21 de novembro de 2020

O império do negricídio

 Por Clênio Sierra de Alcântara


Negro sendo açoitado num desenho de autoria do inglês Charles Landseer.
 Os pelourinhos, as máscaras de ferro, os anjinhos, os vira-mundos e as gargalheiras, instrumentos que serviam para castigar os negros escravizados no Brasil de antigamente, foram todos eles substituídos pelo pisoteamento, pela joelhada, pelo sufocamento e, principalmente, pela arma de fogo. Enquanto eles permanecerem dizendo que não, nós continuaremos gritando e dizendo que sim: vidas negras também importam!



Um dos comentários que eu ouvi quando da repercussão do caso das agressões praticadas por dois seguranças de uma unidade do Carrefour, em Porto Alegre, que resultaram na morte de João Alberto Silveira Freitas, ocorrida anteontem, à noite, foi que o ataque brutal e desproporcional ao que a vítima praticara – segundo o que eu acompanhei até agora, João Alberto Silveira Freitas, o Beto, teve um desentendimento com uma funcionária do hipermercado; e, também, deu um soco num dos indivíduos que o abordaram e, depois, o espancaram – não foi uma ocorrência motivada por racismo. Alguém também comentou que Beto não era negro. E um cara que eu conheço chegou a dizer que, embora nada justifique a morte do Beto, ainda mais quando se considera que, pelo menos em tese, profissionais que trabalham como seguranças recebem treinamentos que incluem técnicas de imobilização – e um dos agressores ainda por cima é um Policial Militar que aproveitava as folgas do quartel para complementar a renda, algo infelizmente em voga em todo o país -, é difícil ter sangue de barata para suportar xingamentos, desaforos e agressões físicas e não reagir com violência.

Neste Brasilsil varonil, há quem não veja como negro o negro que não possua um tom de pele muito escuro; tanto isso é verdade que há negros que se apresentam como se negros não fossem. Quanto a não ter sangue de barata isso pode até valer para o cidadão comum, mas penso que não vale, como foi mencionado, para indivíduos que recebem treinamentos e são capacitados e instruídos para atuar em situações adversas, como a de um desacato e até de uma agressão física, como se tem dito, foi o caso da ocorrência havida na capital gaúcha. Já no que diz respeito à avaliação que estabeleceu que o ocorrido no hipermercado não foi uma ação de cunho racista, eu não disponho de mais informações para comentar isso.

O fato é que, tendo sido um crime motivado por racismo ou não, João Alberto Silveira Freitas, o Beto, que era negro, foi agredido e morto na véspera do Dia da Consciência Negra; e ainda por cima num país de passado marcadamente escravagista que, certamente por isso, apresente um dos quadros de desigualdade social  mais acentuados do mundo; e no qual o assassinato de negros segue a pleno vapor, porque os negros, a maioria absoluta dos negros, no Brasil, junto com os pardos, formam o grupo social que possui menos anos de escolaridade e, por conseguinte, ocupa os empregos de remuneração mais baixa, os empregos que os brancos não querem; negros são o rebotalho da sociedade brasileira; negros sofrem todo tipo de discriminação; negros são tidos como naturalmente inclinados para a prática de crimes; negros nasceram para ser submissos; negros não inspiram confiança; negros são os alvos preferenciais das abordagens policiais; negros são cidadãos de segunda classe; negros não merecem respeito; negros são tábuas de tiro ao alvo.

Ouvimos ultimamente tanto se falar em racismo estrutural que até parece que ele é uma coisa recente e que não estava desde sempre entranhado em nossa sociedade. Negros constituem a parcela social mais vulnerável, empobrecida e massacrada deste país. Negros lotam as unidades prisionais. Negros são o maior contingente de desempregados. Negros são a maioria dos moradores de rua. Negros abundam nas cracolândias por este país afora.

Os pelourinhos, as máscaras de ferro, os anjinhos, os vira-mundos e as gargalheiras, instrumentos que serviam para castigar os negros escravizados no Brasil de antigamente, foram todos eles substituídos pelo pisoteamento, pela joelhada, pelo sufocamento e, principalmente, pela arma de fogo; e disparos certeiros vitimam dezenas de cidadãos negros diariamente neste país que insiste em não querer largar a mão da barbárie a fim de que se possa tentar construir uma nação guiada pelo faro da civilização.

Toda vez que um negro é sumariamente executado, assassinado e morto neste país, afundamos um pouco mais como sociedade na areia movediça da desumanidade. No império do negricídio as chances de um negro alcançar um viver com dignidade e respeito são cotidianamente minadas por um discurso falseador da realidade que se nutre de ódio, que perpetua a exclusão social e que nega as mais claras e contundentes evidências do racismo estrutural e do morticínio da população negra; e que, como se isso não bastasse, incentiva que nos armemos, porque, segundo eles dizem, assim estaremos protegidos da violência generalizada que nos aterroriza.

João Alberto Silveira Freitas, o Beto, foi sepultado no final da manhã deste sábado, em Porto Alegre. O que permaneceu insepulto foi a nossa atávica sanha autoritária e a nossa tendência infame de relativizar e/ou de tratar como fatalidade e/ou coisa menor todos os males e todas as formas de violência que nos acometem. Fruto do escravagismo, o negricídio é uma ferida aberta que a sociedade brasileira não se esforça para suturar.

Enquanto eles permanecerem dizendo que não, nós continuaremos gritando e dizendo que sim: vidas negras também importam!

Um comentário:

  1. Estou até o momento estarrecido com tantos comentários relativos, tentando de qualquer forma justificar tamanha crueldade e barbárie pleno século XXI. A luta pra sobreviver neste país para o negro, a cada dia é uma batalha, pra se chegar ao trabalho, a faculdade, ir ao supermercado, ao banco e principalmente chegar vivo ao seu lar. O rascismo tem ganhado um grande aliado, um governo, fascista, nazista e outros piores adjetivos, e por isso, essas pessoas se acham no direito tirar desrespeitar , xingar, discriminar pela sua cor, opção sexual e até tirar a vida de forma mais covarde e cruel. Quantos pretos João, ainda terá que morrer? Isso é absurdo, e mas uma vez a justiça se cala, o povo se cala.

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