27 de agosto de 2022

Até depois do crepúsculo

 Por Sierra

 

Fotos: Arquivo do Autor
 Rua do Porão, ao lado direito do Mercado de São José: sobre as pedras tantas vezes pisadas cada caminhante vai em busca da cidade que completa a sua existência


Às vezes eu sinto que algo dentro de mim, alguma chama, alguma luz que deveria e deve ficar permanentemente acesa, está como que se apagando. Aí eu recobro as forças. Aí eu me transformo em outro, por dentro e por fora, e de algum modo me renovo para não deixar que a chama, que a luz, que eu me apague.

Eu vinha dizendo a mim mesmo, desde a última segunda-feira, que dali a quatro dias eu iria me vestir de novo de flâneur para percorrer o Recife como se o tempo estivesse absolutamente sob o meu controle. Eu me dizia que estava precisando reencontrar certos cenários, ver gente desconhecida, atravessar pontes, olhar o Rio Capibaribe, conceber ideais de futuro e fazer promessas de redenção para o meu ser perdido e só. Eu queria era deixar que os meus olhos apreendessem o que fosse possível dos itinerários que eu escolhesse percorrer e que tudo isso entrasse em combustão dentro de mim, de modo que a chama, a luz fosse realimentada.

Fiz escala no Sebo do Giva, na Rua do Hospício, tão logo eu desci do ônibus. Abracei o velho conhecido. Garimpei as estantes. E encontrei o Mar absoluto/Retrato natural – duas obras fundidas num único volume – da Cecília Meireles, uma Cecília Meireles que também é grandemente responsável pela chama, pela luz permanentemente acesa dentro de mim. E eu me deparei, em Mar absoluto, com um poema intitulado “Contemplação”, do qual extraí o fragmento a seguir, no qual de pronto eu me reconheci por enxergar nele centelhas de minha pessoa. Ei-lo aqui:

 

Por mais que me procure, antes de tudo ser feito,

eu era amor. Só isso encontro.

Caminho, navego, voo,

- sempre amor.

Rio desviado, seta exilada, onda soprada ao contrário,

- mas sempre o mesmo resultado: direção e êxtase.

 

Fui carregando Cecília Meireles na mochila sendo eu um rio desviado, uma seta exilada e uma onda soprada ao contrário – e algo mais do que isso, embora isso não seja perturbadoramente pouco – à procura da direção do êxtase. Qualquer êxtase.

Vi Tarcísio Pereira reencarnado numa estátua na Rua Sete de Setembro e, inevitavelmente, recobrei na memória um Recife luminoso e viril, não traumatizado aqui e ali pelos horrores do descaso das autoridades e nem pelas chagas provocadas pela pandemia.

Eu flanava, eu andava à toa na vida pelas ruas e pontes do Recife e era como se eu estivesse parcial e/ou inteiramente invisível. Nenhum olhar me procurou. Nenhuma atenção eu atraí. Acredito, sem querer aceitar, que para o exigente desejo alheio eu já esteja velho demais. Ou magro demais. Ou feio demais. Ou repulsivo demais.

Parei nos sebos dispostos nas calçadas da Av. Guararapes. E ali eu adquiri um livro com o sugestivo título de A cidade ideal, de uma até então desconhecida por mim, Helen Rosenau. Pegando no livro eu pensei em alguns dos meus mestres de história do mundo urbano: Lewis Mumford, Camillo Sitte, Leonardo Benevolo, Françoise Choay... E pensei principal e demoradamente na ficção urbanística de Italo Calvino. Cidade ideal existe? Não, claro que não. A cidade ideal ou está invisível, como as de Calvino, ou ainda há de ser inventada. Será que nós teremos tempo, dinheiro, interesse e vontade de erguermos uma cidade ideal? Talvez sim, porque o poder econômico é capaz de tudo e não só e apenas de causar mortes, exclusão social e destruição ambiental. A propósito eu aprendi com mestre Antonio Candido, anteontem, bem de manhazinha, que “Como as pessoas e os livros, também as cidades têm o seu destino”.

Dali eu rumei para o bairro de São José. Fui até lá comprar canela em pó. Em pó e pura, como deve ser. Eu adoro, eu adoro, eu adoro o cheiro da canela. Se é verdade que do pó viemos e ao pó voltaremos, eu gostaria muitíssimo de voltar ao pó, só e somente só se fosse como pó de canela. Eu adoro, eu adoro, eu adoro o cheiro da canela.


