Por Sierra
Fotos: Arquivo do Autor Rua do Porão, ao lado direito do Mercado de São José: sobre as pedras tantas vezes pisadas cada caminhante vai em busca da cidade que completa a sua existência |
Às vezes eu sinto que algo
dentro de mim, alguma chama, alguma luz que deveria e deve ficar
permanentemente acesa, está como que se apagando. Aí eu recobro as forças. Aí
eu me transformo em outro, por dentro e por fora, e de algum modo me renovo
para não deixar que a chama, que a luz, que eu me apague.
Eu vinha dizendo a mim
mesmo, desde a última segunda-feira, que dali a quatro dias eu iria me vestir
de novo de flâneur para percorrer o
Recife como se o tempo estivesse absolutamente sob o meu controle. Eu me dizia
que estava precisando reencontrar certos cenários, ver gente desconhecida,
atravessar pontes, olhar o Rio Capibaribe, conceber ideais de futuro e fazer
promessas de redenção para o meu ser perdido e só. Eu queria era deixar que os
meus olhos apreendessem o que fosse possível dos itinerários que eu escolhesse
percorrer e que tudo isso entrasse em combustão dentro de mim, de modo que a
chama, a luz fosse realimentada.
Fiz escala no Sebo do Giva,
na Rua do Hospício, tão logo eu desci do ônibus. Abracei o velho conhecido.
Garimpei as estantes. E encontrei o Mar
absoluto/Retrato natural – duas obras fundidas num único volume – da
Cecília Meireles, uma Cecília Meireles que também é grandemente responsável
pela chama, pela luz permanentemente acesa dentro de mim. E eu me deparei, em Mar absoluto, com um poema intitulado
“Contemplação”, do qual extraí o fragmento a seguir, no qual de pronto eu me
reconheci por enxergar nele centelhas de minha pessoa. Ei-lo aqui:
Por
mais que me procure, antes de tudo ser feito,
eu
era amor. Só isso encontro.
Caminho,
navego, voo,
-
sempre amor.
Rio
desviado, seta exilada, onda soprada ao contrário,
-
mas sempre o mesmo resultado: direção e êxtase.
Fui carregando Cecília
Meireles na mochila sendo eu um rio desviado, uma seta exilada e uma onda
soprada ao contrário – e algo mais do que isso, embora isso não seja
perturbadoramente pouco – à procura da direção do êxtase. Qualquer êxtase.
Vi Tarcísio Pereira
reencarnado numa estátua na Rua Sete de Setembro e, inevitavelmente, recobrei
na memória um Recife luminoso e viril, não traumatizado aqui e ali pelos
horrores do descaso das autoridades e nem pelas chagas provocadas pela
pandemia.
Eu flanava, eu andava à toa
na vida pelas ruas e pontes do Recife e era como se eu estivesse parcial e/ou
inteiramente invisível. Nenhum olhar me procurou. Nenhuma atenção eu atraí.
Acredito, sem querer aceitar, que para o exigente desejo alheio eu já esteja
velho demais. Ou magro demais. Ou feio demais. Ou repulsivo demais.
Parei nos sebos dispostos
nas calçadas da Av. Guararapes. E ali eu adquiri um livro com o sugestivo
título de A cidade ideal, de uma até
então desconhecida por mim, Helen Rosenau. Pegando no livro eu pensei em alguns
dos meus mestres de história do mundo urbano: Lewis Mumford, Camillo Sitte,
Leonardo Benevolo, Françoise Choay... E pensei principal e demoradamente na
ficção urbanística de Italo Calvino. Cidade ideal existe? Não, claro que não. A
cidade ideal ou está invisível, como as de Calvino, ou ainda há de ser
inventada. Será que nós teremos tempo, dinheiro, interesse e vontade de
erguermos uma cidade ideal? Talvez sim, porque o poder econômico é capaz de
tudo e não só e apenas de causar mortes, exclusão social e destruição ambiental.
A propósito eu aprendi com mestre Antonio Candido, anteontem, bem de
manhazinha, que “Como as pessoas e os livros, também as cidades têm o seu
destino”.
Dali eu rumei para o bairro
de São José. Fui até lá comprar canela em pó. Em pó e pura, como deve ser. Eu
adoro, eu adoro, eu adoro o cheiro da canela. Se é verdade que do pó viemos e
ao pó voltaremos, eu gostaria muitíssimo de voltar ao pó, só e somente só se
fosse como pó de canela. Eu adoro, eu adoro, eu adoro o cheiro da canela.
