário disso, é amigo e cúmplice da ignorância e da tirania; e inimigo da liberdade e da democracia.

Leio, logo me liberto.


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