Quase chegando ao Pátio do Livramento


Atravessando o pátio da Igreja de Nossa Senhora do Livramento eu cruzei com o Bruno Florêncio. Eu fiz com que ele me visse, me postando em sua frente. Ele tem alguns dos olhos mais bonitos que eu já vi. E é terno. E é atencioso. E é inteligente. E é perspicaz... Via de regra, as pessoas se encontram; o que nem sempre se encontram em alinhamento e em comunhão são os seus desejos.

Comprei plástico na Casas Léo da Av. Nossa Senhora do Carmo para cobrir, como se fosse uma película de vidro, a mais de uma dezena de pequenos quadros que eu encomendei ao Eziel dos Anjos.

Nem que eu quisesse – e eu nunca que de hei querer isso – o Recife sairia de dentro de mim. O Recife, assim mesmo em parte maltratado e abandonado, o Recife assim mesmo cabisbaixo e com tantas portas fechadas, continua e permanece sendo – depois do meu chão natal – o ponto de partida para todos os meus anseios existenciais.


Lá do outro lado o pedaço de uma "cidade ideal" está sendo erguida
 


Cruzei a Ponte Maurício de Nassau para ir prestigiar a exposição do Stênio Burgos, na Caixa Cultural. Antes eu fui ver o caranguejão posto no Cais da Alfândega em homenagem ao Movimento Manguebeat, um entre vários testemunhos de que o Recife preserva e celebra o seu passado.


À esquerda o antigo prédio da Alfândega que há muitos anos foi convertido em mais um centro de compras da cidade; à direita, lateral da suntuosa Igreja da Madre de Deus


Cheguei à Caixa Cultural depois de atravessar uma muito acanhada feira de livros novos e usados montada na Av. Rio Branco. Eu me deparei com os quadros do Stênio Burgos e, diante de tanta cor e diante de pinceladas tão vigorosas e carregadas de tinta, que deixam algumas pinturas como que em alto relevo, eu senti uma grande, uma enorme vontade de ser parte integrante daqueles quadros; de ser eu uma cor tão viva e pulsante como aquelas cores; e andar por entre as flores e ler as lições que aquelas crianças tão compenetradas faziam. Stênio Burgos lança tinta em suas telas quase que como um pedreiro faz ao manejar cimento para rebocar uma parede, com a diferença de que ele, Stênio, ambiciona com o seu, por assim dizer, alto relevo, fazer com que sua pintura saia do campo do inanimado e ganhe vida. Não é uma ambição pequena. Muito pelo contrário. Stênio Burgos é dono de uma sensibilidade e de uma precisão pictórica que tem qualquer coisa de escultural. É, a meu ver, precisamente isso: Stênio Burgos é um artífice, um talentoso artífice de uma pintura escultórica.


Duas pinturas de Stênio Burgos: A lição, óleo sobre tela, 2004...




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E Bordado da lua cheia, óleo sobre tela, 2020


Saí de junto do colorido absorvente das telas do Stênio Burgos, atravessei a Av. Alfredo Lisboa e fui olhar o mar a partir do Marco Zero da cidade. Poxa, há muito tempo eu não fazia isso! Mirei as esculturas de Francisco Brennand. Tentei fotografar rapazes saltando para dentro da água numa algazarra aliciante. Observei turistas – eu supus que eram turistas – tentando aprender passos de frevo. Vi a vida manifestada e estampada em corpos que não davam sinais de cansaço. Tudo ali era tão animador e revigorante.


O mar e Francisco Brennand: sonhando eu também com a eternidade


A vida pulsando vigorosa em suas coisas mais comezinhas, como um  banho acrobático num fim de tarde ao ar livre





Metido comigo mesmo e ainda operando no “modo invisível’, eu segui para o outro lado da cidade, voltando para a Boa Vista, atentando para o crepúsculo que tudo cobria.



Crepúsculo da sexta-feira num Recife que nunca sairá de mim



Flanei ainda mais um pouco, quando já era noite. Jantei na Cascatinha. E embarquei num ônibus de volta para casa agarrado a um livro que não dizia que a minha vida era boa, mas eu tinha certeza que era: com solidão, com tristezas, com alegrias, com acertos, com erros, com sucessos, com fracassos e com tudo o mais que a preenchia e preenche.

Chama, luz... Tudo ainda está muito aceso dentro de mim.

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