Quase chegando ao Pátio do Livramento |
Atravessando o pátio da Igreja de Nossa Senhora do Livramento eu cruzei com o Bruno Florêncio. Eu fiz com que ele me visse, me postando em sua frente. Ele tem alguns dos olhos mais bonitos que eu já vi. E é terno. E é atencioso. E é inteligente. E é perspicaz... Via de regra, as pessoas se encontram; o que nem sempre se encontram em alinhamento e em comunhão são os seus desejos.
Comprei plástico na Casas
Léo da Av. Nossa Senhora do Carmo para cobrir, como se fosse uma película de
vidro, a mais de uma dezena de pequenos quadros que eu encomendei ao Eziel dos
Anjos.
Nem que eu quisesse – e eu nunca
que de hei querer isso – o Recife sairia de dentro de mim. O Recife, assim
mesmo em parte maltratado e abandonado, o Recife assim mesmo cabisbaixo e com
tantas portas fechadas, continua e permanece sendo – depois do meu chão natal –
o ponto de partida para todos os meus anseios existenciais.
Lá do outro lado o pedaço de uma "cidade ideal" está sendo erguida |
Cruzei a Ponte Maurício de
Nassau para ir prestigiar a exposição do Stênio Burgos, na Caixa Cultural.
Antes eu fui ver o caranguejão posto no Cais da Alfândega em homenagem ao Movimento Manguebeat, um entre vários
testemunhos de que o Recife preserva e celebra o seu passado.
À esquerda o antigo prédio da Alfândega que há muitos anos foi convertido em mais um centro de compras da cidade; à direita, lateral da suntuosa Igreja da Madre de Deus |
Cheguei à Caixa Cultural
depois de atravessar uma muito acanhada feira de livros novos e usados montada
na Av. Rio Branco. Eu me deparei com os quadros do Stênio Burgos e, diante de
tanta cor e diante de pinceladas tão vigorosas e carregadas de tinta, que
deixam algumas pinturas como que em alto relevo, eu senti uma grande, uma
enorme vontade de ser parte integrante daqueles quadros; de ser eu uma cor tão
viva e pulsante como aquelas cores; e andar por entre as flores e ler as lições
que aquelas crianças tão compenetradas faziam. Stênio Burgos lança tinta em
suas telas quase que como um pedreiro faz ao manejar cimento para rebocar uma
parede, com a diferença de que ele, Stênio, ambiciona com o seu, por assim
dizer, alto relevo, fazer com que sua pintura saia do campo do inanimado e
ganhe vida. Não é uma ambição pequena. Muito pelo contrário. Stênio Burgos é
dono de uma sensibilidade e de uma precisão pictórica que tem qualquer coisa de
escultural. É, a meu ver, precisamente isso: Stênio Burgos é um artífice, um
talentoso artífice de uma pintura escultórica.
Duas pinturas de Stênio Burgos: A lição, óleo sobre tela, 2004... |
.
E Bordado da lua cheia, óleo sobre tela, 2020 |
Saí de junto do colorido
absorvente das telas do Stênio Burgos, atravessei a Av. Alfredo Lisboa e fui
olhar o mar a partir do Marco Zero da cidade. Poxa, há muito tempo eu não fazia
isso! Mirei as esculturas de Francisco Brennand. Tentei fotografar rapazes
saltando para dentro da água numa algazarra aliciante. Observei turistas – eu
supus que eram turistas – tentando aprender passos de frevo. Vi a vida
manifestada e estampada em corpos que não davam sinais de cansaço. Tudo ali era
tão animador e revigorante.
O mar e Francisco Brennand: sonhando eu também com a eternidade |
A vida pulsando vigorosa em suas coisas mais comezinhas, como um banho acrobático num fim de tarde ao ar livre |
Metido comigo mesmo e ainda
operando no “modo invisível’, eu segui para o outro lado da cidade, voltando
para a Boa Vista, atentando para o crepúsculo que tudo cobria.
Crepúsculo da sexta-feira num Recife que nunca sairá de mim |
Flanei ainda mais um pouco, quando já era noite. Jantei na Cascatinha. E embarquei num ônibus de volta para casa agarrado a um livro que não dizia que a minha vida era boa, mas eu tinha certeza que era: com solidão, com tristezas, com alegrias, com acertos, com erros, com sucessos, com fracassos e com tudo o mais que a preenchia e preenche.
Chama, luz... Tudo ainda está muito aceso dentro de mim.
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